O uso da bicicleta como meio de transporte pode solucionar uma porção de problemas urbanos – e deixar as pessoas bem mais felizes.
Texto: Giovani de Oliveira | Design: Andy Faria | Ilustrações: Daniel Vincent
“Toda semana a gente se reunia em uma pedalada para tomar as ruas da cidade, exigindo que o poder público prestasse atenção em nós, deixasse de investir tanto na mobilidade para carros e passasse a priorizar as bicicletas”. O discurso pode soar como se fosse de um jovem cicloativista, mas foi feito por um planejador urbano que hoje já beira os 80 anos. A cidade onde ele precisou brigar por melhores condições para pedalar não está nem perto do topo no ranking de piores trânsitos do mundo. Quando participava dessas manifestações, na década de 1960, Jan Gehl era ainda um estudante na Faculdade de Arquitetura e Belas Artes de Copenhague, na Dinamarca. De lá para cá, segundo ele, sua cidade “passou os últimos 50 anos ficando um pouco melhor todos os dias”.
A capital dinamarquesa disputa com Amsterdã, na Holanda, o posto de melhor cidade para pedalar no mundo. Não por acaso, as duas também sempre aparecem entre as vencedoras dos estudos de melhores cidades para se viver no mundo. “Há uma relação entre cidades seguras e convidativas para pedalar e a qualidade de vida de quem mora nelas”, afirma Jan Gehl. Segundo ele, quando a bicicleta é usada por uma considerável parte da população como meio de transporte, a cidade fica mais silenciosa, menos poluída, os tempos de deslocamento diminuem e os gastos com saúde pública são menores.
“Copenhague e Amsterdã são casos especiais pois havia, nas duas cidades, uma enorme quantidade de ciclistas nos anos 30”, conta Jeff Risom, urbanista novaiorquino que hoje trabalha no Gehl Architects, na capital dinamarquesa. “Mas, a partir da década de 1950, as bicicletas praticamente desapareceram das vias, e as cidades foram pouco a pouco sendo tomadas pelos carros”, conta ele. Com a indústria automobilística despontando e a produção em alta escala de carros, o planejamento urbano passou a se guiar por essa máquina, e as cidades foram sendo construídas e adaptadas para serem percorridas em alta velocidade.
Qualquer iniciativa contrária era taxada de retrógrada. Não é à toa que, em 1961, a manchete do The Copenhagen Post tenha sido “Não somos italianos, mas sim dinamarqueses, e precisamos dos nossos carros!”. A polêmica que tomou a primeira página do jornal girava em torno do projeto do então prefeito Sigvard Munk de transformar uma importante avenida no centro da cidade em uma rua de pedestres, onde ficaria proibida a circulação de veículos motorizados.
Os argumentos contra a medida eram muitos. Atrapalharia o comércio, o clima com seu rígido inverno inibiria os pedestres, e a cultura dinamarquesa não se acostumaria a uma rua de pedestres. Mesmo assim, a obra foi feita e a via foi batizada de Strøget. Depois de 50 anos, em 2012, a manchete do The Copenhagen Post era “Strøget: 50 anos de efervescência no maior complexo de ruas de pedestres da Europa”.
A escala humana
O jovem Jan Gehl ficou fascinado com o que acontecia em sua cidade. Assim que a via de pedestres foi ativada, ele ia até lá todos os dias, sentava-se em um banco e observava. Fazia anotações em um pequeno caderno, que deram origem ao seu primeiro livro, Life Between Buildings (“A vida entre prédios”, sem versão em português), um tratado sobre a vida nos espaços públicos. Foi aí, em 1971, que começou a desenvolver o conceito de cidades com a escala humana, que “respeita as dimensões das pessoas para ser vista e percorrida a pé”. “A boa cidade é feita para ser apreciada em velocidade reduzida, caminhando ou pedalando, e é segura e convidativa para ser percorrida assim”, explica o urbanista.
