O primeiro registro conhecido de um tumor é de 2600 anos antes de Cristo, em um papiro egípcio. Desde então, a busca da cura é uma obsessão da humanidade.
Texto: Bruna Reis | Edição de Arte: Caju Design
Design: Andy Faria | Imagens: Otávio Silveira
primeira vez em que se mencionou o câncer na história da humanidade foi em um papiro egípcio do ano 2600 antes de Cristo. Lá estava o relato de 48 doenças feito pelo médico egípcio Imhotep. A doença número 45 foi descrita como “massas salientes no peito e que se espalharam pelo peito”, frias, duras e densas como uma fruta. “Dificilmente haveria uma descrição mais vívida do câncer de mama”, escreve Siddhartha Mukherjee no livro O Imperador de Todos os Males – Uma Biografia do Câncer (Companhia das Letras. 2014).
Mas, na seção intitulada “Terapia”, apenas uma nada animadora frase: “Não existe.” Depois dessa, ficamos sem notícias da doença por 2 mil anos – só aparece de novo em relatos de Heródoto, em 440 antes de Cristo. Nos textos, estava a história de Atossa, rainha da Pérsia, que, no meio de seu reinado, descobriu um caroço que sangrava em seu peito – provavelmente um câncer de mama em processo inflamatório.
Envergonhada, ela preferiu se esconder enrolada em lençóis a procurar a ajuda dos melhores médicos. Um escravo grego chamado Democedes convenceu Atossa a extrair o tumor. Logo depois da operação, a rainha não é mais citada nos textos. Não se sabe se ela voltou a ter tumores ou como e quando morreu, mas o procedimento parece ter funcionado: como Democedes salvou sua vida, a rainha persa, cheia de gratidão, convenceu seu marido Dario a não invadir a Cítia, mas que virasse a campanha em direção à Grécia.
Tudo porque Democedes queria voltar à sua terra natal. O câncer teria, portanto, influenciado um dos momentos decisivos da História – as guerras entre persas e gregos. A verdade é que os “cânceres” descritos por Imhotep e Heródoto podem ter sido outras doenças. Os únicos casos de câncer comprovados na história vêm de tecidos malignos que foram preservados.
O ano era 1990 e o local, um cemitério de mil anos, em uma planície da ponta meridional do Peru, no deserto de Atacama. Um lugar que não sabe o que é chuva desde que passou a ser registrado historicamente, e é o túmulo de múmias da tribo de chiribaya. Na região, o clima é perfeito para o fenômeno de mumificação. Naquele ano, Arthur Aufderheide, especialista em paleopatologia (ele realizava autópsias em restos mumificados), encontrou 140 múmias.
Entre elas, estava a “massa bulbosa” de mil anos de idade, preservada milhares de anos no antebraço esquerdo de uma mulher mumificada.Tratava-se de um tumor ósseo maligno, conhecido pelos médicos como osteossarcoma. Um câncer mumificado, escreveu Mukherjee.
Arqueólogos também encontraram muitos vestígios da passagem da doença: uma múmia egípcia de dois mil anos que tinha um tumor invadindo o osso da bacia e um maxilar datado de 2 milhões de anos atrás, com uma forma de linfoma, encontrado na África meridional. Se essa descoberta representa realmente traços da história do câncer, ele pode ser uma das doenças mais antigas do mundo.
O caranguejo
Nomes de doenças antigas nos contam histórias, e, no caso do câncer, não poderia ser diferente. Na literatura médica, foi por volta de 400 a.C. que um termo para câncer apareceu pela primeira vez, via Hipócrates, considerado o pai da medicina: karkinos, vindo da palavra grega que significa caranguejo. Descrevia um tumor com vasos sanguíneos inchados à sua volta, que fez o médico lembrar de um caranguejo enterrado na areia, com as patas abertas. A definição de câncer de Hipócrates não é a mesma que conhecemos hoje.
Os karkinos eram os tumores grandes, superficiais e visíveis a olho nu: de mama, de pele, pescoço ou língua, sem distinção entre malignos e benignos. Hipócrates dizia que o corpo humano era composto de quatro fluídos cardeais chamados humores, que regulavam a saúde. Um desses fluídos, a bile negra, também responsável pela depressão, foi atribuída ao câncer pelo médico grego Claudius Galeno. O câncer seria resultado de uma superdose interna de bile. Galeno estava falando de um princípio do câncer: tratá-lo cirurgicamente muitas vezes não resolvia, pois a bile continuaria jorrando pelo corpo.
