O maior herói das lendas escandinavas ganhou fama em quase toda a Europa medieval.
Texto: Reinaldo José Lopes | Edição de Arte: Estúdio Nono | Design: Andy Faria | Imagens: Rômulo Pacheco e Getty Images
Éfácil se sentir perdido em meio à leitura da Saga dos Volsungos, principal fonte sobre a lenda do matador de dragões Sigurd. A montanha de informações, eventos e nomes nada fáceis de pronunciar que caracteriza a história corre o risco de deixar até o leitor mais paciente meio maluco, mas quem persiste e chega ao final da saga consegue vislumbrar alguns fios condutores da narrativa.
O primeiro desses fios condutores é a presença do próprio Odin, curiosamente. O Pai-de-Todos, com efeito, é o responsável por fundar a linhagem nobre dos Volsungos ao gerar o guerreiro Sigi com uma mulher mortal – um evento que não é narrado na saga propriamente dita, mas que parece ser parte importante do pano de fundo de todos os membros da família.
Impulsivo, invejoso e violento, Sigi está mais para uma mistura de Loki com Thor do que para um filho de Odin, mas o deus o protege mesmo depois que ele comete um assassinato e é forçado a se tornar um fora-da-lei. Aproveitando sua vocação para a matança, Sigi passa a liderar uma frota viking, atrai seguidores e, após diversas batalhas, torna-se rei de Hunaland – literalmente “terra dos hunos”. (Um rápido parêntese: o nome dessa região é uma espécie de fóssil histórico incrustado nas narrativas lendárias sobre os Volsungos.
Embora os hunos que atacaram o Império Romano do mundo real no fim da Antiguidade fossem uma tribo asiática, provavelmente aparentada aos turcos e mongóis, eles incorporaram diversos povos germânicos em seus domínios e exércitos, de modo que, na tradição oral das tribos escandinavas, os hunos passaram a ser vistos como um grupo germânico também. Dá para imaginar que a tal Hunaland seria uma vasta região de planícies vagamente localizada na Europa Central e Oriental – talvez para os lados da atual Hungria.)
Sigi gerou o menino Rerir, o qual, ao crescer, tornou-se um rei ainda mais poderoso que seu pai – mas ele não conseguia produzir um herdeiro com sua rainha. Rerir implorou a ajuda dos Æsir, de modo que Odin lhe mandou auxílio sobrenatural por meio de uma de suas valquírias: uma maçã mágica da fertilidade. Rerir comeu parte da fruta, teve relações com sua rainha, e ela finalmente engravidou.
Engravidou até demais, aliás: sua gestação durou seis anos, e nesse meio-tempo Rerir morreu em combate. Desesperada, a rainha pediu que lhe cortassem o ventre para tirar a criança de lá. O menino que nasceu já estava crescido, como seria de esperar dada a duração da gravidez, e ele beijou delicadamente sua mãe logo depois de nascer para despedir-se dela, uma vez que a rainha acabou morrendo por conta desse parto tão fora do comum.
O garoto recebeu o nome de Volsung e aumentou ainda mais o poderio e o prestígio de sua família. Casou-se com a valquíria Hljod (a mesma servidora de Odin que trouxera a maçã mágica para o pai do jovem rei, diga-se de passagem), e juntos eles tiveram dez filhos e uma filha. Entre essa ninhada real havia um casal de gêmeos, um menino chamado Sigmund e uma garota de nome Signy, “em todos os aspectos os mais distintos e promissores dos filhos do rei Volsung”, segundo o autor da saga.
Podemos dizer que os gêmeos são os protagonistas da primeira parte dessa história. A primeira cena de impacto envolvendo os dois acontece durante a festa de casamento de Signy com outro rei da região, chamado Siggeir, um evento que tem paralelos significativos com as lendas do rei Arthur. No meio da celebração, um homem desconhecido, vestido com um manto manchado e com um capuz, adentra a mansão segurando uma espada.
É alto e idoso e tem um olho só. Crava a espada no troco de uma árvore e diz: “Aquele que retirar esta espada do tronco há de recebê-la de mim como um presente, e ele próprio há de perceber que nunca teve nas mãos uma espada melhor do que esta”. (Você tem alguma dúvida de que esse vovô caolho era o próprio Odin causando de novo, gentil leitor?)
