REPORTAGEM
Muita gente tem, ao menos um pouquinho. Mas não deveria: as estatísticas mostram que, ao embarcar num avião, a sua chance de morrer é de apenas uma em 10 milhões.
E de hospital, você tem medo? A maioria das pessoas não tem, pois acha que nada de errado acontecerá. Só que acontece: segundo a Organização Mundial da Saúde, um em cada 300 pacientes morre por consequência de erros médicos.
Ou seja, pegar um avião é 33 mil vezes mais seguro do que ser internado. Um estudo da Universidade Johns Hopkins(1) constatou que o erro médico mata 251 mil pessoas por ano nos EUA (onde ele é a terceira maior causa de morte, só perdendo para infarto e câncer). É como se, todo santo dia, caíssem dois Boeings 747, sem deixar nenhum sobrevivente. No Brasil, o cenário pode ser ainda pior. Uma pesquisa(2) realizada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pelo Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (Iess) estimou que, em 2015, 434 mil brasileiros tenham morrido devido a erros no atendimento médico – que são a maior causa de óbito no País. Outra pesquisa, também feita em 2015(3), chegou a um número menor: 104 mil mortes anuais. Mas ela é focada em hospitais particulares. O número maior, infelizmente, é o mais preciso.
Esses dados são estimativas, ou seja, os pesquisadores analisam uma amostra de casos, calculam o percentual de erros e extrapolam para o total de pacientes atendidos em cada país.
Mas as estatísticas são consistentes: vários estudos, em vários lugares do mundo, costumam chegar a índices parecidos. Erro médico é um problema gigantesco, e que não recebe a devida atenção (se dois Boeings 747 despencassem a cada dia, a aviação já teria sido profundamente reformulada). Mas como ele pode ser tão comum, se os médicos recebem uma formação tão rigorosa e têm acesso a ferramentas tão avançadas? O primeiro passo para encontrar a resposta é mais simples do que parece: está na própria definição de erro médico.
Explosão de médicos
Quando uma pessoa morre, o motivo é registrado no atestado de óbito. Mas “erro médico” não está na lista oficial de possíveis causas de morte, o que dificulta bastante sua identificação. O estudo da Universidade Johns Hopkins cita o caso de uma mulher jovem que passou por um transplante (a pesquisa não diz de qual órgão).
Ela teve alta, mas algum tempo depois voltou se queixando de dores. Foi submetida a uma bateria de exames e procedimentos, incluindo alguns desnecessários – como a pericardiocentese, em que o médico extrai líquido do pericárdio, a membrana que envolve o coração, usando uma agulha. Não era indicado para o caso dela, e acabou mal: por um deslize do cirurgião, a agulha perfurou o fígado e a moça morreu. Erro médico. Mas a causa mortis foi registrada como problema cardiovascular.
Esse exemplo ilustra um problema central: como o erro médico não costuma ser declarado, ele é muito mais difícil de identificar, estudar – e combater. Uma enfermeira que trabalha em São Paulo, e que conversou com a SUPER na condição de anonimato, conta ter presenciado diversas situações do tipo. “Já vi médico falhar em exame e não admitir para a família [do paciente], com medo de punição”, conta. Certa vez, trabalhando na UTI de um hospital paulistano, ela assistiu a uma mulher de 35 anos dar entrada com dores abdominais, ser submetida a um exame exploratório agressivo, perder um bebê no processo (estava grávida de dois meses) e ser enviada para a UTI. A paciente faleceu horas depois, e por um motivo absurdo. “Os médicos tinham deixado uma pinça grande dentro dela”, diz a enfermeira. “Ela já tinha sofrido duas paradas cardiorrespiratórias durante o exame, não resistiria a ser aberta novamente para a retirada da pinça. Depois que ela morreu, o pessoal do centro cirúrgico foi até a UTI, abriu o corpo dela e retirou a pinça, antes que a necrópsia identificasse o erro.”
