Texto: Sílvia Lisboa | Edição de Arte: Dois Pontos Design | Design: Andy Faria
Quando uma criança sai da barriga da mãe, ela já nasce inteligente? Ou ela vai aprender a ser esperta com ajuda dos pais, dos parentes, da sociedade? São perguntas polêmicas cujas respostas tiveram implicações históricas graves – já foram usadas para tentar justificar genocídios. Se assumimos que a inteligência é hereditária, cada novo bebê nasce de certa forma predestinado. Afinal, pessoas mais inteligentes têm maior chance de se tornar bem-sucedidas, e vice-versa.
Alinhados por esse raciocínio, cientistas do século 19 mergulharam na ideia de melhorar a espécie humana. O inglês Francis Galton foi o mais famoso deles, com um livro de 1883 que cunhou o termo eugenia, a teoria que prega o aperfeiçoamento da raça humana por meio da seleção genética. Galton era primo de Charles Darwin, o criador da teoria da evolução das espécies, e o livro do parente teve impacto profundo na sua vida.
A eugenia funcionaria exatamente como na criação de gado ou cachorros: estimulando cruzamentos entre exemplares da espécie que possuam características desejáveis para obter descendentes cada vez “melhores”. No caso dos humanos, um desses traços era a inteligência, na visão dos defensores da eugenia. Mas o que fazer com as crianças azaradas que não teriam os genes desejados para a espécie? Descartá-las? A repercussão ética e social dessa teoria causa calafrios em muita gente ainda hoje.
A seleção genética foi pretexto para justificar atrocidades, como esterilizações forçadas de minorias, pobres e doentes mentais nos Estados Unidos. Em 1920, impedir alguém de se reproduzir fazia parte da Constituição de vários Estados americanos. Um dos casos mais emblemáticos foi o de Carrie Buck, uma jovem internada na Colônia Estatal da Virgínia para Epiléticos e Débeis Mentais. O superintendente de lá, John Bell, queria impedir que ela tivesse filhos.
O caso chegou à Suprema Corte, que em 1927 decidiu cortar as trompas de falópio de Carrie e torná-la estéril. No veredicto, o juiz Oliver Wendell Holmes Junior justificou que “três gerações de imbecis são o bastante”. O estrago demorou para ser revisto. No início do século 20, os testes de QI ajudaram a turbinar a eugenia e a justificar o nazismo. O drama foi tão grande que muitos neurologistas evitaram investigar as bases da inteligência por décadas, com medo de que suas pesquisas apontassem origens genéticas para as habilidades mentais e servissem de base para matança e preconceito.
Hoje, porém, não resta dúvidas de que a inteligência é parcialmente hereditária – e esse achado não é mais alvo de polêmica. A certeza emergiu a partir de estudos com gêmeos, filhos adotivos e DNA realizados nos últimos 50 anos. Os experimentos com gêmeos idênticos foram os primeiros a dar pistas. Claro: eles compartilham 100% do DNA.
Na teoria, quanto menor a diferença entre os irmãos em testes de QI, mais forte seria a participação da genética. Além disso, gêmeos, teoricamente, são criados do mesmo jeito, logo questões ambientais não teriam tanto peso. Para comprovar a hipótese, bastaria testar gêmeos bivitelinos, que compartilham 50% do DNA, e comparar os resultados.
Um estudo da Universidade da Califórnia, publicado em 2001, fez essa comparação. Liderados pelo neurocientista Paul Thompson, pesquisadores compararam o cérebro de dez pares de gêmeos idênticos e de dez pares de gêmeos bivitelinos. Perceberam que as regiões associadas à linguagem, à interpretação e à associação de informações, conhecidas como Áreas de Broca e Wernicke, tinham de 95% a 100% de semelhança nos gêmeos univitelinos.
Pessoas com lesões nessas áreas compreendem as palavras, mas são incapazes de se expressar de forma coerente. Os gêmeos idênticos também tinham o córtex pré-frontal, envolvido com o raciocínio lógico e controle de impulsos, iguais. Já nos gêmeos fraternos (os bivitelinos), o índice de semelhança entre as áreas cerebrais era bem menor. Na prática, o resultado comprova a tese de que os bebês trazem do berço uma inteligência inata.