Obviamente, depois de muitos terem tentado, Sigmund se revela o destinatário da espada. O filho do rei Volsung “rapidamente retirou a espada do tronco, e era como se estivesse solta para ele”. Invejando o cunhado, Siggeir oferece a Sigmund ouro em troca da arma. Mas o príncipe dos Volsungos retruca: “Tu não tiveste menos chances do que eu de apanhar esta espada do lugar onde ela estava, se coubesse a ti possuí-la, mas, agora que ela veio às minhas mãos primeiro, tu nunca hás te tomá-la, mesmo que me ofereças todo o ouro que tens”.
Cheio de inveja, Siggeir logo planeja se vingar de Sigmund e de toda a família de sua noiva. Signy sente que algo vai dar horrivelmente errado e pede ajuda a seu pai para desfazer a união com o invejoso rei: “Eu não gostaria de partir junto com Siggeir, meu coração não se alegra ao seu lado. E eu sei, pela minha previdência e pelo dom que nossa família tem, que essa decisão há de causar-nos grande infortúnio, caso este casamento não seja desfeito rápido”.
Mas o rei Volsung não acata o pedido da filha. Mesmo consciente da desgraça e da possibilidade de traição do rei Siggeir, mantém o compromisso e recorre a um juramento: “Todos os povos hão de recontar que uma só palavra eu pronunciei ainda antes de nascer: eu fiz o juramento de que nunca fugiria, por medo, nem de fogo nem de ferro, e assim eu tenho agido até o presente – e por que não haveria eu de assim fazer na velhice?
E as moças assim não zombarão dos meus filhos nos jogos, por haverem temido sua morte. Ninguém pode evitar morrer quando é a sua vez”. Essa última frase será repetida também pelos descendentes de Volsung, muitas vezes. Talvez seja a ideia central sobre todos os heróis da saga. A certeza da morte e a sua inevitabilidade justificam e explicam a coragem desses personagens.
Os pressentimentos de desgraça da jovem rainha se concretizam com a máxima precisão. Volsung aceita um convite para visitar Siggeir e Signy no reino do genro e, ao desembarcar, ele e seus homens são atacados pelas forças de Siggeir. O velho rei morre em batalha, enquanto todos os seus filhos são capturados. Fingindo odiar os próprios irmãos, Signy pede ao marido que não os mate imediatamente, mas os mantenha presos em cepos (armações de madeira que servem como grilhões) por algum tempo, para que sofram mais.
Siggeir, perverso como era, obviamente aceita – mas acrescenta uma maldade ainda pior a essa ideia. Deixou os príncipes Volsungos presos a seus cepos na floresta, de modo que, todas as noites, uma velha loba vinha do meio da mata e matava um dos príncipes, devorando o cadáver em seguida. (Conta-se que a loba antropófaga seria ninguém menos que a mãe de Siggeir, metamorfoseada por métodos mágicos.)
Nove noites se passaram, até que apenas Sigmund ainda estava vivo. Signy, então, finalmente resolveu agir. Pediu que um servo de sua confiança fosse até a floresta e lambuzasse com mel o rosto de Sigmund, além de colocar um pouco de mel na boca do príncipe.
Naquela mesma noite, ao sentir o cheiro do mel, a velha loba se pôs a lamber o rosto de Sigmund e acabou enfiando a língua dentro da boca dele. O jovem Volsungo não se fez de rogado: mordeu com toda a força que ainda tinha a língua do bicho. A loba se debateu com tamanha ferocidade que quebrou até a madeira que prendia o jovem guerreiro, mas Sigmund se manteve firme, até que arrancou a língua do bicho, o qual caiu morto.
Depois de salvar o irmão, Signy o escondeu em uma casa debaixo da terra na floresta, enquanto seu marido acreditava estarem mortos todos os Volsungos. Coisa corriqueira nessa saga são as mães permitirem que matem seus filhos, e algumas até mesmo praticam essa ação. É o caso de Signy: ela envia os dois filhos que tivera com Siggeir para serem testados por Sigmund na floresta.
Nenhum deles se mostra corajoso o suficiente para merecer a vida, pois ambos se recusam a fazer pão com um saco de farinha que está se mexendo de forma estranha (por causa de uma serpente venenosa oculta dentro do saco). Ao verificar que os dois garotos são covardes, Sigmund os mata.