Foi também na década de 1970 que a crise do petróleo aumentou brutalmente o preço da gasolina. Aí, os dinamarqueses e holandeses começaram a consolidar a ideia de que uma cidade que cresce com sua mobilidade norteada pelo carro não é lá uma grande ideia, e começaram a exigir do poder público mais opções para se locomover. “As manifestações eram feitas pelos cidadãos. Não por planejadores urbanos ou arquitetos, mas pelas pessoas comuns”, conta Andreas Røhl, que hoje coordena o departamento de bicicletas na prefeitura de Copenhague.
Nos anos 80, eles começaram a ser ouvidos. “Conforme mais espaço era dado às bicicletas, foi-se notando uma diminuição dos carros nas ruas de Copenhague e Amsterdã”, conta Risom. “Claro que houve algum congestionamento no começo, quando faixas de carro foram desativadas para darem lugar a ciclovias, mas com o tempo o trânsito se equilibrou e as bicicletas aumentaram”, completa ele.
Hoje a grande maioria dos urbanistas e engenheiros de trânsito que estudam o assunto afirmam que criar cidades para carros é o pior erro que se pode cometer. “Do ponto de vista da mobilidade, a melhor cidade é a que possui mais opções”, diz Risom. Segundo ele, não é por mais avenidas, mais metrô ou mais ciclovias que devemos brigar – é por mais opções.
A cidade precisa oferecer uma gama de possibilidades diversas que atendam ao maior número de necessidades de deslocamento possível – mães com filhos, adolescentes a caminho da escola, jovens em direção à faculdade, moradores de cidades vizinhas que precisam fazer grandes deslocamentos até o trabalho etc. Uma combinação de vários modais oferecidos estrategicamente é muito mais interessante do que grandes projetos que criam infraestrutura para dar vazão a um único meio de transporte – em especial se ele for o carro, que ocupa muito espaço e transporta pouca gente.
“O que grande parte dos políticos e planejadores ainda não perceberam é que a bicicleta é parte importante dessa gama de modais que pode agregar vários tipos de soluções juntas”, defende Risom. Mas aí, diante de cidades com trânsitos tão complexos como as brasileiras, vem a pergunta inevitável: é possível adaptar cidades enormes e com recordes mundiais de trânsito às bicicletas? “Claro que dá”, responde ele.
Como adaptar metrópoles
Em primeiro lugar, é preciso compreender que em cidades grandes, como São Paulo e Rio de Janeiro, fica difícil de criar, com rapidez, uma infraestrutura cicloviária que dê conta de toda a malha urbana – ou mesmo de imaginar deslocamentos superiores a 15 quilômetros feitos de bicicleta. O primeiro passo para adaptar essas cidades, segundo Risom, é integrar a infraestrutura cicloviária ao transporte público existente, criando bicicletários em estações centrais. “Assim, parte dos deslocamentos pode ser feita de bicicleta, parte de transporte público”, explica o urbanista.
Outra medida importante é reduzir a velocidade máxima permitida em vias urbanas. Em cidades europeias, é muito comum a criação das Zonas 30, áreas tranquilas dentro de bairros onde a velocidade máxima permitida é 30 km/h. “Assim, esses locais ficam mais seguros e agradáveis para que as pessoas possam transitar com outros modais não motorizados ou mesmo a pé”, explica Jessica Roberts, urbanista da empresa de planejamento cicloviário Alta Planning, de Portland, Oregon.
Lendo isso, um motorista pode pensar “eu mal saio do lugar com avenidas onde a velocidade máxima permitida é 60 km/h, e querem deixar o trânsito ainda mais lento”. Mas é justamente aí que mora um paradoxo interessante: em geral, quanto menor a velocidade máxima permitida, maior a média desenvolvida.
Em São Paulo, apesar dos limites altos, no horário de rush, a velocidade média dos carros é 13 km/h. Isso significa que, se dirigir na capital paulista às seis da tarde, você estará mais lento do que uma galinha. Quando a velocidade máxima permitida diminui, a via fica automaticamente mais segura para encorajar outras maneiras de se locomover – e a bicicleta é a mais comum de ser adotada nesses casos. Com menos carros na rua, a fluidez dos veículos aumenta e a velocidade média pode subir acima dos 13 km/h.
