Uma porção considerável da humanidade é atraída por parceiros do mesmo sexo. Saiba por que algumas pessoas nascem homossexuais. E conheça o movimento gay do mundo animal.
Texto: Maurício Horta | Edição de Arte: Estúdio Nono | Design: Andy Faria
As fêmeas dos macacos da neve – uma espécie que só existe no Japão – passam até uma semana seduzindo umas às outras, mesmo quando não faltam machos para satisfazê-las – o que não impede que elas copulem também com eles e fiquem grávidas. O carneiro-selvagem vive a maior parte do ano em sociedades estritamente homossexuais. Os machos das girafas, dos golfinhos-nariz-de-garrafa, das orcas e de muitos outros mamíferos fazem orgias gays, enquanto bonobos se beijam bastante e fazem masturbação mútua. Leões, elefantes e outros 30 mamíferos e 70 aves vivem relacionamentos homossexuais duradouros. O pássaro-cantor atrai um macho para construir um belo ninho e criar ovos abandonados.
Esses são alguns dos comportamentos homossexuais de 450 espécies descritas pelo biólogo americano Bruce Bagemihl em 1999 nas 750 páginas do livro Biological Exuberance: Animal Homosexuality and Natural Diversity (“Exuberância biológica: Homossexualidade animal e diversidade natural”, sem edição brasileira).
Desse levantamento já surgiram várias teorias. Carneiros e outros machos fazem para promover a intimidade, ligação e diminuir a agressão entre indivíduos do mesmo sexo, segundo Joan Roughgarden, professora de biologia de Stanford. Os bonobos, por exemplo, vivem em grupos de 20 ou mais indivíduos e precisam aliviar a tensão trazida pela concorrência por comida e atenção. Pássaros aumentam a chance de sobrevivência de filhotes ao cuidarem deles em parcerias homossexuais.
Ou seja, os comportamentos que favorecem a reprodução e a sobrevivência vão muito além da relação entre macho e fêmea. Mas uma coisa é um comportamento homossexual. Outra é a preferência pelo mesmo sexo em detrimento do sexo oposto. E esse comportamento é especificamente raro. Até hoje, foi observado em 8% dos carneiros domesticados – e em parte considerável dos humanos.
A sexóloga Carmita Abdo fez em 2000 um estudo com 2.835 brasileiros. Dos homens, 3,9% se declararam homossexuais e 4,7%, bissexuais; das mulheres, 1,9% se declarou homossexual e 1,2%, bissexual. Entre nós, a homossexualidade está presente em culturas por todo o globo, é constante ao longo da vida e não tem nenhuma evidência científica de que possa ser revertida.
Tudo indica, então, que a atração pelo mesmo sexo tenha uma causa biológica. Como é possível, no entanto, explicar que um possível “gene gay” tenha sobrevivido, apesar de, por definição, a homossexualidade não ajudar no sucesso reprodutivo? Que diferença física pode ser responsável por um comportamento sexual diferente do da maioria?
PARADOXO EVOLUTIVO
Richard Pillard, psiquiatra da Universidade de Boston, é gay – assim como seu irmão e sua irmã. Ele descobriu que seu pai também era. E que sua filha é bissexual. Não foi surpreendente, portanto, a escolha por sua área de pesquisa: homossexualidade em famílias.
Em seus estudos, descobriu que entre 7% e 16% dos irmãos de gays também eram gays – mais do que na população em geral. No caso de gêmeos idênticos, isso sobe para 50%. Pesquisas semelhantes foram feitas em vários países: na Austrália, encontraram-se taxas de 30% para gêmeos homens e 50% a 60% para gêmeas mulheres; na Suécia, 34% a 39% para homens e 18% a 19% para mulheres. Na Finlândia, 45% para homens e 50% para mulheres. Apesar da variação, esses estudos indicam que parte considerável da homossexualidade é herdada.
Agora, haveria um “gene gay” humano? A ciência ainda não sabe. Vamos supor que ele exista. Se assim for, temos um aparente paradoxo: homossexuais têm menor probabilidade de ter filhos, o que diminuiria a chance de levar um “gene gay” para frente. Mas a questão é mais complexa do que parece. Existem, sim, genes que sobrevivem apesar de diminuírem o sucesso reprodutivo.
Se forem recessivos, eles só se expressarão se forem herdados tanto do pai quanto da mãe (arranjo homozigoto). Já uma pessoa que o herdar de um só lado (heterozigoto) poderá passá-lo para frente “escondido”, sem que ele se expresse. E, mesmo que a homossexualidade acabe com o interesse pelo sexo oposto, homossexuais historicamente se obrigaram ou foram obrigados a se casar e ter filhos.
