As estações do ano têm ligação com o estado de espírito dessa deusa. Uma tristeza profunda pode significar o fim das colheitas – e da própria raça humana.
Texto: Maurício Horta | Edição de Arte: Estúdio Nono | Design: Andy Faria |
Imagens: Adobe Stock e Getty Images
NOME ROMANO – CERES • DIVINDADE – DEUSA DA AGRICULTURA
A deusa que ensina aos mortais as técnicas do plantio de cereais é uma das mais antigas da mitologia grega. A origem de Deméter data ainda dos tempos em que gregos cultuavam deusas da fertilidade em vez de divindades masculinas, trazidas por invasores nômades. Ela é uma deusa mãe, e nisso se aproxima tanto de Gaia, a Terra, que em Atenas ambas compartilham o mesmo templo.
Essa deusa, filha de Cronos e Reia e irmã de Zeus, nutre uma bondade infinita para com os pobres mortais, e tão elevado é seu espírito que permanece imune à maioria das intrigas que assolam o Olimpo. Mas um episódio a transforma completamente: o rapto de Perséfone, filha que teve com o irmão Zeus.
Mãe e filha se amam tanto que a história das duas acaba se embaralhando, assim como as colheitas se confundem com as estações do ano. Mas uma decisão de Zeus as condena a uma separação tão dolorosa que Deméter cai numa depressão capaz de ameaçar a existência da humanidade. O solo hiberna e as árvores perdem suas folhas.
Tudo começa num dia em que as duas, como de costume, andam pelo Monte Etna, na Sicília, para coletar belas flores. Em certo momento, a jovem Perséfone se maravilha com um brilhante narciso que Gaia produziu sob pedido de Zeus. Mas basta a garota estender as mãos na tentativa de arrancar a flor para que a terra se abra sob ela e a menina seja levada para suas profundezas tenebrosas. Quando o eco de suas súplicas refletidas nas montanhas chega até Deméter, a menina já foi engolida pelo solo.
A mãe corre então por nove dias e nove noites por toda a Terra em busca da filha. Está tão desconsolada que nem sequer se lembra de comer a ambrosia ou beber o néctar, os alimentos que imortalizam os deuses. De todos os que questiona, nenhum é capaz de informar-lhe o paradeiro da garota.
Até que, ao décimo nascer do sol, Hécate vai até ela e a aconselha a encontrar-se com Hélio, o deus-sol. E assim faz Deméter: “Ó Hélio, ouvi o choro de minha filha como se ela tivesse sido levada à força, mas não a vi com meus olhos. Tu, que tudo vês sobre a Terra e sobre o mar, diz o que aconteceu com a querida Perséfone. Se a tiveres visto em qualquer parte, diz que deus ou que mortal a sequestrou”, suplica a deusa.
“Rainha Deméter, nenhum deus imortal deve ser responsabilizado pelo desaparecimento de sua filha, senão Zeus, que a ofereceu em casamento a Hades, guardião do Tártaro”, conta-lhe Hélio. “Sabendo que tu não aprovarias o matrimônio com um senhor de tão triste morada, o rei dos deuses a capturou. E a levou para as profundezas da escuridão.”
Nenhum desgosto poderia ser mais doloroso para Deméter do que ter sua filha predileta confinada ao inferno dos deuses. Isso enche seu coração de tamanha raiva por Zeus que ela decide abandonar o Olimpo e viver disfarçada de velha nas cidades e nos campos.
Deméter passa a vagar pela Terra, sem inspiração para trazer a fertilidade ao solo. As sementes não germinam, por mais que os bois arem a terra. Uma maldição parece se aproximar da humanidade e dos deuses. A fome está prestes a eliminar a raça dos mortais, e, com eles mortos, os moradores do Olimpo não poderiam mais ser agraciados com suas honras e sacrifícios.
Diante da ameaça à sua adoração, Zeus, o ponderado rei dos deuses, ordena a Íris, a personificação do arco colorido dos dias de sol com chuva, que vá até Deméter e lhe suplique que volte ao Olimpo. Mas o coração de Deméter não é tocado. Ela só voltará à companhia dos imortais se puder ver sua filha com os próprios olhos.
GUARDA COMPARTILHADA
Ao ouvir isso, Zeus envia Hermes até a escuridão do Tártaro para persuadir Hades a trazer Perséfone de volta à luz. Ao encontrar o rei das trevas em seu palácio com a tímida esposa, Hermes diz: “Hades, mestre dos mortos, Zeus ordena que eu traga Perséfone da escuridão para o Olimpo para que sua mãe possa vê-la. Deméter planeja esconder sob o solo todas as sementes sem permitir que elas germinem. Não há o que possa dissuadi-la de reencontrar a filha”.
Então sorri com tristeza o rei do Tártaro, que há tanto tempo não tinha em seu escuro e solitário palácio uma companhia iluminada como a da jovem Perséfone, e obedece ao irmão celeste: “Vai, Perséfone. Alegra a tua mãe, mas não deixes de nutrir o gentil sentimento de teu coração por mim, irmão do próprio Zeus. Além disso, quando estiveres aqui, receberás as maiores das honras entre os imortais”.
