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Sociedade

Como é possível um quadro valer milhões?

A arte movimenta uma das economias mais estranhas do mundo, em que bolinhas coloridas e esterco valem fortunas. Entenda as regras desse mercado.

por Luiz Romero Atualizado em 14 ago 2019, 19h04 - Publicado em
5 ago 2019
15h32

quadro caro fundo branco
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Mark Rothko | White Center (Yellow, Pink And Lavender On Rose)
Pintada em óleo sobre tela, assinada em 1950.
207 milhões de reais

[Atenção: esta reportagem é de 2013. Os valores dos quadros e esculturas em dólares foram mantidos inalterados. A conversão para reais foi atualizada de acordo com a inflação para o ano de 2019]

“63 milhões de dólares. É um aviso. Estou vendendo”, ameaçou o leiloeiro, “64 milhões de dólares. Ainda em tempo”, continuou. Os lances, que elevavam o preço do quadro em US$ 1 milhão a cada três segundos, eram sinalizados por placas levantadas no auditório da Sotheby’s.

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A cena durou poucos minutos, tempo suficientes para que um recorde fosse quebrado: a venda de um quadro de Mark Rothko por US$ 72 milhões, ou R$ 207 milhões, representava, até aquela noite de 2007, o maior preço na carreira do pintor. E, mesmo com tanto dinheiro flutuando pelo lugar, o leiloeiro parecia entediado. Com o corpo apoiado num gabinete de madeira, o alemão Tobias Meyer recitava as cifras quase que com desdém. Aqueles milhões eram rotina.

Como explicar o preço do quadro de Rothko? E como explicar que, no mesmo leilão, Meyer venderia uma jaqueta de couro, jogada no canto de uma galeria pelo americano Jim Hodges, por R$ 1,8 milhão? Parece estranho, mas apenas à primeira vista, porque o mercado possui regras. E elas até que funcionam na hora de decifrar o aspecto quase surreal dos preços.

Para começar, é importante encarar uma informação tão incômoda quanto verdadeira: o valor tem pouca relação com a complexidade da obra. Tome como exemplo as icônicas flores de metal do americano Jeff Koons. Mesmo simples, elas chegam a custar R$ 72 milhões.

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Jeff Koons | Balloon Flower (Magenta)
Criada entre 1995 e 2000, possui cópias em azul, laranja, amarelo e vermelho.
72 milhões de reais.

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Também é preciso entender que as cifras não remetem muito à habilidade do artista. O inglês Damien Hirst, por exemplo, delega a produção de seus famosos quadros de bolinhas a assistentes, que são instruídos sobre as cores e a ordem dos círculos. Mesmo assim, uma obra dessas já foi vendida a R$ 1,8 milhão.

Tampouco importa o valor dos materiais que o artista usou. Basta olhar (ou cheirar) as criações do inglês Chris Ofili, feitas com esterco de elefante (e vendidas por mais de R$ 7,2 milhões).

Então, eliminados o toque do criador, a complexidade do quadro e o requinte dos materiais, quais fatores elevam o preço de uma obra? O principal critério é o renome do artista, a marca que sua assinatura atribui ao quadro. Para entender, pense que quando compra cadernos Moleskine ou cafés Starbucks, você não adquire apenas um bloco de papel ou um copo de bebida, mas a inclusão num grupo e o reconhecimento dos integrantes deste círculo.

Segundo Don Thompson, economista, colecionador e autor de O Tubarão de 12 Milhões de Dólares, o mesmo vale para os grandes consumidores do mercado de arte. Com a diferença de que eles possuem milhões para gastar. E que as marcas que eles consomem – um Koons, um Hirst ou um Ofili – ficam penduradas na parede.

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“Quando um artista se torna uma marca, o mercado tende a aceitar como legítima qualquer coisa que ele apresente”, conta Thompson. Isso explica o fato de uma escultura de Michael Jackson custar mais de R$ 15,8 milhões. Ela pode até não ser das mais agradáveis de ter na sala. Mas, com a etiqueta Koons, vira um objeto precioso.

Este poder da marca explica muita coisa no mercado de arte. Como o fato de que utensílios de um restaurante fundado por Hirst, depois que o lugar fechou, custaram tão caro em leilão. Dois copos de martíni, por exemplo, saíram por R$ 23 mil, enquanto seis cinzeiros foram vendidos por R$ 8,6 mil. Ou seja, quando viram marca, os artistas adquirem o toque de Midas, capaz de transformar qualquer coisa, de esterco de elefante a cinzeiros de restaurante, em ouro.

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A construção do artista

Mas, como esses nomes acabam virando uma grife? Os artistas não nascem sozinhos. Precisam do suporte de gente especializada em lançar marcas e gerenciar valores. Além disso, contam com pessoas dispostas a valorizar seus trabalhos.

Hirst, por exemplo, recebeu ajuda do inglês Charles Saatchi, o grande colecionador da nossa época. De tão reconhecido, ele consegue transferir prestígio aos produtos que consome. “Um artista pode ser citado em artigos na imprensa como ‘colecionado por Saatchi’ ou ‘cobiçado por Saatchi'”, explica Thompson, “e cada uma dessas referências provavelmente aumentará o preço de suas obras”.

Como aconteceu com a inglesa Jenny Saville, que pintou sustentada por Saatchi e vendeu suas criações para ele. Uma delas, adquirida por R$ 72 mil, dois leilões e duas décadas depois, valeria R$ 7,2 milhões, muito devido ao impulso que Saatchi deu à pintora.