Por outro lado, o “gene gay” pode trazer um sucesso reprodutivo indireto. Mesmo que não tenham filhos, em famílias grandes eles podem contribuir para o êxito da reprodução de seus irmãos e irmãs, ajudando-os na criação de sobrinhos. Numa família de caçadores-coletores, um adulto sem filhos é valioso para a preservação do grupo: ele pode usar a energia que gastaria para alimentar seus rebentos indo atrás de comida para os filhos de seus irmãos.
Esses sobrinhos, no ambiente inóspito de dezenas de milhares de anos atrás, naturalmente teriam mais chance de sobreviver do que as outras crianças da savana. E levariam para frente o “gene gay” da família. Gene que tinha se manifestado apenas naquele tio, mas que nas gerações seguintes apareceria nos descendentes dos sobrinhos. Ou seja: o tal gene talvez tenha mais ajudado na reprodução de seus donos do que atrapalhado – e por isso mesmo ele continuou firme e forte.
Outra hipótese é que não há gene da homossexualidade. Ela seria só parte de um pacote de vários traços femininos – o que inclui maior empatia e menor agressividade. Homens com essas características, como já vimos, atraem mais as mulheres. Quando esse pacote vem com pouca força, o homem tem menos chance de atrair uma mulher (fica “macho demais”, digamos). Quando vem com muita força, por outro lado, ele acaba com menos chances de se sentir atraído por uma mulher.
Isso, em tese, gera a situação de equilíbrio que observamos na sociedade – o que mantém uma participação minoritária constante de gays e de ogros. Essa hipótese ganhou peso com estudos do Instituto de Pesquisa Médica de Queensland, Austrália, que mostraram que homens com leves características femininas têm um número maior de parceiras sexuais, assim como mulheres com sutis características masculinas.
CÉREBRO GAY
Não existe, portanto, nada senão hipóteses sobre um “gene gay”, “androfílico” ou “afeminado”. Mas uma coisa já está provada. Os cérebros de heterossexuais e de homossexuais têm diferenças entre si da mesma forma como existem diferenças entre os cérebros de mulheres e de homens. Em alguns aspectos, cérebros de gays se assemelham aos de mulheres heterossexuais, e os de lésbicas, aos de homens heterossexuais.
Neurocientistas acham que isso se deve à exposição à testosterona durante um período crítico, quando a pessoa ainda é um feto. Ou seja, não é nada que possa ser determinado pelos programas de televisão a que uma criança assiste ou pelas amizades que um adolescente cultiva.
Para entender como isso acontece, vamos voltar aos anos 1970, quando o neuroanatomista Roger Gorski, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, identificou pela primeira vez diferenças entre cérebros de ratos machos e fêmeas. Enquanto estudava o hipotálamo – uma região na base do cérebro com papel importante na regulação da fome, da sede e de comportamentos sexuais –, sua equipe observou que a área pré-óptica medial possuía um conjunto de células muito maior nos machos do que nas fêmeas.
Chamaram então essa área de núcleo dimórfico da área pré-óptica. Estudos seguintes mostraram essa diferença em outros mamíferos, incluindo primatas. Humanos também têm uma área correspondente, que é chamada de terceiro núcleo intersticial do hipotálamo anterior (INAH3). Em homens, ela é de duas a três vezes maior do que em mulheres.
Passadas duas décadas, o neurocientista Simon LeVay, autor do livro Gay, Straight, and the Reason Why (“Gay, Hétero e a Razão Disso”, sem edição brasileira) observou em autópsias que o tamanho do INAH3 de homens gays era menor do que em héteros. Era a primeira evidência científica de que gays tinham alguma diferença na constituição de seu cérebro.
Em 2008, o neurocientista Qazi Rahman, do Instituto Karolinska, da Suécia, comparou 90 cérebros de homens e mulheres homo e heterossexuais e identificou que gays compartilham com mulheres heterossexuais uma simetria entre hemisférios direito e esquerdo do cérebro, enquanto lésbicas e homens heterossexuais têm o hemisfério direito levemente maior. Dessa vez, a descoberta não era diretamente relacionada com o comportamento sexual, mas sim com diferenças cognitivas entre gays e héteros que já haviam sido identificadas em estudos anteriores.
Por exemplo: gays tendem a ter menor percepção espacial do que homens heterossexuais. Isso significa que eles enfrentam mais dificuldade na hora de encontrar o caminho de volta quando estão perdidos, por exemplo – sim, o clichê do marido que não gosta de pedir informação na rua porque tem certeza de que sempre sabe onde está tem base científica. Por outro lado, os gays geralmente têm maior fluência linguística, tal como mulheres.