Como dar prosseguimento à linhagem dos Volsungos se só restam Sigmund e Signy? Pois bem. Certa vez, Signy pede a uma feiticeira itinerante, que aparece em seus aposentos privados, para que troque de forma com ela. Disfarçada desse modo, Signy visita seu irmão na casa subterrânea onde está escondido e dorme com ele por três noites consecutivas. Depois, volta para casa e à sua forma verdadeira. Passado o tempo natural da gestação, Signy dá à luz um menino: Sinfjotli, fruto da união dos gêmeos.
Além de dar prosseguimento à linhagem de Volsung, parece que a função de Signy é vingar sua família. Para consumar a vingança, envia seu filho para ser educado como guerreiro por Sigmund, mas antes, ao costurar as mangas de Sinfjotli, fura a carne e a pele junto. Diferentemente de seus irmãos, que mal aguentaram e choraram com os golpes da agulha, o filho de Signy e Sigmund nem sequer pisca, mesmo quando sua mãe arranca a túnica do menino com pele e tudo. Ao ser indagado sobre o machucado, Sinfjotli responde: “Um ferimento assim teria parecido pouca coisa a Volsung”.
Fica evidente que o filho é tão forte e corajoso quanto o pai e, portanto, digno dos Volsungos. A diferença entre os dois está no nível de seus “superpoderes”, digamos: enquanto Sigmund suporta qualquer tipo de envenenamento, mesmo se engolir o pior veneno, Sinfjotli só é capaz de sobreviver a venenos que atinjam sua pele. Após algumas peripécias, pai e filho conseguem se vingar de Siggeir. Antes de morrer junto ao marido, nas chamas da própria casa, Signy revela a Sigmund a verdade sobre seu filho.
Talvez incapaz de conviver com o horror do incesto ou com a memória dos garotos que matou, a filha de Volsung prefere a morte. Sigmund e Sinfjotli conseguem retomar o império de Volsung, e o primeiro se casa. Brigas de família, no entanto, mais uma vez levam a eventos trágicos. É que Sinfjotli se apaixona pela mesma princesa desejada pelo irmão da rainha e, na disputa pela moça, acaba matando o rapaz.
Para se vingar, a esposa de Sigmund desafia Sinfjotli a beber um grande chifre com bebida envenenada. Depois de recusar a taça duas vezes, na terceira provocação da rainha o príncipe aceita a bebida e morre imediatamente. Sigmund, tomado de tristeza, expulsa a esposa traiçoeira de seu reino. Passam-se os anos. Sigmund, embora com idade avançada, casa-se de novo, desta vez com Hjordis, “de todas as mulheres a mais bela e sábia”, filha do rei Eylimi.
Esse governante é o primeiro, na saga, a permitir que a filha escolha o marido. Isso, porém, desencadeia mais uma batalha, pois outro monarca desejava se casar com a moça e desafia Sigmund. Dessa vez, o velho rei encontra seu destino derradeiro, não sem lutar com bravura. O homem de um olho só, com chapéu comprido e manto com capuz, ressurge inexplicavelmente em meio à luta e, quando Sigmund o golpeia, a espada do rei se parte ao meio ao atingir a lança do velho.
Logo depois, seu exército é derrotado, e Sigmund é ferido de morte. Uma interpretação possível para essa cena misteriosa é que Odin havia decidido finalmente recrutar Sigmund para as fileiras de seus Einherjar, os heróis mortos que aguardam a batalha do fim dos tempos ao lado do deus em Valhalla.
Seja como for, Sigmund, agora moribundo, profetiza que Hjordis, que está grávida, dará à luz um filho que vingará a sua morte. A jovem rainha escapa de seu antigo pretendente e é acolhida pela família real da Dinamarca, casando-se com o herdeiro do trono. É lá que nasce o bebê Sigurd, filho de Sigmund.
“Quando citamos todos os homens e reis mais renomados das antigas sagas, deve-se colocar Sigurd em primeiro lugar em força e realizações, em zelo e coragem. Tais qualidades ele possuía mais do que qualquer outro homem nas terras do Norte”, escreve o narrador da saga ao falar do nascimento e da infância do menino.
Como era costume entre os nobres de então, Sigurd foi educado na casa de outro membro do séquito do rei da Dinamarca, chamado Regin. Ele ensinou ao menino os esportes adequados à nobreza, o jogo de xadrez e os mistérios das runas, bem como o domínio de diversas línguas.