Em vez de se arriscarem em cirurgias, os pacientes preferiam os remédios sistêmicos usados por Galeno, como extrato de chumbo e arsênico, presa de porco do mato, pulmão de raposa, raspa de marfim e alguns purgativos e laxantes – que, claro, não faziam nem cócegas.
Por volta de 1538, um estudioso belga do corpo humano, que acabou por se tornar o pai da anatomia moderna, Andreas Vesalius, ao realizar estudos para confeccionar seu mapa anatômico, nunca encontrou a tal bile negra. Achou até outro dos quatro humores, a sua irmã do bem, a bile amarela no fígado. Vesalius não anunciou sua descoberta, por vir de uma geração que acreditava na teoria galênica, mas em seus desenhos deixou uma mensagem que dizia o contrário.
Em 1703, um anatomista de Londres, Matthew Baillie, fez o mapa do corpo em sua condição doente, descrevendo tumores malignos de pulmão, estômago e testículos. Mas nada da bile. Era documentado o fim da era dos humores e um novo início para a cirurgia como tratamento.
Antes do século XX, as pessoas viviam menos e havia outros males mais latentes com que se preocupar como tuberculose, cólera, pneumonia. Muitas mortes por câncer no século XIX podem ter sido atribuídas a uma infecção ou abcesso. Desde então, o avanço tecnológico contribuiu, e muito, para diagnósticos mais precisos da doença.
No início dos anos 1950, existiam três correntes sobre as causas do câncer: os virologistas afirmavam que a culpa era de um vírus, mesmo que nenhum desse tipo tivesse sido encontrado em seres humanos (só em uma galinha); os epidemiologistas, que diziam que a causa vinha de substâncias químicas externas, mas não sabiam explicar como acontecia; e os cientistas que apostavam em genes. Entre esses, estava Sidney Farber, patologista americano, que queria produzir substâncias químicas para livrar a humanidade das células cancerígenas, sem matar as células saudáveis.
Para isso, precisava de dinheiro. E logo a lógica do mundo capitalista o colheu – conseguiria dinheiro com publicidade, na medida em que chamasse a atenção do mundo para o câncer. Conseguiu utilizando uma criança com câncer como mascote, conhecido como Jimmy. Ganhou ajuda de grupos influentes nos Estados Unidos, inclusive de times de futebol americano, e criou o Fundo Jimmy, que arrecadaria dinheiro para a construção de um hospital voltado à pesquisa. Deu certo.
Desde então, centenas de cientistas embarcaram em uma corrida alucinada para encontrar mais drogas citotóxicas que pudessem curar o câncer, ou, pelo menos, aumentar a sobrevida dos pacientes. A quimioterapia combinada com cirurgia, com mais quimioterapia, inclusive de doses megatóxicas, começou nos anos 1980. Transplantes foram feitos aos milhares – inclusive de medula para tratar câncer de mama. A história dessa doença ainda está sendo escrita. E esperamos que tenha um final feliz em breve.
A saga das células malignas no tempo
• 2600 a.C.
Escrito o papiro egípcio que se acredita ser o primeiro registro de um tumor, descrito pelo médico Imhotep: uma massa saliente no peito, fria, dura e que se espalha.
• 990 a.C.
Época em que morreu a jovem da tribo chiribaya, no Peru, em cuja múmia um paleopatologista encontrou uma “massa bulbosa” no antebraço esquerdo. Era um tumor ósseo maligno.
• 440 a.C.
Heródoto, historiador grego, relata o caso de Atossa, que foi acometida por um caroço que sangrava no peito. A rainha persa acabou amputando o seio, numa operação que influenciou a guerra entre gregos e persas.
• 160 d.C.
O médico grego Galeno define o câncer como um acúmulo de bile negra, um dos quatro humores que compunham o corpo, segundo Hipócrates, pai da medicina.
