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Ciência

O país do agrotóxico

O Brasil é o campeão mundial no uso de pesticidas. E o Congresso está se mobilizando para que possa usar ainda mais.

por Bruno Garattoni e Ricardo Lacerda Atualizado em 10 fev 2022, 10h16 - Publicado em 24 ago 2018 17h12

o pais do agrotoxico_2

Texto: Bruno Garattoni e Ricardo Lacerda | Foto: Tomás Artuzzi |
Design: Tainá Ceccato

Texto originalmente publicado pela Super em agosto de 2018

O trabalho de Vanderlei era simples. Ele e os colegas passavam a noite preparando a chamada “calda tóxica”, uma mistura de agrotóxicos usada na lavoura de abacaxi da multinacional Del Monte Fresh em Limoeiro do Norte, interior do Ceará. Protegidos por macacão, máscara, luvas e botas, faziam 15 tonéis por dia. Vanderlei era jovem e parrudo, típico homem do campo. Mas em julho de 2008, três anos depois de entrar na empresa, começou a ter febre, dor de cabeça, náuseas e inchaço no abdômen.

Piorou, e em agosto ele não conseguia mais trabalhar. Foi internado e diagnosticado com síndrome hepatorrenal, causada por intoxicação. No dia 30 de novembro, dez quilos mais magro, Vanderlei Matos da Silva morreu. Tinha 31 anos. Sua viúva, Maria, processou a empresa. E, depois de quase uma década brigando, conseguiu um marco histórico. A Justiça deu ganho de causa, em última instância, à família Silva – e, ao fazer isso, reconheceu que uma pessoa morreu por exposição a agrotóxicos.

Vanderlei está longe de ser o único. Uma pesquisa da Universidade Federal do Ceará (UFC) com 545 trabalhadores da região constatou que quase metade apresenta sintomas de intoxicação. E a comunidade de Tomé, que fica em Limoeiro do Norte, reúne um número alarmante de crianças com malformação congênita. Um estudo que avaliou 19 pessoas, de oito famílias diferentes, encontrou cinco casos de deformações graves, como lábio leporino, ausência de braços e/ou pernas e doenças cardíacas. “São muitos casos para uma população de apenas 2 mil habitantes”, diz a médica Ada Pontes Aguiar, autora do estudo. Exames de sangue e urina mataram a charada: boa parte das crianças tinha organoclorados e piretroides, dois tipos de inseticida usados na lavoura, no organismo.   

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(Tainá Ceccato/Superinteressante)

O Brasil é o país que mais usa agrotóxico no mundo: mais de 1 bilhão de litros por ano, segundo dados do Sindiveg (associação dos produtores de pesticidas). O número assusta, mas até tem explicação – o Brasil é o terceiro maior produtor mundial de alimentos, e nossos agricultores têm de enfrentar condições técnicas difíceis, como o solo nem sempre fértil e o clima tropical, que aumenta a proliferação de todos os tipos de praga. O que impressiona é o crescimento explosivo (nos últimos 40 anos, o consumo de agrotóxicos cresceu 700%, sendo que a área plantada aumentou muito menos, 78%), e o uso de produtos que já foram banidos de outros países: um levantamento feito pela USP no ano passado constatou que 149 dos 504 pesticidas liberados no Brasil são proibidos na Europa. Os casos de intoxicação aguda por pesticidas quase dobraram na última década, chegando a 14 mil por ano. 

Em suma: o Brasil abusa dos agrotóxicos. E, no que depender do Congresso Nacional, poderá abusar ainda mais. 

No dia 25 de junho, uma comissão da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 6299/02, que ficou conhecido nas redes sociais como “PL do veneno”. Ele é de autoria do senador Blairo Maggi (PP-MT), um dos maiores produtores mundiais de soja. O texto traz 30 medidas que mudariam totalmente a situação dos agrotóxicos no Brasil. As alterações vão do mais singelo (a palavra “agrotóxico” seria banida das embalagens desses produtos, substituída por “defensivo fitossanitário”) ao mais radical: pela nova lei, o Ibama e a Anvisa não poderiam mais vetar a liberação de novos agrotóxicos, mesmo se eles apresentarem riscos ambientais ou à saúde. A palavra final seria do Ministério da Agricultura – cujo titular é, veja você, Blairo Maggi (ele se licenciou do Senado em 2016 para assumir o Ministério).