“A formação deficiente e a falta de estrutura, sobretudo no serviço público, são as principais causas de erro. Infelizmente, hoje o médico sai da faculdade sem conhecimento suficiente para exercer a profissão”, afirma Fernando Maia Vinagre, corregedor do Conselho Federal de Medicina. Segundo ele, isso acontece porque, nos últimos anos, ocorreu um aumento descontrolado no número de cursos de Medicina no Brasil. Em 2017, havia 189 deles no País, mais do que nos Estados Unidos (que têm 125) e na China (150). Mais de 30% deles foram criados a partir de 2013, quando o Ministério da Educação flexibilizou as regras para a abertura de faculdades de Medicina. A intenção era aumentar o número de médicos no Brasil, o que de fato aconteceu: de lá para cá, a quantidade de profissionais formados por ano subiu de 17 mil para 30 mil. Mas não houve um controle rígido sobre a qualidade desses novos cursos – e, portanto, dos médicos que eles produzem. Em abril deste ano, o governo federal finalmente reagiu, suspendendo a abertura de cursos de Medicina até 2023. Isso evita que a situação piore, mas não resolve o problema das faculdades que já foram abertas.
Uma possível solução é criar um exame profissional, como o que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) impõe aos formandos em Direito. Em São Paulo, Goiás e Rondônia, os médicos recém-formados já têm de passar por um teste. A prova paulista, que é aplicada pelo Conselho Regional de Medicina, é composta por 120 questões de múltipla escolha, que abordam nove temas: Clínica Médica, Clínica Cirúrgica, Pediatria, Ginecologia e Obstetrícia, Saúde Pública, Epidemiologia, Saúde Mental, Bioética e Ciências Básicas. Ela existe há bastante tempo – e é considerada rigorosa. “Aplicamos o exame desde 2005. Historicamente, o número de aprovados fica abaixo de 50%”, diz Renato Françoso, vice-presidente do CRM-SP.
O problema é que, mesmo se for reprovado, o profissional pode atuar como médico (o que não acontece, por exemplo, com os formados em Direito que não passam na OAB). “A criação de um mecanismo semelhante a nível nacional, com caráter obrigatório, vai requerer uma mudança legislativa”, explica Fernando Vinagre, do Conselho Federal de Medicina. Desde 2015 tramita no Senado, sem previsão de votação, um projeto do tipo.
Outro elemento é a carga de trabalho excessiva. “A média de atendimento em um ambulatório é de 16 a 20 pessoas, por médico, a cada duas horas, porque o profissional precisa fazer muitas consultas para receber um ganho condizente”, afirma Fernando Polastro, membro da Associação Brasileira de Apoio às Vítimas de Erro Médico (Abravem). Isso é especialmente grave nos hospitais conveniados ao Sistema Único de Saúde (SUS), que atende à maior parte da população – e paga apenas R$ 12 por consulta.
Mas isso não explica tudo. Afinal, nos Estados Unidos os médicos são bem formados e remunerados, e mesmo assim as estatísticas de erro são altíssimas. Há outro fator em jogo. E ele não tem a ver com a falta de formação ou dinheiro. É o contrário.
A era da hipermedicina
Erro médico nem sempre é mortal. Se você for vítima de um, provavelmente não vai morrer. Essa é a boa notícia. A má notícia é que os equívocos não letais são incrivelmente comuns – segundo a OMS, um em cada dez pacientes acaba sendo vítima de algum erro(4). Os erros são classificados em cinco categorias: diagnóstico errado ou tardio; excesso de exames, ou má interpretação deles; medicamentos errados ou em dosagens/combinações impróprias; cirurgias desnecessárias ou realizadas com imperícia; desatenção a informações básicas, como conferir o tipo sanguíneo ou possíveis alergias do paciente.
Todas essas coisas têm uma raiz em comum: estão ligadas ao mau uso das ferramentas da medicina. “O problema envolve hospitais e laboratórios sobrecarregados, custos cada vez mais altos e o aumento do número de procedimentos, muitos deles desnecessários, e de especializações”, afirma o médico Milos Jenicek, autor do livro Medical Error and Harm (“Erro Médico e Danos”, ainda não lançado em português).
Recentemente, o médico Drauzio Varella escreveu sobre isso no jornal Folha de S.Paulo: “Para solicitar ultrassom ou tomografia para alguém que se queixa de dores abdominais, basta preencher o pedido. Dá menos trabalho do que avaliar as características e a intensidade da dor, os fatores de melhora e piora, e palpar o abdômen com atenção”. O problema, observou Drauzio, é que, na maioria dos casos, aquele exame só será feito semanas (ou meses) depois, quando o quadro do paciente poderá ter mudado. E, quando finalmente for realizado, tomará o lugar de outra pessoa, que talvez precisasse do exame com mais urgência.