Anos depois, Thompson voltou a estudar gêmeos. No experimento de 2009, a equipe do neurocientista avaliou o cérebro de 46 gêmeos e constatou que a inteligência era fortemente influenciada pela qualidade dos axônios, a parte das células nervosas responsável por transmitir impulsos elétricos. De acordo com o pesquisador, os genes influem na quantidade de mielina, o isolante que reveste a rede elétrica do cérebro.
Ou seja, quanto mais reforçada é essa camada, mais rápidos e precisos são os impulsos nervosos que passam pelos axônios – e quanto mais depressa uma informação transita pelos neurônios, maior é a inteligência. Thompson conseguiu medir a robustez da mielina com um equipamento chamado Hardi, que faz um retrato do cérebro em maior resolução do que a ressonância magnética tradicional.
Os estudos com gêmeos e adotados mostram resultados muito parecidos. Os psicólogos americanos Stephen Petrill e Kirby Deater-Deckard descobriram que as médias dos testes de QI de crianças adotadas correspondiam à de seus pais biológicos, e não guardavam nenhuma correspondência com a dos pais adotivos. Mais um ponto para a genética.
Depois de confirmar a hipótese sobre as bases genéticas do intelecto, os pesquisadores agora tentam responder a uma pergunta ainda mais intrigante: existe um gene da inteligência? O mais provável é que vários genes se envolvam na parada. Um estudo de 2011 da Universidade de Edimburgo, com 3.511 adultos sem parentesco entre si, concluiu que parte do DNA está ligada à capacidade de pensar e resolver problemas de forma criativa, mas nenhum gene específico controla mais do que uma pequena porção da nossa cognição.
O fato de a inteligência vir de berço, no entanto, não significa que ela é imutável. Os genes não escrevem nosso destino em pedra. No máximo, apontam tendências, que podem ser modificadas pela interação com o ambiente. Os mesmos estudos que mostraram as bases genéticas da nossa cognição revelam um papel nada desprezível de outros fatores externos, como a família, a escola, os amigos, a idade, as condições sociais e por aí vai. A interação de genes e ambientes rendeu o avanço de um novo e instigante campo de estudos, chamado de epigenética, que começa a dar os primeiros passos.
Além da genética
A Suécia detém um banco de dados rico e atualizado sobre a adoção. Foi revirando nele que os cientistas americanos e suecos conseguiram levantar a ficha de 436 irmãos. Todos eram homens e haviam vivido a mesma situação: um foi criado pelos pais biológicos e outro, pela família adotiva. Os cientistas recrutaram os já adolescentes e aplicaram testes de QI em todos dos 18 aos 20 anos. Ao comparar os resultados, notaram que o desempenho nos testes de inteligência dos adotados foi, em média, 4,4 pontos maior do que o dos jovens criados pela família de origem.
Na pesquisa, publicada há dois anos, os pais adotivos tinham mais estudo, eram mais bem de vida e costumavam papear na hora das refeições, levar as crianças ao museu e ler histórias para elas. Nos raros casos em que os pais biológicos tinham maior escolaridade, o resultado foi o inverso: o escore de QI dos filhos biológicos superou o dos adotados. Foi uma das mais importantes pesquisas a medir o impacto de um ambiente culturalmente rico no intelecto.
O status social parece ter uma participação importante nessa história também. Eric Turkheimer, um dos líderes do estudo dos adotados e professor de psicologia da Universidade da Virgínia, foi autor de um outro experimento que demonstrou como a influência dos genes sobre o QI varia com a classe social. Os achados revelam um dado curioso: quanto pior o ambiente, maior seu impacto na inteligência.
Na pesquisa, 60% da variação do QI em famílias pobres estava relacionada ao ambiente. Má nutrição, stress, falta de estímulos e interação social podem prejudicar a estrutura e o funcionamento do cérebro, com prejuízos cognitivos e emocionais. Em famílias abastadas, o resultado foi o oposto: maior participação do DNA na formação da inteligência. O verdadeiro potencial de cada um se revela num ambiente protegido dos problemas que podem roubar nacos do intelecto.