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(Tainá Ceccato/Superinteressante)

O poder ficaria nas mãos do agronegócio, que possui natural interesse em produzir o máximo possível, ainda que isso implique em utilizar mais agrotóxicos. “Há uma tentativa de fragilizar a atuação da Anvisa, que é proteger a saúde da população”, protestou a agência em nota. Esse coro é engrossado por entidades como o Instituto Nacional do Câncer (INCA), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que se manifestaram contra o projeto.

Outra novidade prevista no “PL do veneno” é a liberação de produtos que tenham efeito cancerígeno ou teratogênico (causador de deformações em bebês), desde que o risco prático seja considerado baixo. O texto é tão controverso que sua votação teve de ser adiada seis vezes. Houve até suspeita de atentado terrorista: apareceu uma mala com uma suposta bomba no Congresso (era de mentira, e havia sido deixada pelo Greenpeace).

O Ministério da Agricultura diz que a nova lei não trará risco à população, pois ele possui técnicos habilitados a avaliar a segurança dos agrotóxicos. “É um equívoco dizer que os órgãos [Anvisa e Ibama] perderão poder”, afirma Luis Rangel, secretário de defesa agropecuária do ministério. Segundo ele, após a aprovação da lei, o ministério se reunirá com a Anvisa e o Ibama para definir qual será a participação deles.

A nova lei terá de ser votada no plenário da Câmara e do Senado e passar por sanção presidencial, o que só deverá ocorrer após as eleições.

A ofensiva dos agrotóxicos no Congresso trouxe o tema para o centro das discussões e deixou muita gente preocupada e com medo. Mas, afinal, estamos mesmo “comendo veneno”, como se diz por aí?

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A dose e o veneno

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(Tomás Arthuzzi/Superinteressante)

Muita coisa aconteceu em 1517. Martinho Lutero publicou “95 Teses”, o marco zero da Revolução Protestante. Os portugueses fizeram sua primeira missão diplomática à China, o Império Otomano tomou o Egito. E o suiço Theophrastus von Hohenheim, de 24 anos, começou a trabalhar como médico no exército de Veneza. Era um total desconhecido, só mais um cirurgião tentando salvar a vida de soldados feridos. Mas viria a se tornar um gigante. Theo, que mais tarde ficaria famoso sob o pseudônimo de Paracelso, foi o primeiro a estudar a toxicidade das substâncias químicas no corpo humano, e seu possível uso como remédio. Ele descobriu uma cura para a sífilis (pequenas doses de mercúrio, que é tóxico), então epidêmica na Europa, e criou uma máxima que atravessaria os séculos: sola dosis facit venenum, ou seja, “a dose faz o veneno”. Com isso, Paracelso queria dizer que até coisas inofensivas podem se tornar venenosas se ingeridas em excesso – e até coisas muito perigosas podem ser inofensivas, ou benéficas, se ingeridas em pequena quantidade.

Esse princípio influencia a medicina até hoje, e também orienta a lógica dos agrotóxicos. Sim, eles são veneno. Mas a comida que chega à sua mesa contém uma quantidade muito, mas muito pequena deles: o limite costuma ficar entre 0,01 a 0,5 miligrama a cada quilo de alimento, dependendo do pesticida. Esse número se chama Ingestão Diária Aceitável (IDA), e é determinado por meio de testes em ratos de laboratório. As cobaias recebem uma dose de agrotóxico, todo dia, ao longo de toda a vida.

Os cientistas testam vários níveis até chegar a um que não causa danos à saúde dos ratinhos (como maior incidência de câncer, desequilíbrios hormonais, alterações na expectativa de vida etc). Então dividem esse valor por 100, para ter uma grande margem de segurança, e com isso chegam à IDA: a quantidade de resíduos de agrotóxico que um ser humano pode ingerir diariamente, ao longo de toda a vida, sem colocar sua saúde em risco. A partir daí, a Anvisa determina quantos resíduos de agrotóxico a comida pode ter. O número é calculado de acordo com o consumo médio de cada alimento (segundo dados do IBGE, cada brasileiro ingere 160 g de arroz e 180 g de feijão por dia, por exemplo). Mas como há uma margem de segurança de 100 vezes, você pode até se empanturrar de um determinado alimento sem correr risco. O importante é que os alimentos obedeçam aos limites de resíduo de agrotóxico.