Mas é claro que o poder público precisa abraçar a agenda de criar cidades melhores para as pessoas. E, mais uma vez, Copenhague tem importantes lições para compartilhar. A prefeitura da capital dinamarquesa possui, em sua Secretaria de Transportes, um Departamento de Vida Urbana, que tem como objetivo melhorar as condições para deslocamentos a pé e de bicicleta.
Esse departamento mede a eficiência de uma rua a partir do número de pessoas que conseguem transitar por ela em um dado período de tempo. É uma lógica bem diferente da dos órgãos de engenharia de tráfego brasileiros, que medem a eficiência das ruas com base no número de veículos que passam por elas – não importando se cada veículo é um carro com apenas uma pessoa ou um ônibus com 50.
“Aqui nossa prioridade é o bem-estar das pessoas, não dos veículos”, afirma Pernille Nørby, coordenadora do departamento. É ela que está à frente da criação das chamadas “ondas verdes”, que são vias nas quais o ciclista que pedalar a 20 km/h pega todos os semáforos abertos. “A prioridade deve ser o pedestre, depois o ciclista e em seguida os veículos; e isso precisa estar claro não só na lei, mas nos espaços públicos também”, reforça Pernille.
É verdade que nem sempre as cidades contam com governantes visionários que queiram adotar novos paradigmas de mobilidade. Mas aí outros personagens entram em cena. Na cidade francesa de Lyon, o incentivo para mais deslocamentos de bicicleta veio da iniciativa privada. Em 2005, a empresa de publicidade JCDecaux criou uma rede de bicicletas públicas de aluguel, em aliança com a prefeitura da cidade.
Em troca, ganhou espaços publicitários no mobiliário urbano (traseiras e pontos de ônibus, por exemplo) que foram revendidos a marcas que queriam anunciar. A ideia foi lucrativa para todos: as empresas, a prefeitura e os cidadãos, que agora contavam com uma rede de bicicletas que podiam ser retiradas e devolvidas ao fim do seu deslocamento a um preço acessível.
O sistema de Lyon deu tão certo que foi copiado em cidades do mundo todo, como Paris, onde se chama Vélib’, Barcelona (Bicing), Cidade do México (EcoBici) e Londres (Barclay’s). No Brasil, sistemas similares estão sendo aplicados em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Recife e devem se espalhar por mais cidades. “O interessante desse tipo de iniciativa é que as bicicletas de aluguel incentivam o aumento nos deslocamentos e, quanto mais ciclistas na rua, mais seguro é para todos”, explica Risom.
“Com muitas pessoas pedalando, também é possível mapear as vias que mais precisam de infraestrutura sinalizada ou segregada”, explica Jessica. “É preciso acompanhar o crescimento do número de ciclistas com a infraestrutura adequada”, diz a urbanista. Em alguns casos, segundo ela, apenas sinalizar uma via de compartilhamento já resolve o problema.
As demandas por vias segregadas para ciclistas ficam evidentes com mais gente pedalando na rua – e aí o poder público precisa correr atrás. Ou treinar muito bem os motoristas para conviver com ciclistas. Em especial os condutores de ônibus, que estão entre os maiores responsáveis por acidentes com bicicletas. Em Londres, as faixas de ônibus são compartilhadas, por lei, com os ciclistas. Para que essa convivência seja harmônica, os motoristas recebem treinamentos constantes, que envolvem pedaladas pela cidade para que compreendam a fragilidade do ciclista diante de um ônibus e saibam como evitar colisões.
Mas, se nem as empresas e nem o poder público estiverem dispostos a facilitar para o lado dos ciclistas, o cicloativismo pode ser uma maneira de se fazer ouvir. Pelo menos foi assim em São Francisco, nos Estados Unidos. Em 1992, surgiu lá o Critical Mass, um movimento de ciclistas que tomavam as ruas toda última sexta-feira do mês em pedaladas no horário de rush. O movimento influenciou cidades no mundo todo – inclusive as brasileiras, onde é reproduzido com o nome de Bicicletada.