O estranho velho de barbas longas que parecia acompanhar todos os Volsungos também resolveu oferecer um presente especial a Sigurd: certo dia, encontrou-o na floresta e o aconselhou a escolher um cavalo entre os rebanhos do rei, um animal magnífico, de pelagem cinzenta, que ninguém ainda tinha montado. “Este cavalo descende de Sleipnir, o corcel de oito patas do Pai-de-Todos. Deves criá-lo com cuidado”, disse o velho – e desapareceu. Sigurd deu ao potro o nome de Grani, e ele se tornou o melhor de todos os cavalos.
Sigurd agora tinha um corcel digno de seu nome de Volsungo: faltavam-lhe ainda uma espada e riquezas. Ambas essas coisas ele adquiriu graças aos conselhos de Regin – embora uma discórdia fatal entre os dois tenha surgido por conta disso. Tudo começou quando Sigurd visitou seu tutor e Regin lhe disse: “Tens muito pouca riqueza, e não me agrada ver-te nessa situação. Mas sei onde podes consegui-la e obter ainda honra e glória”.
Intrigado, Sigurd quis saber do que Regin estava falando. Ele então mencionou o ouro fabuloso guardado pelo dragão Fafnir em sua toca. “Sei da natureza dessa serpente”, replicou o rapaz, “e ouvi que ninguém ousa enfrentá-la por causa de sua ferocidade.”
Ao ouvir isso, Regin apelou para o orgulho do rapaz, desdenhando: “O tamanho dele não é diferente do de outras serpentes da relva. Embora sejas da raça dos Volsungos, não pareces ter a mesma valentia dos demais daquela família”. O jovem resolveu responder com humildade. “Não há motivos para zombar de mim, que acabei de deixar a infância. Mas por que me atiças com tanta veemência contra Fafnir?”, disse Sigurd.
Regin, enfim, pôs-se a explicar a situação, e logo ficou claro que uma terrível briga de família estava por trás do que ele vinha dizendo. Ocorre que Regin era o terceiro de três irmãos, filhos de um sujeito chamado Hreidmar. O próprio Fafnir era o mais velho dos irmãos, antes de ter se transformado em dragão, e o do meio se chamava Otr.
O nome do rapaz, mais uma vez, diz tudo: otr significa “lontra” em islandês antigo (o termo é muito parecido com o inglês otter, aliás), e o jovem Otr tinha o poder de se transformar em lontra, pegando peixes o dia todo perto de uma cachoeira. Já Fafnir era o mais forte e feroz dos três, enquanto Regin era o ferreiro e ourives da família, tendo aprendido a trabalhar o ferro, a prata e o ouro.
Certa vez, três dos Æsir – Odin, Loki e Hœnir – estavam passando pela cachoeira e viram ao longe Otr comendo um salmão sossegadamente. Sem saber que aquela não era uma lontra comum, mas um rapaz metamorfoseado, Loki pegou uma pedra e matou o bicho com ela. O trio de deuses, então, esfolou o animal e seguiu viagem.
Pararam para pernoitar na casa de Hreidmar e ofereceram o salmão e a carne de lontra como mantimentos para o jantar. Hreidmar imediatamente se deu conta de que Loki havia matado seu filho e exigiu um elevado preço de sangue: os deuses deveriam encher a pele da lontra com ouro por dentro e, do lado de fora, cobrir cada centímetro dela com o metal precioso também.
Como já vimos, Loki é o sujeito que cria os problemas e que os resolve depois, de modo que o Trapaceiro partiu dali para tentar obter o ouro. Foi até a deusa marinha Ran e pediu emprestada a rede dela. Voltou à cachoeira e lá usou a rede para capturar um lúcio. (Sim, “um lúcio”, não um sujeito chamado Lúcio – os lúcios são grandes peixes predadores de água doce, que podem medir quase 2 metros, com corpo em forma de torpedo, como as barracudas marinhas.)
É claro que o lúcio não era só um peixão. Loki provavelmente já sabia que o bicho era ninguém menos que o anão Andvari, que costumava se transformar pelos mesmos motivos que o pobre Otr – também gostava de comer peixe. Os anões escandinavos, assim como os de O Senhor dos Anéis, são fanáticos por metais preciosos e costumam ter tesouros, de modo que Loki lançou seu ultimato: ou Andvari lhe dava todo o seu ouro naquele momento ou poderia dizer adeus à vida.