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(Tainá Ceccato/Superinteressante)

E eles geralmente obedecem. No Brasil, desde 2001, a Anvisa realiza um estudo, o PARA (Programa de Análise de Resíduos em Alimentos), que coleta mais de 10 mil amostras de alimentos em todas as regiões do país – e faz testes para ver se eles estão dentro das normas, ou seja, se contêm resíduos de agrotóxicos na quantidade permitida (e somente de produtos cujo uso seja autorizado no Brasil). Alguns alimentos, como arroz, feijão e batata, quase sempre obedecem às normas; outros, como abobrinha, pimentão e uva, nem tanto. Mas, na média, o cenário não é alarmante: 80% das amostras testadas obedeciam às normas. Os alimentos que foram considerados irregulares receberam essa classificação porque, na maioria dos casos, continham resíduos de agrotóxicos não permitidos naquela cultura (o agricultor aplicou no tomate um produto que só é autorizado para uso no feijão, por exemplo), mas geralmente em doses muito baixas.

Você deve estar se perguntando: ora, como é possível que a comida contenha tão pouco resíduo de agrotóxico, centésimos de miligrama, se os agricultores esguicham o veneno diretamente sobre os alimentos? “Depois da aplicação, os pesticidas são degradados por processos químico-físicos, pela ação do sol, da temperatura ou por atividade microbiana”, explica o pesquisador Antonio Luiz Cerdeira, da Embrapa. A planta metaboliza o pesticida, ou seja, quebra as moléculas dele e as transforma em compostos que são inofensivos para ela (mas letais para insetos, ervas-daninhas, fungos e demais pragas). Os fabricantes de agrotóxico contam com esse fator ao desenvolver seus produtos, inclusive porque ele é necessário: se não acontecesse, a planta definharia ou morreria, envenenada, e os pesticidas não teriam serventia. Os micro-organismos presentes no solo também metabolizam os agrotóxicos, num processo conhecido como mineralização, e até o sol que bate sobre as plantas ajuda a decompô-los.

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Esses fatores reduzem drasticamente o nível de pesticidas na comida. Por exemplo: a quantidade de abamectina (um produto usado nas plantações de cebola, cenoura, maçã, feijão e outros alimentos) cai pela metade a cada 21 horas, segundo um estudo realizado pela FAO, a divisão alimentar da ONU. Isso significa que, uma semana após a aplicação do produto, 99% dele já sumiu. Além disso, a Anvisa determina um período de segurança, ou seja, um prazo obrigatório entre a aplicação do agrotóxico e a colheita. Ele varia conforme o pesticida e o alimento, mas geralmente é de 15 a 30 dias – justamente para que a planta, os micróbios e o sol tenham tempo de decompor os agrotóxicos.

Lavar os alimentos, ou retirar sua casca, também ajuda a reduzir ainda mais o teor de resíduos.  Isso foi comprovado por um estudo da Universidade de Massachusetts, que em 2017 analisou três métodos de lavagem de maçãs. Os cientistas compraram frutas orgânicas e aplicaram dois pesticidas nelas. No dia seguinte, as maçãs foram deixadas de molho por 15 minutos numa solução de bicarbonato, lavadas com água. O nível de um dos agrotóxicos caiu 96%, e o outro 51%. Isso supostamente acontece porque o bicarbonato quebra as moléculas dos pesticidas. O estudo só testou maçãs, ou seja, não há nenhuma garantia de que funcione com outros alimentos e pesticidas. Mas mostra que é possível reduzir o teor de resíduos.

Em suma: o grande risco dos pesticidas é para o agricultor. Para você, que não manuseia diretamente o produto, ele não é o perigo que se imagina. “Todos os estudos mostram que o consumo de alimentos tratados com pesticidas no País não representa um risco para a saúde”, afirma Eloisa Dutra Caldas, coordenadora do Laboratório de Toxicologia da Universidade de Brasília (LabTox/UNB). Mas as regras têm de ser seguidas. E aí está o grande problema: recentemente, uma série de acontecimentos foram enfraquecendo os mecanismos que o Brasil tem para regular e fiscalizar os pesticidas.

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A ofensiva do agrotóxico

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(Tomás Arthuzzi/Superinteressante)

A onda começou no ano passado, quando a Anvisa anunciou que não iria mais avaliar o “risco dietético crônico” dos alimentos, ou seja, se os resíduos de agrotóxico respeitam a IDA, e focar apenas no “risco agudo”, ou seja, de intoxicação imediata. “Isso pode dar uma impressão errada ao consumidor, levando a crer que o agrotóxico só apresenta risco nas primeiras horas, e não é bem assim”, afirma a pesquisadora Aline Gurgel, da Fiocruz. Para quem não é agricultor, o que interessa é a taxa de risco crônico, ou seja, o pouquinho de agrotóxico que vem na comida e você ingere todo dia – e a possibilidade de isso causar ou não um problema no futuro. Procurada pela SUPER, a Anvisa disse que foi apenas um mal-entendido, e continuará a medir os resíduos de agrotóxico nos alimentos, como sempre fez. “Na verdade, o programa será mais rigoroso, pois passará a incluir mais alimentos”, afirma o biólogo Marcus Venicius Pires, da Anvisa. Mas o caso gerou polêmica.