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Jenny Saville | Branded
Criada e assinada no verso em 1992.
7,2 milhões de reais

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E como ele conseguiu valorizar tanto a artista? Saatchi tem duas táticas muito espertas. Na primeira, ele investe em novatos e compra sua produção enquanto os preços ainda estão baixos. Depois, quando a notícia de que Saatchi está comprando aquele artista se espalha, devido ao seu prestígio, os valores aumentam e ele vende as obras por um preço mais alto.

A segunda estratégia consiste em emprestar os quadros para museus e galerias, que ajudam a aumentar os preços com exposições. “Os museus são independentes do processo do mercado e por isso raramente têm seus juízos questionados”, conta Thompson. “Considera-se que o artista e a obra mostrados numa dessas instituições tenham ‘qualidade de museu'”.

Ainda existem outros jeitos de fazer um quadro custar milhões. O artista pode controlar a quantidade de obras que coloca no mercado. E, quanto menos produz, normalmente, mais caro elas custam. Além disso, pode batizar a criação de forma a explicar seu significado, facilitando a vida de todos que encaram o mistério.

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Hirst, por exemplo, é especialista nesta arte. Criou A Impossibilidade Física da Morte na Mente de Alguém Vivo e Algum Conforto Ganho pela Aceitação das Mentiras Inerentes a Tudo. Mesmo que Impossibilidade Física seja um tubarão num tanque e Algum Conforto, uma vaca aos pedaços, as criações ganham mais significado e ficam mais densas quando acompanhadas pela etiqueta na galeria.

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Damien Hirst | The Physical Impossibility of Death in the Mind of Someone Living
Tubarão-tigre mergulhado em formol.
34,5 milhões de reais

Depois do nascimento e do batismo, uma parte da produção será mandada diretamente para colecionadores e instituições. E são essas transações, distantes do martelo do leiloeiro, que lideram a lista de mais caras da história. Entre a primeira e a quarta posição, do francês Paul Cézanne ao austríaco Gustav Klimt, todas foram vendas privadas.

Depois, aparece o primeiro recorde de leilão: uma das quatro versões de O Grito, vendida pela Sotheby’s por R$ 345 milhões. O nome do comprador ninguém sabe: ele deu o lance por telefone e nunca foi identificado. Essas compras a distância são comuns. E não apenas com estrangeiros, mas com gente que está sentada no próprio auditório, a metros de distância do produto. Isso porque alguns compradores, para não aumentar a competição, preferem não aparecer para não dar na cara que desejam uma obra.

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A desconstrução do mercado

Todos estes preços, além de impressionantes, fazem do mercado de arte um dos mais movimentados do mundo. Para ter uma ideia, no final do ano passado, em apenas dois leilões, Sotheby’s e Christie’s arrecadaram R$ 750 milhões e R$ 820 milhões, respectivamente.

Recorde nas duas casas. Junto com os lances, o segmento continua crescendo: em 2011, o movimento de pinturas e esculturas entre ateliês e paredes gerou R$ 22 bilhões, ou R$ 4 bilhões a mais que no ano anterior.

Num setor que produz tanto dinheiro, as transações que acontecem às sombras também impressionam. A Interpol conta cerca de 40 mil obras roubadas, pouco mais que o número de objetos em exibição no Louvre, sendo que apenas cinco mil foram recuperadas nas últimas duas décadas.

Tantas peças saqueadas geram até R$ 12 bilhões, num mercado paralelo e muito lucrativo. Além dos roubos, a falta de regulação das transações e os preços que não precisam ser explicados facilitam a lavagem de dinheiro e o pagamento de propinas com obras de arte.

Um dos aspectos mais impressionante do mercado de arte é sua capacidade de crescimento, mesmo em época de crise econômica, como agora.

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Uma explicação para isso é que esse setor fica alheio à economia global, porque tem entre seus jogadores uma minoria muito, muito rica. E, mesmo com o mundo em crise, eles continuam apenas um pouco menos milionários. Fora isso, artistas aproveitam os novos compradores que surgem no mercado, vindos, principalmente, da China e da Rússia.

Na visão de Thompson, os preços das obras não param de crescer porque um negociante nunca deve diminuir o preço de uma criação. “Cada mostra deve ter preços mais altos que a anterior”, explica o economista. “Num mundo onde a ilusão de sucesso é tudo, a diminuição do preço de um artista sinalizaria que ele foi rejeitado.”

Esse fenômeno implica o “efeito catraca”. “A catraca gira em apenas uma direção”, ou seja, os preços “não podem voltar, mas estão livres para avançar”.

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Isso ajuda a explicar os milhões das vendas, os bilhões do mercado e a cara de tédio do leiloeiro Tobias Meyer, que abriu esta reportagem. Afinal, cinco anos depois do Rothko de R$ 207 milhões, aquele recorde seria superado.

Meyer comandou o leilão que vendeu outro quadro do pintor por R$ 216 milhões, em novembro de 2012. Ele estava um pouco mais empolgado, mas ainda não parecia achar nada daquilo impressionante. Ele deve saber que, enquanto existir criatividade na cabeça dos artistas, haverá arte. E, enquanto houver gente com paredes vazias e dinheiro no bolso, ela será vendida.

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Mark Rothko | Number 1 (Royal Red and Blue)
Pintada, titulada e assinada em 1954.
216 milhões de reais

Fontes: Katia Mindlin, presidente da Sotheby’s no Brasil, e Daniel Roesler, diretor da galeria Nara Roesler. Relatórios Art Market Trends 2011 e Contemporary Art Market 2011/2012, da Art Price, e Organised Crime in Art and Antiquities, do Programa de Prevenção de Crimes e Justiça Criminal da Organização das Nações Unidas. Interpol e Polícia Federal. Sotheby’s e Christie’s.

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