O clássico, com 16 mil versos, foi escrito 500 anos depois dos acontecimentos que relata. Mas o que é fato comprovado, e o que é pura imaginação de seu autor?
Texto: Agência Fronteira | Edição de Arte: Juliana Vidigal | Design: Andy Faria | Ilustrações: Caco Neves
Uma cidade às margens do Mar Egeu foi destruída pelo fogo por volta de 1200 a.C. Os arqueólogos não sabem exatamente por que a cidade foi incendiada, mas suspeitam que era um lugar importante. O povoado ficava em uma localização estratégica: na boca do estreito de Dardanelos, uma passagem de água que dá acesso ao Mar de Mármara e ao Mar Negro. Quem tinha acesso privilegiado ao hall de entrada marítimo participava do comércio que conectava os povos que viviam no Leste Europeu, Rússia, Índia e China (hoje, a região pertence à Turquia e marca a transição entre Europa e Ásia).
Era uma aldeia fortificada, com muros altos e angulados, e que fazia comércio com outras sociedades. Ela estava dentro do império hitita, uma das civilizações da Era do Bronze, período próspero da Pré-História, quando os humanos dominaram a metalurgia. Essas sociedades ruíram quase ao mesmo tempo no século 13 a.C., um apocalipse até hoje obscuro para os historiadores. Tudo indica que o incêndio da misteriosa cidade litorânea do Mar Egeu faça parte desse contexto de destruição.
Cinco séculos depois, ao redor de 750 a.C., um homem compôs um poema de 16 mil versos sobre aventuras do passado, causos ouvidos desde a infância. Os acontecimentos falavam das últimas semanas de uma guerra de dez anos que destruiu Ílios, uma importante cidade localizada às margens do Mar Egeu – conhecida como Troia no português. A obra foi batizada como Ilíada e se tornou uma das mais celebradas criações artísticas da humanidade. É um épico recheado de heroísmo e lições sobre o espírito humano que continuam atuais. Seu autor era um tal de Homero. Os historiadores estão cada vez mais convencidos de que as ruínas da cidade destruída pelo fogo são da Troia de Homero.
Por milênios, pesquisadores debateram se a Ilíada era um livro inteiramente de ficção ou se havia alguma verdade no épico. A dúvida era pertinente: na Grécia Antiga, as pessoas acreditavam nos mitos narrados por Homero. E, se não estavam convencidos da veracidade de cada verso, pelo menos conviviam com a enorme influência que o poema exercia no cotidiano. O livro cumpria uma função parecida com a Bíblia do universo cristão: ser o registro definitivo sobre as origens e o espírito de um povo.
A história começa quando a rainha Helena e o príncipe Páris se apaixonam. Mas havia problemas nesse romance. Helena era casada com Menelau, rei de Esparta, uma cidade da península do Peloponeso habitada pelo povo “aqueu”, como Homero se refere aos gregos na obra. Páris era o herdeiro de Troia. O príncipe, malandro, aproveitou uma viagem de Menelau para convencer Helena a fugir para seu reino, do outro lado do Egeu. O rei de Esparta recebeu apoio de outros reinos gregos, principalmente seu irmão, Agamêmnon, rei de Micenas, para perseguir Páris pelo mar e recuperar Helena. Assim começou o cerco a Troia.
O livro, no entanto, se concentra nos últimos dias da guerra, quando o herói grego Aquiles está furioso em função de uma disputa por causa de uma mulher e da morte de um amigo. O guerreiro faz uma espécie de greve, mas acaba voltando à batalha, num enredo de lutas mortais e acontecimentos influenciados pelos deuses. Apesar do cerco de mais de nove anos, Troia é impenetrável. Então, os gregos têm uma ideia genial: oferecem um cavalo de madeira gigante como presente aos troianos, uma espécie de proposta de paz. Os troianos levam o “presente de grego” para dentro das suas muralhas, mas, dentro dele, estavam os melhores guerreiros aqueus. Eles saltaram de dentro do cavalo, destruíram Troia e massacraram seus habitantes.
A cidade perdida
Possivelmente há muita fantasia na Ilíada. Mas nem tudo é ficção. Homero escreveu os versos em uma época na qual a civilização grega estava se reerguendo após o misterioso apocalipse de 1200 a.C. Por 500 anos, a região viveu um período de terra arrasada: não havia uma sociedade avançada nas terras que circundam o Mar Egeu, onde hoje fica a Grécia e a Turquia. Mas, antes disso, havia palácios e resquícios de cidades ricas.
Elas foram povoadas por tribos originadas nas populações indo-europeias que colonizaram a Índia, a Ásia e a Europa a partir de 4000 a.C. Os jônios ocuparam ilhas do Egeu e o litoral oriental. Os aqueus fundaram a civilização micênica, uma rede de cidades fortificadas cuja vida girava em torno de palácios. O mais importante dos povoados era Micenas, que ficava a 120 km da Atenas de hoje – governada por Agamêmnon na Ilíada.