Depois veio o “PL do veneno”, acirrando a tensão. E, no dia 6 de julho deste ano, uma reviravolta digna de filme. Depois de protestar contra a ofensiva dos agrotóxicos no Congresso, a Anvisa deu um cavalo-de-pau – e criou um sistema que, na prática, facilita a liberação de pesticidas no Brasil.
Isso foi descoberto pelo site The Intercept, que teve acesso a um documento interno da agência. Nele, a Anvisa determina que, a partir de agora, qualquer agrotóxico que tiver sido aprovado nos EUA e na Europa receberá permissão de uso no Brasil, sem a necessidade de análises feitas por aqui. E isso, na opinião de especialistas, pode trazer riscos. “A [possibilidade de] intoxicação não depende apenas de características químicas. Também envolve fatores genéticos, sociais e climáticos, que são muito diferentes nos EUA, na Europa e no Brasil”, diz Aline Gurgel, da Fiocruz. Procurada pela SUPER, a Anvisa disse que a
nova política permitirá que produtos mais modernos, e menos nocivos, sejam lançados no país. Mas, na prática, é como se ela estivesse lavando as mãos. A medida é tão radical que surpreendeu até a indústria de pesticidas. “Eu soube pela imprensa, nós ainda estamos avaliando. Mas a indústria entende que os produtos [agrotóxicos] precisam ser avaliados pelos três órgãos: Ministério da Agricultura, Anvisa e Ibama”, afirma Silvia Fagnani, diretora-executiva do Sindiveg.

E há um problema maior ainda. Os estudos realizados pela Anvisa até hoje não mediram os resíduos do agrotóxico mais usado no Brasil:
o glifosato. A agência alega que esse produto requer uma “metodologia específica”, que “sobrecarrega a rotina laboratorial”, e por isso ainda não o incluiu (mas pretende fazer isso nos próximos estudos). Trata-se de uma brecha enorme, inclusive pela controvérsia envolvendo os riscos do glifosato. Em 2015, a Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (IARC) incluiu o produto em sua categoria 2A, que reúne substâncias “prováveis causadoras de câncer” em humanos. O porém é que essa categoria é um balaio que reúne desde coisas inquestionavelmente tóxicas, como o tolueno (principal ingrediente da cola de sapateiro), até coisas banais, que não são perigosas se consumidas moderadamente, como frituras e carne vermelha.

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Uma análise feita pela Fiocruz concluiu que não havia evidências de que glifosato provoca câncer. Por isso, a entidade não recomendou a proibição dele no Brasil. EUA, Japão e Canadá também decidiram manter o produto no mercado (por outro lado, ele será banido da Europa em 2022). A Anvisa está reavaliando o glifosato, e deve apresentar sua conclusão em 2019 – mas é provável que ele continue no mercado.

“Não se deve barrar o registro [uso] de nenhuma molécula somente baseado no fato de ela causar câncer em ratos. É necessário avaliar a exposição [do ser humano] e o risco”, afirma Eloisa Dutra Caldas, coordenadora do Laboratório de Toxicologia da Universidade de Brasília. Estudos realizados em ratos apontaram que o glifosato só causava danos à saúde se eles ingerissem pelo menos 15 mg diários da substância. E isso, como veremos a seguir, não acontece com seres humanos: só se você comer 1,5 kg de soja por dia.

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O glifosato e a fome

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(Tainá Ceccato/Superinteressante)

O glifosato é um herbicida, ou seja, mata plantas. É usado para limpar o solo e controlar ervas-daninhas nas lavouras de café, cacau, banana, feijão, milho e maçã, mas em doses muito baixas – do contrário, mataria também esses vegetais. A única lavoura que utiliza glifosato em grandes quantidades é a de soja, pois existe uma variedade transgênica, a Roundup Ready. Ela foi desenvolvida pela Monsanto (atualmente parte da Bayer) para ser imune ao glifosato – cujo nome comercial é Roundup.