• 1538
O pai da anatomia moderna, Vesalius, publica o atlas do corpo humano, sugerindo que a bile negra de Galeno não existia.
• 1793
O anatomista escocês Matthew Baillie descarta os humores como causa do câncer.
• 1845
O médico escocês Bennet descreve pela primeira vez a leucemia, que ele achou ser uma infecção. Um médico alemão, Virchow, chama um caso parecido de “weisses Blut” – sangue branco, em alemão.
• 1846
Criada a anestesia.
• 1865
Desenvolvida a antissepsia.
• 1890
O americano William Halsted realiza a primeira mastectomia radical, em que se retiravam até costelas para prevenir que o tumor da mama retornasse. A técnica acabaria caindo em desuso apenas um século depois.
• 1896
Primeiro tratamento de câncer com raios X, após sua descoberta em 1895.
• 1898
O patologista austríaco Carl Sternberg, analisando glândulas de um paciente ao microcópio, encontrou as mesmas células gigantes que Thomas Hodgkin vira em 1823, sem dar atenção. A doença foi batizada com o nome dele, o linfoma de Hodgkin e foi o primeiro câncer que se difundia localmente, de um nódulo para outro. Uma doença local que se tornava sistêmica.
• 1902
Descoberto o rádio, elemento capaz de atacar o DNA das células e interromper sua duplicação.
• 1865
Gregor Mendel encontra a hereditariedade em ervilhas. Mais tarde, botânicos identificaram esse traço como genes. Anos depois, se descobriria que os genes eram transportados por cromossomos. Essas descobertas influenciariam definitivamente as pesquisas e descobertas sobre a genética do câncer.
• 1909
O cientista Peyton Rous descobre o sarcoma de Rous (RSV), tumor de galinhas transportado de uma célula a outra por um vírus.
• 1913
O cirurgião Albert Salomon inventa a mamografia. A técnica só foi popularizada em meados dos anos 1960.
• 1929
O bioquímico Edward Doisy extrai um hormônio chamado estrogênio da urina de mulheres grávidas, que seria usado anos mais tarde em tratamentos.
• Anos 1940
O urologista Charles Huggins descobre que, se as células prostáticas dependiam de testosterona, privá-las dele poderia curar o câncer de próstata. Para não castrar cirurgicamente os pacientes, injetou no corpo masculino uma droga criada a partir do estrogênio, o premarim, para deter a produção de testosterona. Era a castração química.
• 1948
O pediatra Sidney Farber descobre que substâncias químicas poderiam fazer o câncer regredir. Foi o pai da quimioterapia moderna.
• 1956
O pesquisador Min Chiu Li, no Instituto Nacional do Câncer (EUA), realiza a primeira cura quimioterápica de câncer em adultos.
• 1961
O oncologista Donald Pinkel inaugura a terapia total: combinações entre os remédios e aplicação diretamente no sistema nervoso uso de radiação e a continuação da quimioterapia por até três anos.
• 1967
A ex-enfermeira Cecily Sanders funda uma casa de repouso em Londres para pacientes com câncer terminal. Iniciava ali o movimento de tratamento paliativo.
• 1975
Pesquisadores detectaram o gene src, capaz de provocar alterações genéticas na célula e torná-la cancerígena. Ele foi chamado de oncogene.
• 1981
Primeiros casos de aids são confundidos com um tipo raro de câncer, o sarcoma de Kaposi. A doença era comum em homossexuais que tinham o sistema imunológico colapsado.
• 1984
Identificado o vírus HIV, que causa a aids, que é o principal fator de risco para o sarcoma de Kaposi.
• 1990
O americano Dennis Slamon desenvolve a primeira terapia-alvo, usando um anticorpo para criar a droga Herceptin, que ataca e mata as células cancerosas da mama portadoras do gene Her-2, um dos mais agressivos – com quase nenhum efeito sobre as células saudáveis.
• 1998
Células-tronco do cordão umbilical passam a ser opção para pacientes de leucemia sem doadores de medula óssea. São células semelhantes às produzidas na medula, capazes de regenerar a produção de sangue da medula óssea doente, afetada pela quimioterapia.
• Anos 2000
Criada a vacina contra o papilomavírus humano (HPV), principal causador do câncer de colo do útero, identificado nos anos 1970.