Andvari resolveu cooperar, mas tentou ficar, às escondidas, com um único anelzinho, que seria suficiente para que, mais tarde, ele conseguisse obter de volta um tesouro similar (uma ideia curiosa, que quase enxerga um pouco de ouro como “semente” para mais ouro).
Loki, no entanto, não estava nem um pouco disposto a demonstrar misericórdia para com um anão com problemas de desapego, de modo que exigiu tudo: Andvari que ficasse na rua da amargura. Furioso, o anão abriu mão do último anel, mas amaldiçoou todos os que ousassem possuir aquela riqueza dali por diante. “Tudo bem, não é para mim mesmo, amaldiçoa à vontade”, deve ter pensado Loki.
Seja como for, o filho de Laufey voltou para a casa de Hreidmar carregando aquele ouro todo. O tesouro de Andvari foi usado para rechear e recobrir a pele de lontra. Depois de um tempo, a tarefa parecia terminada, mas o pai do rapaz-lontra assassinado notou que uma das vibrissas (os “bigodes”) da lontra estava descoberta e exigiu mais um pouco de ouro para considerar a dívida paga.
Odin pegou então o anel derradeiro, agora apelidado de Andvaranaut (“o presente de Andvari”), e o colocou sobre a vibrissa. Naquela mesma hora, Loki contou a Hreidmar sobre a maldição do anão, prevendo que ela causaria a morte do homem e a de seus filhos.
E foi o que aconteceu, óbvio. Não demorou muito para que Fafnir matasse seu pai e expulsasse Regin dali, desejando possuir sozinho o tesouro maldito. “Desde então, na forma de serpente, Fafnir se deita sobre aquelas riquezas. Depois disso, viajei até a casa do rei da Dinamarca e me tornei seu ferreiro”, disse o irmão mais novo a Sigurd, terminando sua história.
O jovem guerreiro e seu mentor firmaram então um pacto para recuperar a herança que pertencia a Regin por direito. Primeiro passo da missão: o ferreiro forjaria uma espada capaz de atravessar até mesmo a couraça de escamas de Fafnir. Não foi brincadeira. Sigurd bateu a primeira arma a sair da forja de Regin numa bigorna, e ela se quebrou.
Nova espada forjada… e mesmo resultado. Regin já estava espumando de raiva, mas Sigurd decidiu procurar sua mãe e lhe pedir os pedaços da famosa Gram, a espada de seu pai, Sigmund, que tinha se quebrado pelos sortilégios de Odin.
O ferreiro a princípio não queria trabalhar com aqueles cacos, mas enfim conseguiu transformá-los numa lâmina de estranho poder, cujas bordas pareciam brilhar como se possuídas por chamas. Mais uma vez, Sigurd atacou a bigorna – e dessa feita a cortou ao meio. Foi até um rio, colocou um chumaço de lã na água e deixou que a correnteza o conduzisse até o gume de Gram. Bastou um toque da nova espada para que a lã fosse cortada. Era, de fato, a arma perfeita.
“Deves agora cumprir teu juramento e ir ao encontro de Fafnir”, disse Regin ao rapaz. Ainda não, respondeu Sigurd. Seu primeiro dever era enfrentar o rei que tinha destronado seu pai. Os nobres dinamarqueses que tinham acolhido sua mãe grávida lhe forneceram armas e soldados, e Sigurd partiu para o ataque, matando o rei Lyngvi, assassino de Sigmund, e todos os membros masculinos de sua família. Tamanha era a fúria de Sigurd que seus braços ficaram rubros com o sangue dos inimigos até o ombro, diz a saga.
De volta à Dinamarca, festejado por todos, Sigurd é procurado mais uma vez por Regin. Concorda que chegou a hora de enfrentar Fafnir, e os dois partem para as regiões dominadas pelo dragão. O plano sugerido pelo ferreiro é simples: cavar uma trincheira no caminho que Fafnir costuma seguir quando vai ao rio beber água (pois é, parece que dragões escandinavos bebem água), esconder-se no fundo do buraco e, quando o monstro passar por cima, estripá-lo com a poderosa Gram.