Essa soja só deve ser colhida 56 dias após a aplicação do produto, justamente para que ele tenha tempo de se degradar. Mesmo assim, sobra um resíduo de glifosato, e ele não é desprezível: no Brasil, cada quilo de soja pode ter até 10 mg de resíduos do produto. É muito mais do que os demais agrotóxicos (que ficam entre 0,01 e 0,5 mg). Poderia ser ainda pior – os EUA e a Europa admitem 20 mg de resíduo do produto em cada quilo de soja. 

Mas o real risco disso precisa ser colocado em perspectiva. “Ninguém consome o grão de soja [in natura]”, afirma Pires, da Anvisa. De fato. Soja não é como arroz, feijão, tomate, alface e outros alimentos que colocamos na boca todos os dias. Ela está presente, como ingrediente, em alimentos industrializados. E há quem beba leite de soja (cujo nível de glifosato a Anvisa pretende começar a medir). Mas a maior parte da soja é utilizada como ração animal. Ela contém resíduos de glifosato, mas isso não resulta em risco à saúde humana. Estudos em que bois, vacas, porcos e galinhas foram alimentados com doses altíssimas de glifosato, centenas de vezes acima do permitido, constataram que a transferência dele é baixa: mesmo nessa situação extrema, a carne, o leite e os ovos continham pouco glifosato, menos de 0,1 mg por quilo de alimento. Na prática, esse nível já baixo acaba sendo ordens de magnitude menor – chegando a indetectável.

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(Tainá Ceccato/Superinteressante)

Como acontece com os demais pesticidas, o maior risco do glifosato é para o agricultor – especialmente se ele não tomar todas as medidas de segurança. Um estudo publicado em 2017 pela Universidade Vale do Rio Verde, em Minas Gerais, analisou as práticas de trabalhadores rurais do Recôncavo Baiano. Dos 60 lavradores entrevistados, 76,7% não utilizavam todos os equipamentos de proteção, 80% não liam a bula dos agrotóxicos, e 66,7% não descartavam as embalagens de forma correta.

Em julho, a Justiça americana aceitou os processos de mais de 400 agricultores e jardineiros, que utilizavam glifosato e alegam ter desenvolvido câncer por causa disso. No primeiro processo, movido pelo zelador DeWayne Johnson, de 46 anos, a Monsanto perdeu e foi condenada a pagar US$ 289 milhões. Johnson cuidava do jardim de uma escola em São Francisco, e aplicava glifosato 2 a 3 vezes por mês (usou 150 galões do produto, ao longo de vários anos). No julgamento, admitiu que às vezes gotículas do produto caíam em seu rosto – e uma vez, quando o equipamento de aplicação deu defeito, ele ficou encharcado de glifosato. Desenvolveu câncer no sistema linfático, e está em fase terminal. A Monsanto vai recorrer. “Há mais de 800 estudos apontando que o glifosato não causa câncer”, afirma Scott Partridge, vice-presidente da empresa. Se um número razoável de agricultores ganhar na Justiça, isso poderá criar uma onda contrária ao uso do produto – como aconteceu, nos anos 1990, com a indústria do tabaco nos EUA. Mas, com ou sem glifosato, os agrotóxicos continuarão fazendo parte do mundo moderno. Inclusive porque, se eles não existissem, poderia ser pior.

No século 19, a Irlanda dependia de apenas um alimento: a batata, que o explorador Walter Raleigh trouxera das Américas. Até que um fungo, o Phytosphora infestans, surgiu do nada e começou a devastar as lavouras do país. Como os agrotóxicos não existiam, os irlandeses não tinham como se defender – e a Grande Fome, como ficou conhecida, durou cinco anos e matou 1 milhão de pessoas. Outro milhão emigrou para o Canadá e os EUA. Dentro dessa massa de imigrantes estavam as famílias de Henry Ford e John Kennedy: que ordenou, nos anos 1960, a realização dos estudos científicos que acabaram levando à proibição do DDT, um dos principais agrotóxicos da época.

O mundo dá voltas. Pode até ser que, daqui a algumas décadas, a ciência descubra que os níveis de pesticida atualmente considerados seguros
na verdade não o são. Mas o que ela tem a dizer, hoje, é que os resíduos presentes nos alimentos não apresentam risco – desde que as normas e os limites de uso dos agrotóxicos sejam obedecidos. Só que isso não depende apenas da ciência. Também tem a ver com algo mais subjetivo e obscuro, mas nem por isso menos importante: a política.

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