A partir de 1600 a.C., essas cidades tomaram conta da península dos Balcãs e do Peloponeso, exatamente o território da Grécia dos tempos atuais. Ao Sul, na ilha de Creta, a civilização minoica também florescia, com seus palácios luxuosos e cheios de afrescos, cujas ruínas em Cnossos são uma das maiores atrações turísticas da Grécia de hoje. Todos falavam dialetos de grego e faziam comércio com egípcios e asiáticos, numa complexa trama de rotas mercantis.
Como poucos registros escritos sobreviveram, os historiadores seguem especulando sobre as razões do cataclisma ocorrido por volta de 1200 a.C. Há registros de “povos do mar” que desembarcavam nas cidades e colocavam fogo em tudo. Ruínas de diversas cidades ao redor do Egeu indicam que elas podem ter sido destruídas por incêndios. A hecatombe também coincide com a chegada dos dórios (outra tribo colonizadora) às penínsulas e ilhas gregas.
Durante esse mesmo período, no Egito, a inflação galopou, e as novas construções ficaram cada vez menores. Terremotos e secas atingiram a região, e populações migraram. A sequência de eventos não está clara, mas os efeitos sim: a civilização acabou naquela parte do mundo. Micênicos, minoicos e hititas sucumbiram. Dos grandes impérios da época, apenas os egípcios resistiram.
A reconstrução levou séculos. Quando Homero nasceu, novas cidades estavam crescendo, e a escrita voltava a fazer parte das sociedades. As histórias do passado opulento, no entanto, foram transmitidas de boca em boca. Eram relatos de uma época exuberante, de palácios decorados, joias de ouro, heróis invencíveis e mulheres tão bonitas que justificariam uma guerra de dez anos. Foram esses mitos românticos que provavelmente fizeram parte da infância de Homero.
Histórias que explicavam como os gregos chegaram até ali, quem eram seus inimigos (os povos orientais) e que preservaram alguns fatos sobre as civilizações da Era do Bronze. Não era um relato objetivo sobre o passado, mas o poema ensinava que aquela sociedade já havia passado uma época de esplendor, arruinada por guerras. Aquela história se popularizou, e as crianças queriam ser Aquiles ou Helena. O sucesso dos ancestrais relatado na Ilíada pode ter ajudado a turbinar uma recuperação ambiciosa, que tornaria a Grécia a mais influente civilização do mundo antigo séculos adiante.
Quase nada se sabe sobre o poeta – nem se realmente existiu ou se escreveu o livro sozinho. Por milênios, historiadores debateram a autoria da Ilíada. Tinham dúvidas se era obra de um único homem ou se não passava da compilação do trabalho de diversos bardos que cruzaram a Europa litorânea oito séculos antes de Jesus Cristo.
Hoje, os especialistas concordam que a composição possui unidade, típica da inspiração que sai da cabeça de um único homem. Mas não se sabe se esse sujeito escreveu os milhares de versos em algum papiro perdido ou se decorou tudo de cabeça – tarefa hercúlea, mas plausível numa época em que a escrita estava recém retornando à região depois de um período de trevas. Cerca de 25 anos depois, Homero teria escrito outra obra-prima: a Odisseia, que conta o retorno do guerreiro Ulisses para casa depois da Guerra de Troia, uma jornada de 20 anos recheada de aventuras contra deuses, monstros e humanos.
A verdade por trás dos mitos começou a ser revelada no século 19, quando um arqueólogo alemão fascinado por Homero começou a procurar Troia. Heinrich Schliemann estudou por conta própria e foi até a Turquia buscar pistas da mítica cidade da Ilíada. Em 1871, chegou a um pequeno morro chamado Hisarlik (“forte poderoso”, em turco), a 350 km de Istambul.
Ele escavou até o fundo da colina e encontrou nove cidades construídas uma sobre a outra ao longo de séculos. A sexta delas tem as características do sítio descrito por Homero: fundada por volta de 1600 a.C., tinha ossadas de cavalos (o que indicava a existência de um exército), muralhas anguladas e torres (descritas na Ilíada) e vasos da civilização micênica (uma prova do contato com os gregos). E havia sido demolida com fogo e pelas mãos do homem. As escavações duraram décadas. Documentos antigos ajudam na tese. Um deles cita a “terra de Wilusa”, que poderia ser uma versão de Wilios – ou Ílios, o nome grego de Troia.
Seja como for, a Ilíada conta uma verdade apoiada por fatos históricos: a região da Grécia havia sido rica na Era do Bronze. Uma ótima base para o incrível desenvolvimento que viria a seguir – e que transformaria o mundo ocidental para sempre.