O uso exagerado de remédios é outra tendência clara. Metade das cirurgias realizadas nos Estados Unidos tem algum “evento adverso” relacionado ao mau uso de medicação(5). Essa é a conclusão de médicos do Massachusetts General Hospital, que analisaram 277 operações, nas quais houve 3.671 aplicações de medicamentos, incluindo o pré e o pós-operatório. Quase metade das reações adversas era perigosa, com risco de danos à saúde do paciente. E 80% delas poderiam ter sido evitadas.
Nem todo mundo corre o mesmo risco. A idade de cada pessoa e a especialidade médica envolvida também influenciam. O estudo da UFMG identificou que boa parte das vítimas de erro médico tem menos de 28 dias ou mais de 65 anos de vida. “As especialidades mais acionadas na Justiça são a obstetrícia, por problemas durante os partos, e, em segundo lugar, a pediatria”, afirma Fernando Polastro, da Abravem, que também destaca as queixas envolvendo anestesiologia, ortopedia e cirurgia plástica. A associação surgiu em 2011, e acompanhou mais de cem casos desde então. “Começamos com uma conversa informal entre amigos, médicos e advogados, e percebemos que todos ali tinham um caso de erro na família”, diz Polastro. Hoje a entidade tem um corpo médico, com 15 profissionais de saúde que atuam verificando os casos, e um corpo jurídico, também com 15 advogados, que auxilia as vítimas a entrar na Justiça. Todos são voluntários.
Em São Paulo, o Conselho Regional de Medicina recebe cerca de 500 denúncias por mês. Desse total, 15%, em média, viram processo. “Nos outros casos, o conselho [geralmente] define que a denúncia não procede”, afirma o vice-presidente do CRM-SP, Renato Françoso. Metade dos casos investigados termina em condenação, com penas que variam de uma advertência ao banimento da profissão. “Se o médico for considerado culpado, ele pode sofrer advertência, ser suspenso ou cassado”, diz Fernando Vinagre, do Conselho Federal de Medicina. Mas isso é raro. Em 2017, apenas 11 licenças médicas foram cassadas no Brasil, e a média anual é essa mesmo (entre janeiro de 2008 e maio de 2018, 106 profissionais perderam o direito de atuar).
Quando o incidente envolve enfermeiros, outro órgão responde pela apuração e pela punição. “As denúncias são recebidas e averiguadas pelo Conselho Regional de Enfermagem, que realiza o julgamento em primeira instância”, afirma Manoel Neri, presidente de outro conselho de enfermagem, o Federal (Cofen). “Já o Cofen funciona como órgão recursal dos julgamentos realizados pelos conselhos regionais.” Entre as punições previstas estão advertência verbal, multa, “censura [reprimenda] divulgada em jornais de grande circulação”, suspensão por até 90 dias e cassação da profissão. Em 2017, o órgão nacional julgou 83 denúncias e processos éticos contra enfermeiros, sendo que 24 profissionais foram condenados – cinco deles tiveram o registro cassado.
Por que tão poucas denúncias e tão raras cassações? O problema, em parte, é que os próprios pacientes têm dificuldade em questionar a atuação dos médicos – num estádio de futebol, a pessoa pode xingar os jogadores do time ou as escolhas do técnico, mas no consultório a norma é adotar uma postura submissa. “As pessoas, em geral, são acostumadas a colocar os profissionais de medicina sobre um pedestal, e têm muita vergonha de tirar dúvidas e denunciar condutas e procedimentos”, diz Fernando Polastro. Mesmo nos casos de erro médico grave, a maioria das vítimas não processa ninguém. E, quando o faz, encontra grandes dificuldades – a começar pela comprovação do erro, o que tem de ser feito com uma perícia médica independente. “Eu não consigo encontrar um médico que concorde em fazer um laudo que possa prejudicar um colega”, diz o eletricista Rudenisson Moura, 37 anos, que deu entrada no hospital com uma luxação e acabou tendo a perna esquerda amputada. “Alguns chegam a olhar para minha documentação, concordam que houve erro, mas não assinam nenhum tipo de documento atestando a falha.”