Sigurd fica meio cabreiro com a ideia: e se o sangue da criatura escorrer com tanta profusão que acabe por afogá-lo ali embaixo? “Ninguém poderá te dar conselhos se tens medo de tudo”, retrucou Regin, irritado. Logo fica claro quem era o verdadeiro medroso, porém: assim que os dois chegam à região desolada habitada por Fafnir, Regin foge aterrorizado, deixando Sigurd sozinho.
Essa é a deixa para mais uma participação especial do velho barbudo, avatar de Odin, que aparece enquanto Sigurd está cavando a armadilha para o dragão e sugere que ele abra diversos buracos diferentes no entorno da trincheira principal, de modo que o sangue do monstro tenha por onde escoar.
O herói assim o faz, e não demora muito para que Fafnir surja, lançando seu veneno pelo caminho e desencadeando um tremor de terra com sua passagem. Sigurd, porém, não se deixou impressionar pelo espetáculo e esperou. Assim que se viu debaixo da criatura, cravou Gram no coração de Fafnir, de modo que a espada entrou até o cabo no corpo dele. O dono do tesouro tinha sido ferido de morte.
“Quem és, e quem é teu pai e tua família, tu que tens a audácia de levantar armas contra mim?”, rugiu o dragão. “Chamam-me a fera nobre. Não tenho pai nem mãe e viajei sozinho”, respondeu Sigurd a princípio – provavelmente porque havia a crença de que os moribundos eram capazes de lançar maldições terríveis sobre seus assassinos, se soubessem o nome verdadeiro deles.
É isso, ao menos, o que diz uma das versões da história, mas por algum motivo (talvez a necessidade de se vangloriar, ou de falar cara a cara e sem disfarces com o dragão), o rapaz acabou revelando sua identidade verdadeira, de acordo com a Saga dos Volsungos. “Este ouro que foi meu será tua morte”, ameaçou o monstro, dizendo ainda que sabia que seu irmão Regin estava por trás daquele plano e insinuando que o ferreiro em breve trairia Sigurd.
Logo fica claro que, ao menos nesse ponto, o dragão falara a verdade. Ao reencontrar Regin, aparentemente com remorso por ter ajudado a planejar a morte do próprio irmão, Sigurd o recrimina por ter fugido, o ferreiro rebate dizendo que o herói jamais teria tido sucesso se não fosse pela espada reforjada por ele, e os dois quase se desentendem abertamente.
Aparentando querer fazer as pazes, Regin pede um favor a Sigurd: quer que o guerreiro asse o coração do dragão e depois leve o órgão para que ele o coma. Sigurd aceita e começa a preparar o inusitado churrasco. Ao testar a carne com a mão para ver se já estava assada, porém, o herói acabou levando os dedos à boca e, sem querer, ingeriu o sangue de Fafnir. Para quem não sabe, o sujeito que bebe sangue de dragão imediatamente se torna capaz de entender o idioma dos pássaros.
Foi o que aconteceu com Sigurd, que se pôs a ouvir a perturbadora conversa de um bando de trepadeiras-azuis, avezinhas aparentemente inofensivas que lembram vagamente os nossos bem-te-vis. “Lá está Regin, que deseja trair aquele que confia nele”, disse um dos passarinhos. “Sigurd agiria de modo sábio se matasse Regin e tomasse o tesouro para si.”
Foi isso, de fato, o que o jovem Volsungo fez. Matou seu mentor, foi até os portões de ferro do covil de Fafnir e lá pegou todo o ouro do lugar, bem como uma espada chamada Hrotti, uma cota de malha dourada e um elmo. Parecia um peso muito maior do que Grani poderia carregar, mas bastou que o guerreiro subisse no cavalo para que o corcel saísse galopando como se nada estivesse no seu lombo.
Após as aventuras de Sigurd com Fafnir e Regin, chega a hora de o herói encontrar a sua escolhida. Com efeito, antes de matar seu traiçoeiro mentor, o filho de Sigmund também ouvira os passarinhos dizerem que ele deveria “ir até Hindarfiall, onde dorme Brynhild, e lá obterás muita sabedoria”. Brynhild é um nome de mulher, nobre leitor, e é claro que Sigurd, então livre e desimpedido, teve sua curiosidade atiçada e partiu para a região onde a tal moça estaria.