Um estudo feito no Rio Grande do Sul com 419 estudantes entre 6 e 12 anos, de escolas públicas e privadas, mostrou que a pobreza tem impacto maior na inteligência, na memória e na linguagem até os 9 anos. Por que até essa idade? Porque, após essa fase, a escola e a interação em outros espaços que a criança passa a frequentar (bater papo com professores, visitar vizinhos, ir à casa de coleguinhas) reduzem os efeitos de um ambiente familiar desestruturado. De certa forma, a escola salva os mais desfavorecidos.
“A família e a escola funcionam como gatilhos ambientais para que uma criança desenvolva seu potencial ao máximo”, explica a psicóloga Adriane Arteche, professora da PUC-RS e uma das autoras da pesquisa. “O nível socioeconômico tem uma relação com a formação dos pais. Pais com nível educacional mais alto fazem mais tarefas de estimulação cognitiva com os filhos. Leem mais livros, contam mais histórias, falam mais.”
Um estudo clássico feito na Universidade do Kansas mostrou que crianças pobres ouvem, em média, 32 milhões de palavras a menos nos primeiros quatro anos do que as nascidas em berço de ouro. No total, elas escutam 13 milhões de palavras contra 45 milhões ouvidas pelos rebentos ricos. Além da escola, os amigos parecem exercer um papel relevante na inteligência.
A frase da sua avó “Diga-me com quem andas e te direi quem és” foi atestada pela ciência. “Não são processos que diferenciam uma escola de outra, mas sim as redes de amizades que nelas se formam”, diz o pesquisador Roberto Colom no livro Nos Limites da Inteligência, de 2002. É sempre bom ter amigos nerds por perto.
No decorrer da vida, porém, a influência do ambiente tende a se reduzir, e a genética volta a ganhar importância. Os estudos que acompanharam gêmeos ao longo da vida mostram que o DNA tem responsabilidade por 20% da inteligência na infância, 40% na adolescência e 60% ou mais na vida adulta. Os resultados intrigam cientistas. Isso porque a lógica diria o contrário. Era de se esperar que o ambiente aumentasse sua dose de participação ao decorrer da vida, na medida em que o sujeito soma anos de estudo, enfrenta desafios profissionais e estabelece relações sociais mais ricas.
Mas não. “À medida que crescemos, selecionamos nossos ambientes conforme nossas preferências, o que faz com que na idade adulta pouca interferência social determine como sou e o que faço”, explica a pesquisadora Carmen Flores-Mendoza, da UFMG. “Depois que a inteligência se consolida, ela fica bem menos suscetível às questões ambientais”, diz a psicóloga Adriane Arteche. É uma prova de que a interação entre genes e ambientes não cessa nunca.
Como valorizar a inteligência nas crianças
Oito dicas de como ajudar no desenvolvimento dos pequenos e não deixar um talento nato passar batido
• Exponha a criança a diferentes tipos de experiência.
• Quando a criança demonstrar algum interesse específico ou talento, dê as condições para que ela os desenvolva.
• Dê a ela suporte intelectual e emocional.
• Ajude a criança a ter o que os psicólogos chamam de “mentalidade de crescimento”, elogiando o esforço e não a inteligência.
• Encoraje-a a enfrentar desafios e a assumir riscos e derrotas.
• Esqueça os rótulos: classificar uma criança como talentosa ou gênio pode ser um fardo emocionalmente pesado demais.
• Informe-se com os professores sobre as tarefas da escola. Estudantes espertos estão sempre atrás de mais desafios.
• Leve seu filho para fazer um teste de inteligência: pode revelar aptidões ou condições que exigem atenção, como a dislexia.
Não elogie. Incentive.
Veja exemplos de frases para estimular a motivação das crianças sem a bajulação, que pode se tornar um fardo emocional
• “Você fez um bom trabalho no desenho. Gostei dos detalhes dos rostos que você colocou.”
• “Você realmente estudou para os testes. Leu várias vezes o material, rabiscou e testou seus conhecimentos. Funcionou!”
• “Gostei da forma como você tentou diferentes estratégias para resolver o problema.”
• “Este foi um teste difícil, mas percebi que você não desistiu até resolvê-lo. Isso aí!”
• “Legal saber que você pegou um assunto de ciências difícil. Vai exigir muito trabalho, mas você vai aprender um monte de coisas!”