Entre anjos e demônios
Se alguém te pedisse para desenhar a figura do demônio, como ficaria o seu rabisco? Vou arriscar um palpite: o tinhoso seria vermelho, com chifres e um rabo. Aposto também que ele teria pés de bode e um tridente. Acertei?
Você não está errado. Essa, afinal, é a figura consagrada do Diabo. “Ela começou a aparecer na Idade Média Central, entre os séculos 11 e 12”, conta o Edin Abumanssur, professor de Teologia e Ciências da Religião da PUC. Antes disso, o capeta era quase sempre retratado como uma figura humana.
Satanás (que vem do hebraico e significa “adversário”) aparece na Bíblia como um oponente de Deus, mas não há grandes detalhes sobre sua aparência.
A história de Lúcifer chega a mencionar que ele era lindo, como todo anjo. Mas a associação entre Lúcifer e Satanás só apareceu depois, como interpretação dos textos sagrados do cristianismo. “No Antigo Testamento, não há nada que deixe explícito que o Diabo é um anjo caído”, conta Abumanssur.
Até na história de Adão e Eva, tirada do livro de Gênesis, não há menção ao demônio. A ideia de que ele assumiu a forma da serpente que convence o casal a comer o fruto proibido também é uma adição medieval.
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Ora, então como foi que o demônio ganhou esse visual nada atraente? A construção da figura do Diabo acontece quando a Igreja Católica expande sua influência pela Europa. Para conquistar fiéis, ela precisava de um inimigo que justificasse sua importância, unificasse o povo em um continente descentralizado e, claro, enfraquecesse as outras religiões. A solução foi personificar tudo o que há de ruim na humanidade em um único ser. Dessa maneira, a Igreja legitimava sua existência. Deus combate o mal encarnado (o Diabo), e você chega a Deus por meio da igreja.
Para tornar o vilão mais familiar, o Diabo ganhou adereços “emprestados” de outras crenças: o tridente veio de Netuno, da mitologia romana (ou Poseidon, para os gregos); os chifres, os pés de bode e o rabo são do deus grego Pã, e do deus celta Cernunno.
“O medo é sempre o primeiro incentivo ao culto religioso”, escreve o alemão Paul Carus no livro The History of the Devil. Ele defende que a presença de uma divindade maligna é importante para o passado de quase toda religião. Os mitos e as narrativas religiosas faziam a sua parte distinguindo claramente o bem e o mal. E, como precisavam transmitir os valores cristãos, era comum que viessem acompanhados de uma moral da história – formato também emprestado dos gregos, ao estilo das fábulas esopianas da Antiguidade.