Ao chegar a Hindarfiall, Sigurd viu diante de si uma montanha no topo da qual brilhava uma grande luz, “como um fogo cuja claridade alcançasse os céus”. Aproximou-se e viu que o cume da montanha estava cercado por uma muralha de escudos, com uma bandeira tremulando no centro. Lá dentro havia uma pessoa deitada, paramentada para o combate, com elmo e armadura. Sigurd tirou-lhe o elmo e viu que se tratava de uma jovem.
A cota de malha que a cobria era tão apertada que parecia estar grudada na pele da moça, que ainda dormia. Isso não era um problema para Gram, porém: a espada forjada por Regin cortou a armadura de alto a baixo, e a donzela guerreira Brynhild, filha do rei Budli e irmã de Atli (Átila, o Huno), afinal despertou.
“Meu sono foi uma punição de Odin”, contou Brynhild. De fato, o senhor de Asgard prometera a vitória em batalha a certo rei contra seus inimigos, mas Brynhild derrotara o preferido do Pai-de-Todos, de modo que Odin a condenara a não ser mais vitoriosa em combate e a aceitar um marido. “Eu, de minha parte, fiz meu próprio juramento: jamais aceitaria me casar com alguém que conhecesse o medo”, explicou ela.
Sigurd, então, pediu que Brynhild o instruísse nos caminhos da sabedoria. Eles passaram os dias seguintes juntos, bebendo e discutindo os poderes das runas e a prudência, a coragem e a generosidade que são os atributos indispensáveis de um nobre. Ao partir, o jovem declarou que ela era a mais sábia das mulheres e jurou que desejava se casar com ela. Brynhild disse que também queria se unir a ele, e os dois se despediram como se estivessem, na prática, noivos.
Quando Sigurd deixou a morada de Brynhild e sua façanha como matador de Fafnir se espalhou pelas terras do Norte, nenhum guerreiro pôde fazer frente à fama do filho de Sigmund. “Seu nome se tornou conhecido em todas as línguas faladas ao norte do Oceano Grego [o Mediterrâneo], e assim continuará enquanto o mundo existir”, diz o autor da saga. Alto e belo, de longos cabelos castanhos, barba curta e ombros largos, cortês e eloquente, todos os guerreiros desejavam ser seus aliados – e, é claro, todas as donzelas o queriam para seu marido.
Tamanha glória se tornou o começo da perdição de Sigurd. Em suas viagens, ele chegou às terras do rei Gjuki, senhor de um domínio ao sul do rio Reno. (Tudo indica que temos aqui mais uma invasão da história real no mundo do mito: no começo do século 5º d.C., chefes germânicos da tribo dos burgúndios, com nomes muito parecidos com os de Gjuki e seus filhos, de fato governaram a região equivalente à atual Borgonha, na França.)
Sigurd foi recebido com todas as honras pelo rei e por sua família, e a rainha do lugar, a feiticeira Grimhild, decidiu que seria muito mais interessante induzir o jovem Volsungo a se casar com sua própria filha, chamada Gudrun.
Achegou-se então a Sigurd e disse: “É para nossa grande alegria que estejas alojado aqui, e desejamos fornecer a ti tudo de bom. Toma este chifre e bebe”. Sem nada desconfiar, o herói entornou a bebida e imediatamente se esqueceu da existência de Brynhild. Pouco tempo depois, por instigação da rainha Grimhild, o rei ofereceu a mão da bela Gudrun a Sigurd, e ele aceitou. Para fortalecer ainda mais a aliança entre as duas famílias, o matador de Fafnir e os dois filhos mais velhos do rei Gjuki, chamados Gunnar e Hogni, fizeram um juramento de irmandade.
A aliança entre Sigurd e os filhos de Gjuki os tornava praticamente invencíveis, mas Gunnar ainda estava solteiro. A maga Grimhild, não contente em ter ludibriado Sigurd, teve uma nova ideia brilhante: sugeriu a seu filho mais velho que conquistasse a donzela guerreira Brynhild. Gunnar pediu que Sigurd e seu irmão Hogni o acompanhassem, e os três partiram para a morada da jovem. Desta vez, em vez dos escudos que Sigurd encontrara, havia uma barreira de fogo que circundava todo o local.