“Quando começamos, poucos eram os ciclistas na rua, hoje São Francisco está lotada deles”, conta Chris Carlsson, ativista e um dos criadores do movimento. “O Critical Mass é uma grande oportunidade para que pessoas interajam nos espaços públicos e percebam as qualidades da cidade que ficam invisíveis para quem está de carro”, diz Carlsson. “Uma pena que tantos políticos se recusem a ver as vantagens de investir em bicicletas”, lamenta ele. E uma dessas vantagens parece até improvável: com mais bicicletas rodando, a cidade ganha dinheiro.
Bicicleta é boa para a economia
Para tentar medir as vantagens do uso diário de bicicletas, a prefeitura de Copenhague desenvolveu uma equação que mediu o tempo de deslocamento, a necessidade de investimento em infra-estrutura e em saúde pública e os ganhos com turismo. Nesse estudo, concluiu-se que, a cada quilômetro pedalado por uma bicicleta, a cidade ganha o equivalente a R$ 0,70. Enquanto isso, a cada quilômetro percorrido por um carro, a cidade gasta o equivalente a R$ 0,30.
“A ideia de que os carros são um bem para a economia de um país é ilusória” explica Elly Blue, cicloativista de Portland, autora do blog Taking the Lane (algo como “Ocupando a pista”) e do livro How Bicycling will save the economy – if we let it (“Como a bicicleta vai salvar a economia – se nós deixarmos”, sem versão em português). Elly cita como exemplo um estudo do economista canadense Todd Litman, professor do Victoria Transport Institute (um instituto de pesquisa em mobilidade sustentável) que comparou os custos do uso de bicicletas e carros nos Estados Unidos.
Segundo o estudo, um motorista americano dirige, em média, 16 mil quilômetros por ano. Isso significa que, além dos impostos e taxas diretamente ligados aos transportes com os quais ele deve arcar como contribuinte, que somam em torno de R$ 600, ele ainda paga taxas relativas ao uso do carro (como impostos sobre a gasolina e de licenciamento do veículo) que somam uma média de R$ 700. Um ciclista, por outro lado, pedala uma média de 5 mil quilômetros anuais e contribui apenas com os R$ 600 reais iniciais.
Mas aí é que entram as chamadas externalidades, os custos do uso do carro que não são incluídos nessa conta. A estimativa é que aquele motorista que dirige 16 mil quilômetros por ano custe à cidade, levando em conta manutenções nas vias, horas perdidas no trânsito e gastos com saúde pública, cerca de R$ 6.800. Já o ciclista, que danifica menos as ruas, ocupa menos espaço, não polui e está se exercitando, custa em média R$ 75. “Nessa conta fica claro que o argumento de que os ciclistas ‘não pagam pelas vias’ é ilusório”, defende Elly.
No Brasil, o professor de economia da PUC-SP, Ladislau Dowbor, escreveu o artigo “O valor econômico do tempo livre” para elucidar a questão pegando a cidade de São Paulo como exemplo. Segundo ele, o PIB da cidade é de R$ 320 bilhões. Dividindo-o pela população, chega-se ao valor de uma renda per capita de R$ 29 mil reais, o que significa R$ 3,30 por hora por habitante. Considerando-se que cada um dos 6 milhões de paulistanos economicamente ativos perde, em média, 2 horas e 40 minutos se deslocando todos os dias, essa perda de tempo no trânsito significa que R$ 19,8 milhões são desperdiçados por hora.
Fica claro que iniciativas que diminuam o uso dos carros e incentivem os deslocamentos de transporte público, bicicleta e a pé são necessárias para uma racionalização dos gastos na cidade. A população fica mais feliz, o trânsito flui melhor e as cidades ainda ganham dinheiro. O que é que estamos esperando mesmo?