A moça não pensa duas vezes. Feliz, parte para encontrar a mãe. Só não sabe que outra maldição a acometerá. Antes que ela parta, Hades lhe diz que coma uma romã. Perséfone não sabe que, uma vez ingerida, essa fruta, alimento dos mortos, jamais permite que a pessoa se liberte inteiramente do Tártaro. Tão logo Deméter vê a filha, ela corre em sua direção e a abraça. Enquanto tem Perséfone nos braços, a deusa sente um medo repentino.
“Tu não comeste nada enquanto estiveste nos reinos de Hades, certo?”, pergunta a mãe. “Não escondas nada de mim. Se nada tiveres comido, morarás comigo e com seu pai, honrada por todos os deuses. Mas, se tiveres tocado alguma comida, terás de voltar para as profundezas da Terra, lá passar um terço de cada ano e conosco viver apenas os dois terços restantes. Só sairás da escuridão quando os botões florescerem na primavera.”
A resposta é desoladora: “Mãe, tenho de te dizer a verdade. Quando Hermes veio me trazer da escuridão, pulei de alegria. Mas Hades secretamente me alimentou com a doce romã”.
De início, bate a tristeza no coração das duas. Elas se abraçam fortemente, e com isso seus sentimentos aos poucos vão se tornando alegria. Zeus envia à Terra sua mãe, Reia, que traz Deméter e a filha de volta ao reino celeste. Ele aceita que Perséfone passe um terço do ano no Tártaro e dois terços com a mãe. Quando a filha vai para o inferno com seu marido, o inverno chega, já quando Perséfone volta para sua mãe, é a primavera que resplandece.
TEMPORADA DE LUTO
Ao sair disfarçada pelo mundo, inconsolável com a perda de Perséfone, a deusa quase ganha um filho adotivo.
Durante o período em que se metamorfoseou em uma idosa mortal (uma figura análoga à tristeza que sentia desde que sua filha foi parar no inferno grego), Deméter um dia se senta à beira de uma estrada, até ser vista pelas quatro filhas de Celeu, rei de Elêusis, que saíram de seus domínios para buscar água.
“Ó velha, quem és e de onde vieste? Por que estás aqui e por que não te aproximas das casas de Elêusis? Há mulheres tão velhas quanto tu nos pátios sombreados das nossas residências, e outras mais novas que poderão cuidar de ti.”
A deusa responde de modo a manter seu disfarce: “Caras crianças, meu nome é Doso, e recentemente cheguei a esta terra vinda da Ilha de Creta contra a minha vontade, fugida de meus sequestradores. Foi assim que cheguei, vagando pelas estradas sem saber em que terra estou e que povo aqui vive. Mas tende piedade de mim. Dizei para que casa devo ir. Assim trabalharei para meus mestres fazendo as atividades que cabem a uma velha como eu”.
“Ó boa mulher, nós mortais precisamos aceitar com paciência o que os deuses nos derem, mesmo que soframos, pois são mais poderosos do que nós. Se quiseres, espera aqui que nós iremos até a casa de nosso pai e contaremos tua história para nossa mãe, Metanira, para que possas ficar conosco”, é a resposta das jovens princesas.
Deméter aceita a proposta, e, em pouco tempo, as moças voltam para buscá-la. Quando atravessam a casa e encontram sua mãe, Deméter ilumina a entrada com a luz divina. Metanira então é tomada por um temor à deusa: “Ave! Estou certa de que não nasceste senão de pais nobres. Nós mortais suportamos tudo o que os deuses nos reservam.
Como vieste aqui, aceita tudo o que temos a te oferecer. Toma este meu filho e cria-o por mim até que se torne adulto. Se assim fizeres, qualquer mulher a invejará, tamanha a recompensa que lhe darei por sua educação”. A deusa se contenta com o respeito recebido e aceita a missão: “Toda glória a ti, e que os deuses te garantam boa sorte. Serei feliz em cuidar de teu garoto”.
E assim Deméter pega em seu colo o menino e se prontifica a criá-lo como um deus. Ela o alimenta de ambrosia em vez de comida e toda noite o aquece dentro de uma fogueira divina.
Pouco tempo se passa e os moradores de Elêusis já se impressionam com a velocidade com que o garoto cresce e com sua aparência divina. Mas a preocupação excessiva de sua mãe acaba impedindo que a criança se torne imortal. Certa noite Metanira observa o filho ser posto para dormir, e qual não é sua surpresa ao ver Deméter lançando-o ao fogo.
Assustada, a mãe repreende Deméter, que coloca o menino no chão e vocifera: “Tola! Cometeste um erro que jamais será retificado. Eu poderia ter feito de teu filho um imortal, mas agora não há como ele evitar o terror da morte! Sim, sou a deusa Deméter! Agora que me irritaste, teu povo terá de construir em minha honra um templo no topo de uma montanha e realizar sacrifícios para acalmar meu coração!”.
Metanira perde imediatamente a força de seus joelhos e, de tão chocada, se esquece de pegar o filho. Ao ouvirem o choro do irmão, as filhas da rainha correm para socorrê-lo, mas nunca mais ele terá tão boa ama quanto Deméter. Obediente, o rei Celeu ordena a seus súditos que construam um templo no alto de uma montanha em honra à deusa.