Dá para se proteger contra erro médico? “Sempre que forem fazer qualquer procedimento, confiram antes o histórico do profissional na plataforma do Conselho Federal de Medicina”, diz a artista plástica Emilia Alencar, vítima de erro numa abdominoplastia. Basta entrar em portal.cfm.org.br, clicar em Cidadão/Busca por médico, e aí conferir se o profissional de fato possui as especializações que afirma ter, e se já foi alvo de algum tipo de denúncia. Isso ajuda a reduzir o risco de ter algum problema – e, de quebra, deixa o paciente tranquilo, o que é fundamental para o sucesso de qualquer procedimento.
Erro médico não é terrível só para a vítima; também tem forte impacto sobre os profissionais envolvidos. “De maneira geral, os médicos têm dificuldade em lidar com a situação”, diz o psicólogo Vitor Mendonça, pós-doutor pela Escola de Medicina da Universidade de Washington e pesquisador na Faculdade de Medicina da USP, onde estuda o tema. “A formação médica no Brasil ainda é pautada, na grande maioria dos casos, pela ideia de que os futuros médicos devem estar certos sempre. Eventuais falhas são praticamente ignoradas”, afirma.
A responsabilidade absoluta pela vida alheia, a falta de preparo para lidar com os possíveis (e, em certo grau, inevitáveis) erros e a carga de trabalho desmedida formam uma combinação tóxica que coloca enorme pressão sobre os médicos. Alguns reagem a isso escondendo informações. Uma pesquisa de 2012 feita pela Harvard Medical School(6), em que 1.891 médicos responderam a um questionário de forma anônima, revelou que 19,9% deles já haviam omitido informações dos pacientes, e 11% tinham mentido. A grande maioria não faz isso, mas pode acabar se voltando contra si mesma: entre os médicos dos EUA, o índice de abuso de álcool é o dobro da população em geral – e a taxa de suicídios é 70% acima da média.
“O erro médico geralmente é um marco na vida do paciente. Traz raiva, desconfiança e dúvidas que prejudicam a saúde emocional de qualquer ser humano”, afirma Mendonça, da USP. Mas ele conta que, em muitos dos casos que estudou, tudo o que as famílias das vítimas queriam ouvir era um pedido de desculpas. E isso às vezes acontece. “Eu já vi médico errar numa endoscopia, ser transparente com a família, e as pessoas entenderem”, conta a enfermeira do começo desta reportagem, que pediu para ter a identidade preservada.
Em quase todas as outras profissões, é possível corrigir um erro antes que alguém se machuque. Na medicina, é diferente.
Por isso, os próprios pacientes acabam se esquecendo de uma verdade essencial: os médicos são pessoas comuns, não deuses infalíveis. Como disse Hipócrates, o pai da ciência médica, na Grécia Antiga: “Onde houver amor pela arte da medicina, também haverá amor pela humanidade”. Ele está dizendo que os médicos não devem apenas se basear na técnica; também precisam dar atenção às pessoas que estão tratando. E que a medicina faz parte da sociedade, ou seja, é exercida por seres humanos – que, como todos os outros, podem (e, cedo ou tarde, vão) acabar errando.
Fontes: (1) Medical Error — The Third Leading Cause of Death in the US. Martin Makary, Universdade Johns Hopkins, 2016; (2) Erros Acontecem – Construindo um sistema de saúde mais seguro. Renato Couto e outros, UFMG/Iess, 2016; (3) Impacto econômico e assistencial das complicações relacionadas à internação hospitalar. Paula Daibert, UFMG, 2015; (4) Medication Errors: Technical Series on Safer Primary Care. Organização Mundial da Saúde, 2016; (5) Evaluation of Perioperative Medication Errors and Adverse Drug Events. KC Nanji e outros, Massachusetts General Hospital, 2016; (6) Survey Shows That At Least Some Physicians Are Not Always Open Or Honest With Patients. Lisa Iezzoni e outros, Harvard Medical School, 2012.
A seguir, leia cinco casos impressionantes
de erros em hospitais,
contados pelas próprias vítimas
(depoimentos ao jornalista Tiago Cordeiro)