Texto: Bruno Garattoni e Ricardo Lacerda | Foto: Tomás Artuzzi |
Design: Tainá Ceccato
Texto originalmente publicado pela Super em agosto de 2018
O trabalho de Vanderlei era simples. Ele e os colegas passavam a noite preparando a chamada “calda tóxica”, uma mistura de agrotóxicos usada na lavoura de abacaxi da multinacional Del Monte Fresh em Limoeiro do Norte, interior do Ceará. Protegidos por macacão, máscara, luvas e botas, faziam 15 tonéis por dia. Vanderlei era jovem e parrudo, típico homem do campo. Mas em julho de 2008, três anos depois de entrar na empresa, começou a ter febre, dor de cabeça, náuseas e inchaço no abdômen.
Piorou, e em agosto ele não conseguia mais trabalhar. Foi internado e diagnosticado com síndrome hepatorrenal, causada por intoxicação. No dia 30 de novembro, dez quilos mais magro, Vanderlei Matos da Silva morreu. Tinha 31 anos. Sua viúva, Maria, processou a empresa. E, depois de quase uma década brigando, conseguiu um marco histórico. A Justiça deu ganho de causa, em última instância, à família Silva – e, ao fazer isso, reconheceu que uma pessoa morreu por exposição a agrotóxicos.
Vanderlei está longe de ser o único. Uma pesquisa da Universidade Federal do Ceará (UFC) com 545 trabalhadores da região constatou que quase metade apresenta sintomas de intoxicação. E a comunidade de Tomé, que fica em Limoeiro do Norte, reúne um número alarmante de crianças com malformação congênita. Um estudo que avaliou 19 pessoas, de oito famílias diferentes, encontrou cinco casos de deformações graves, como lábio leporino, ausência de braços e/ou pernas e doenças cardíacas. “São muitos casos para uma população de apenas 2 mil habitantes”, diz a médica Ada Pontes Aguiar, autora do estudo. Exames de sangue e urina mataram a charada: boa parte das crianças tinha organoclorados e piretroides, dois tipos de inseticida usados na lavoura, no organismo.
O Brasil é o país que mais usa agrotóxico no mundo: mais de 1 bilhão de litros por ano, segundo dados do Sindiveg (associação dos produtores de pesticidas). O número assusta, mas até tem explicação – o Brasil é o terceiro maior produtor mundial de alimentos, e nossos agricultores têm de enfrentar condições técnicas difíceis, como o solo nem sempre fértil e o clima tropical, que aumenta a proliferação de todos os tipos de praga. O que impressiona é o crescimento explosivo (nos últimos 40 anos, o consumo de agrotóxicos cresceu 700%, sendo que a área plantada aumentou muito menos, 78%), e o uso de produtos que já foram banidos de outros países: um levantamento feito pela USP no ano passado constatou que 149 dos 504 pesticidas liberados no Brasil são proibidos na Europa. Os casos de intoxicação aguda por pesticidas quase dobraram na última década, chegando a 14 mil por ano.
Em suma: o Brasil abusa dos agrotóxicos. E, no que depender do Congresso Nacional, poderá abusar ainda mais.
No dia 25 de junho, uma comissão da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 6299/02, que ficou conhecido nas redes sociais como “PL do veneno”. Ele é de autoria do senador Blairo Maggi (PP-MT), um dos maiores produtores mundiais de soja. O texto traz 30 medidas que mudariam totalmente a situação dos agrotóxicos no Brasil. As alterações vão do mais singelo (a palavra “agrotóxico” seria banida das embalagens desses produtos, substituída por “defensivo fitossanitário”) ao mais radical: pela nova lei, o Ibama e a Anvisa não poderiam mais vetar a liberação de novos agrotóxicos, mesmo se eles apresentarem riscos ambientais ou à saúde. A palavra final seria do Ministério da Agricultura – cujo titular é, veja você, Blairo Maggi (ele se licenciou do Senado em 2016 para assumir o Ministério).
O poder ficaria nas mãos do agronegócio, que possui natural interesse em produzir o máximo possível, ainda que isso implique em utilizar mais agrotóxicos. “Há uma tentativa de fragilizar a atuação da Anvisa, que é proteger a saúde da população”, protestou a agência em nota. Esse coro é engrossado por entidades como o Instituto Nacional do Câncer (INCA), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que se manifestaram contra o projeto.
Outra novidade prevista no “PL do veneno” é a liberação de produtos que tenham efeito cancerígeno ou teratogênico (causador de deformações em bebês), desde que o risco prático seja considerado baixo. O texto é tão controverso que sua votação teve de ser adiada seis vezes. Houve até suspeita de atentado terrorista: apareceu uma mala com uma suposta bomba no Congresso (era de mentira, e havia sido deixada pelo Greenpeace).
O Ministério da Agricultura diz que a nova lei não trará risco à população, pois ele possui técnicos habilitados a avaliar a segurança dos agrotóxicos. “É um equívoco dizer que os órgãos [Anvisa e Ibama] perderão poder”, afirma Luis Rangel, secretário de defesa agropecuária do ministério. Segundo ele, após a aprovação da lei, o ministério se reunirá com a Anvisa e o Ibama para definir qual será a participação deles.
A nova lei terá de ser votada no plenário da Câmara e do Senado e passar por sanção presidencial, o que só deverá ocorrer após as eleições.
A ofensiva dos agrotóxicos no Congresso trouxe o tema para o centro das discussões e deixou muita gente preocupada e com medo. Mas, afinal, estamos mesmo “comendo veneno”, como se diz por aí?