Mas de onde vêm essas diferenças na arquitetura do cérebro de acordo com o sexo e com a orientação sexual? Para saber isso, precisamos explicar primeiro como os cérebros de homens e de mulheres se diferenciam ainda no útero da mãe. Enquanto mulheres possuem dois cromossomos X, homens têm um par XY. É um dos genes presentes no cromossomo Y – o SRY – o grande responsável pela iniciação do desenvolvimento do homem.
Sem ele, o corpo se desenvolveria dentro do “molde” feminino, sendo ou não sendo mulher. Na quinta semana da gestação de um feto masculino, o SRY instrui dois retalhos de tecido embrionário a se desenvolver em testículos, enquanto barra a formação do útero. E, da 8ª à 24ª semana, esses testículos passam a produzir altos níveis de testosterona no feto masculino.
Essa diferença hormonal entre fetos masculinos e femininos vai ser responsável por uma série de diferenças no desenvolvimento do cérebro que só ocorrem nesse período específico. Como tantos outros fatores durante a gestação, essa exposição a hormônios androgênicos varia a cada caso.
Um feto masculino pode ter, naquele período extremamente específico, uma exposição menor à testosterona, e um feto feminino pode ter uma exposição maior. Cabe aqui, portanto, uma hipótese: a de que esse nível de testosterona levará ao desenvolvimento de um cérebro com características mais femininas ou mais masculinas, independente de qual for o sexo do feto.
Isto é, mentes com aspectos masculinos ou femininos variam não só conforme o sexo da pessoa, como também entre indivíduos do mesmo sexo. Assim como homens são mais agressivos e sistematizadores do que mulheres, alguns homens podem ser mais empáticos do que outros. E isso pode se estender a seu comportamento sexual.
Se isso é determinado por genes, continua em aberto. Afinal, há mais variáveis em jogo, explica LeVay. Genes não organizam o cérebro em detalhes tão precisos. Eles apenas instruem tendências, o que dá margem para bastante variação aleatória. E há ainda influências ambientais sobre o que acontece no útero.
É o que ocorre com ratas grávidas. Quando elas passam por estresse muito forte durante o período de diferenciação sexual do cérebro de seus fetos, o nível de testosterona fica mais baixo do que o normal – e os filhotes mais tarde acabam tendo um comportamento sexual afeminado. Por exemplo, têm maior probabilidade de exibir lordose (inclinar a coluna para atrair machos) e de preferir parceiros do mesmo sexo.
BRINCAR DE BONECA
Não há mais dúvidas de que meninos e meninas nascem com cérebros diferentes, e que isso leva a diferenças cognitivas. Quando ainda são bebês, elas preferem olhar para rostos, enquanto eles preferem olhar para móbiles. Mais tarde, os garotos em geral se dão melhor em tarefas visuoespaciais, como acertar alvos e fazer rotação mental de imagens tridimensionais. São também mais ativos. Já elas em geral têm maior fluência verbal e se interessam mais por pessoas do que por objetos.
Algumas teorias afirmam que essas diferenças são resultado do encorajamento dos pais, da pressão do grupo e de outras formas de socialização. Pode haver, de fato, influência do ambiente. Mas a explicação da neurociência é outra. Como acabamos de ver, nascemos assim por causa da exposição à testosterona entre a 8ª e a 24ª semana de gestação. Uma menina pode ter um cérebro mais masculino – ou seja, mais sistematizador – e um menino pode ter um cérebro mais feminino – mais empático.
Temos agora o ponto A e o ponto B. Seria possível ligá-los e afirmar que um menino que não gosta de jogar bola vai virar gay, e uma menina que não se interessa por bonecas vai virar lésbica? Não necessariamente. Mas dezenas de estudos já mostraram uma correlação forte entre crianças que se tornarão adultos homossexuais e suas características comportamentais e cognitivas.
A maioria desses estudos se baseia em entrevistas sobre como adultos hétero e homossexuais eram na infância. Uma pesquisa canadense de 1983 concluiu que gays eram, quando crianças, fisicamente menos agressivos do que os meninos que se tornariam adultos heterossexuais. Outro estudo da UCLA com 792 pessoas mostrou que crianças que se tornariam homossexuais participavam menos de atividades típicas de seu sexo e mais de atividades atípicas. Dezenas de estudos semelhantes confirmam que a homossexualidade é relacionada a um comportamento não conformista com o gênero já na infância – mais em meninos, menos em meninas.