Apesar de tentar com todas as suas forças, Gunnar não conseguiu saltar o cercado de chamas – seu cavalo se recusou a passar por cima das labaredas. O cunhado de Sigurd chegou a pedir Grani emprestado para tentar o salto, mas o cavalo do Volsungo tampouco colaborou. Os dois, então, usaram uma magia ensinada por Grimhild para trocar de forma, de modo que Sigurd agora tinha a aparência de Gunnar. Açulando Grani com suas esporas de ouro, Sigurd correu para as chamas e enfim as ultrapassou num salto.
Dá para imaginar os sentimentos conflitantes de Brynhild diante do aparecimento do forasteiro, que se apresentou como Gunnar, filho de Gjuki. Mas ele vencera a barreira de fogo e provara sua coragem; assim, após muita insistência, ela concordou em se casar com o recém-chegado. Por três noites, Sigurd se deitou na mesma cama que a donzela guerreira, mas colocando Gram entre os dois (preservando-a, portanto, para o verdadeiro Gunnar).
Ao partir, recebeu das mãos de Brynhild o anel Andvaranaut, que ele próprio dera à moça anteriormente (embora não se lembrasse disso), e ofereceu a ela outro anel proveniente do tesouro de Fafnir. Depois disso, atravessou de novo as chamas e voltou à sua forma costumeira. Brynhild, pouco tempo mais tarde, casou-se com o verdadeiro Gunnar. Terminada a festa de casamento, a memória de Sigurd subitamente voltou ao normal – mas o guerreiro, diante daquela situação impossível de reverter sem grandes conflitos, nada disse a respeito.
Os dois casais não estavam destinados a viverem felizes para sempre, porém. Certo dia, quando Brynhild e Gudrun foram juntas se banhar no rio Reno, as duas se puseram a discutir sobre seus maridos, cada uma argumentando que o seu consorte era o mais célebre e valoroso. Para tentar vencer a disputa, Gudrun decidiu usar um argumento que parecia ter sido inspirado pela mente diabólica do próprio Fafnir: revelou à rival que Sigurd tomara a forma de Gunnar para conquistar Brynhild e mostrou a ela o anel Andvaranaut, o mesmo que um dia Sigurd dera à donzela guerreira e recebera dela quando tinha se passado por Gunnar.
Depois de descobrir toda a trama, Brynhild só conseguiu pensar em vingança. Em vão Gudrun tentou se desculpar; o próprio Sigurd procurou seu antigo amor e chegou a propor que ficassem juntos, mas Brynhild agora desejava destruir a todos ao seu redor e a si própria. Exigiu então que Gunnar vingasse a afronta que ela sofrera matando Sigurd. Gunnar hesitou, por causa de seu juramento de irmandade, mas então recordou que o mais novo de seus irmãos, o príncipe Guttorm, não estava ligado a Sigurd por esse tipo de obrigação.
Guttorm atacou o matador de Fafnir quando o herói estava dormindo, golpeando-o com tanta força que a ponta de sua espada atravessou o corpo de Sigurd e o colchão debaixo dele. Antes de morrer, porém, Sigurd ainda conseguiu realizar mais um feito impressionante: lançou Gram contra seu assassino, cortando Guttorm ao meio.
Nas páginas finais da saga, a maldição de Andvari passa a operar em sua máxima potência. A morte de Sigurd fez com que Brynhild, ainda que vingada, não desejasse mais viver. Apanhando uma espada, ela aplicou em si mesma um golpe e profetizou para Gudrun e os filhos de Gjuki: “Será finda toda a vossa estirpe, e serão as dores de Gudrun extremas”. Enquanto os cadáveres de Sigurd, de seu filhinho Sigmund (também assassinado a mando da donzela) e de Guttorm estavam na pira funerária, Brynhild caminhou em direção ao fogo e se lançou nele.
Usando mais uma vez sua bebida mágica, a rainha Grimhild fez com que Gudrun esquecesse a traição de seus irmãos e a forçou a se casar com Atli, rei dos hunos e irmão da finada Brynhild. Atli, porém, cobiçava o ouro de Fafnir, que agora cabia a Gunnar e a seu irmão Hogni, e os convidou para visitar suas terras com intenção de matá-los e se apossar do tesouro. Os dois se defenderam valentemente, mas acabaram mortos por Atli, o qual, por sua vez, foi assassinado por Gudrun. Era o fim das três maiores famílias reais das lendas do antigo Norte.