Um dos poucos trabalhos que, em vez de fazer retrospectiva, acompanhou o desenvolvimento de crianças foi o realizado pelo psicólogo Richard Green. Ele observou 44 meninos que diziam querer ser meninas e 35 meninos não afeminados. Dos não afeminados, todos se tornaram heterossexuais aos 18 anos. Dos 44 garotos afeminados, 11 se tornaram heterossexuais. E os demais, homo ou bissexuais.
Como outros estudos, esse mostrou que um indivíduo que não se encaixa em seu gênero na infância tem mais chance de se tornar homossexual na vida adulta, ainda que isso não ocorra em todos os casos. E o que dizer quando homossexuais amam? Nesse ponto, a diferença entre hétero e homossexuais é pequena. Estudos mostram que gays são como homens heterossexuais no forte interesse por estímulos visuais, por parceiros jovens para relacionamentos estáveis (e dão uma envelhecida quando procuram relacionamentos passageiros), e na busca por sexo sem compromisso.
A diferença é que os gays não têm de enfrentar a relutância feminina, então eles tendem a ter mais parceiros sexuais do que a média dos héteros ao longo da vida. Já lésbicas têm o mesmo baixo interesse em sexo sem comprometimento ou em parceiros múltiplos, como mulheres heterossexuais – porém, demonstram maior interesse em estímulos visuais.
E quando a questão é o ciúme? Aí gays são mais parecidos com mulheres heterossexuais, enquanto lésbicas se comportam como homens héteros. Foi o que concluiu um estudo da psicóloga Pieternel Dijkstra com 138 gays e 99 lésbicas da Holanda em 2001. Quando lhes perguntaram o que mais incomodaria, a infidelidade emocional ou sexual, gays enfatizaram mais a emocional, e lésbicas, a traição sexual.
GENE DA ANDROFILIA
Pode ser que exista um gene que leva homens à homossexualidade e faz o contrário com mulheres: elas passam a gostar mais do sexo oposto.
Uma hipótese dos pesquisadores que explicaria exclusivamente a homossexualidade masculina é a de que exista um gene responsável por engatilhar uma espécie de “atração extra” por homens: seria o “gene da androfilia”. Em mulheres, esse gene faria com que fossem “hiper-heterossexuais”, com mais vontade de fazer sexo com homens – e assim seria passado para frente com eficiência. Mas, em homens, levaria ao comportamento homossexual. Ou seja, o tal gene continuaria a se propagar ao influenciar o comportamento sexual hétero da mãe, apesar de diminuir o sucesso reprodutivo do filho homem.
Isso parece ser apoiado por estudos que mostram taxas de reprodução maior entre mulheres com parentes gays do que entre as demais, e por outros que revelam que a homossexualidade é mais comum entre meios-irmãos que são filhos da mesma mãe – e menos comuns entre os meios-irmãos que compartilham o mesmo pai. Por esse ponto de vista, os gays seriam gays por causa da mãe – só que de uma forma bem diferente daquela que Freud poderia imaginar.
HORMÔNIOS NO ÚTERO
Há quem ache que ser homossexual é uma escolha ou influência do ambiente. Mas o contato com a testosterona na barriga da mãe pode interferir nessa característica.
Segundo a neurociência, é a exposição do feto, maior ou menor, à testosterona, entre a 8ª e a 24ª semana de gestação, que faz com que uma menina tenha um cérebro mais masculino – ou seja, mais sistematizador – e um menino, um cérebro mais feminino – mais empático.
Para verificar essa hipótese – que também tem impacto em transtornos mentais relacionados à sistematização, como o autismo –, cientistas do Centro de Pesquisa do Autismo da Universidade de Cambridge fizeram vários estudos comparando o nível de testosterona no líquido amniótico de mães grávidas com as características comportamentais e cognitivas dessas crianças quando tinham entre 6 e 10 anos. E, de fato, crianças expostas a mais testosterona se tornaram mais sistematizadoras, e as expostas a uma dose menor desse hormônio se tornaram mais empáticas – independentemente de seu sexo.
Vamos dar agora um pulo para adultos homossexuais. De seis estudos com tarefas visuoespaciais, cinco mostraram que homens gays têm um desempenho pior nessas atividades do que homens heterossexuais. Dois desses estudos mostraram que lésbicas têm melhor desempenho visuoespacial do que mulheres heterossexuais. Outro experimento mediu a fluência verbal: gays e mulheres heterossexuais são mais falantes que lésbicas e homens héteros.