Um dos mais espertos e irreverentes dos deuses, Hermes é guardião dos viajantes, protetor do comércio e também o leva e traz das fofocas entre os imortais.
Texto: Maurício Horta | Edição de Arte: Estúdio Nono | Design: Andy Faria |
Imagens: Adobe Stock e Getty Images
NOME ROMANO – MERCÚRIO • DIVINDADE – MENSAGEIRO DOS DEUSES
O sol começa a nascer quando a ninfa Maia dá à luz Hermes, em uma caverna do Monte Cilene, na Arcádia, o filho de seu amor com Zeus. Mas a criança se desenvolve tão rapidamente que ao meio-dia já está sentada no berço tocando sua lira, que produziu com o casco de uma tartaruga e tripas de ovelhas. Quando o sol se põe, vai até a Tessália, onde o deus Apolo termina de pastorear seu rebanho de vacas. Quando o deus da luz se recolhe em sua cabana, Hermes rouba-lhe 50 das vacas apolíneas. Assim começa a sorte do futuro mensageiro dos deuses, mestre das estradas, da reprodução de animais, da diplomacia, do comércio e da persuasão.
Em seu caminho pela noite, ele encontra um idoso, ainda trabalhando em seu vinhedo. “Ó velho das costas curvadas, terás uma colheita abundante se fizeres de conta que nunca me viste.” E Hermes segue atravessando com seu rebanho roubado por montanhas escuras, vales plenos de ecos e planícies floridas. Assim caminha até que um azul-escuro começa a predizer a chegada do sol. Às margens do Rio Alfeo, ele encontra um estábulo ideal para guardar os animais e vai coletar lenha para fazer uma fogueira de sacrifício. Escolhe as duas vacas mais novas e as mata com um ferimento na nuca enquanto emitem um mugido surdo. Abre então as carcaças, deixa as vísceras e o corpo sobre uma rocha e divide as carnes mais tenras em 12 partes.
Hermes está cansado da viagem e não há nesse momento o que queira mais do que comer aqueles pedaços de carne cobertos de banha. Mas seu coração não se deixa levar pelo estômago: o menino sobe no telhado do estábulo e lá pendura os pedaços de carne. Pega então as patas e as cabeças e as lança ao fogo. E assim homenageia os 12 veneráveis deuses olímpicos – já incluindo a si próprio entre os dignos do panteão.
Ao fim do ritual, Hermes joga as sandálias no rio, cobre as cinzas com areia e, conforme a Aurora invade o céu, voa como o vento até a caverna onde nasceu. Ajeita-se em seu berço e se enrola nas faixas como se jamais tivesse saído de lá. Mas, ainda que seja um deus, não pode escapar da deusa sua mãe, Maia: “O que fazes, espertinho? De onde chegas assim em plena noite, seu sem-vergonha? Retorna para lá de onde vieste! Não sabes o tormento que causaste!”.
“Mãe, por que tentas assustar-me, como se eu fosse um bebê sem malícia na alma, desses que temem as reprimendas da mãe? Tudo o que faço é para que nós dois não vivamos nesta caverna sem ofertas nem rezas, como tu esperas. É melhor viver para sempre na companhia dos imortais, rico, próspero e bem nutrido, do que ficar nesta espelunca escura. Eu terei o mesmo prestígio do qual goza Apolo, e, se meu pai não o garantir, eu me viro. Se precisar, posso me tornar o rei dos ladrões. Espera e verás.”
A luz da manhã finalmente abraça o mundo quando Apolo se dá conta da falta de 50 cabeças de seu rebanho. Sai à sua procura e no caminho encontra o velho do vinhedo. “Ó velho, que ceifa as ervas daninhas destes prados, estou à procura de vacas que me roubaram. Diz se por acaso viste alguém guiando-as por esta estrada.”
“Muitos viajantes de fato percorrem esta rua, e entre eles alguns vêm nutrindo maldosas intenções. Outros, ótimos propósitos. É difícil julgá-los um por um. De toda forma, realmente por mim passou um bebê que guiava vacas de belos chifres. Fazia-as andar de ré, com as cabeças viradas em direção a ele.”
Ao ouvi-lo, Apolo volta apressadamente para a estrada. Nota então uma águia de asas abertas e disso depreende subitamente que o ladrão é filho de Zeus. No caminho encontra uma profusão confusa de pegadas. O deus Apolo se apressa em seguir as estranhas marcas até chegar a uma caverna de onde exala um doce perfume. Apolo entra e, ao ver um bebê enrolado, desfaz suas ataduras, enfurecido.
Fazendo-se passar por uma criança, Hermes espreguiça a cabeça, as mãos e os pés, como se acabasse de ser acordado. Mas Apolo não se deixa enganar. Revira todos os recintos da caverna, pega uma chave reluzente e abre três despensas cheias de néctar e ambrosia, alimentos dos deuses, e grandes quantidades de ouro e prata, além de vestes de ninfas e tudo o mais que se encontra nas moradas dos deuses. Depois de tudo revistar, Apolo dirige a palavra a Hermes: “Nós dois daqui a pouco brigaremos. Eu te pegarei pelos cabelos e te jogarei no Tártaro”.
A isso Hermes responde movendo as sobrancelhas para cima e para baixo, olhando por toda parte como se não entendesse do que o meio-irmão celestial fala: “É verdade que vieste aqui procurar as vacas que habitam os campos? Não vi, não sei, não escutei outros falarem disso. E não pareço um ladrão de bois. O que me interessa é o sono, o leite e minha mãe. Na verdade, grande prodígio seria que um menino recém-nascido roubasse vacas em uma montanha. Nasci ontem: os meus pés são tão delicados que não suportariam pisar na dura terra”.
Enquanto Apolo lhe responde, Hermes assovia como se ouvisse um discurso vão: “Ó exímio charlatão e enganador. Se não queres dormir o teu último e supremo sono, desce do berço. Serás chamado para sempre o rei dos ladrões”. Assim, Apolo pega a criança no colo e a leva embora. Num momento, Hermes força um espirro e cai no chão. Apolo lhe dirige novamente a palavra: “Cedo ou tarde, encontrarei minhas vacas; mas serás tu que me indicarás a estrada”.
E assim continuam os meios-irmãos discutindo pelo caminho sem chegar a conclusão alguma, andando até o cume do Monte Olimpo, onde Zeus, pai de ambos, espera por eles com a balança da justiça a postos. “Um recém-nascido com o aspecto de um arauto? Grave questão é esta!”, diz Zeus.
Apolo então conta toda a história sobre o sumiço de suas vacas, as pegadas misteriosas que não levaram a elas e a teimosia com que Hermes negou ser autor do roubo. Diante disso, Hermes confessa o crime ao pai: “Ó pai, Zeus, não sei mentir. Apolo veio à minha casa sozinho à procura das vacas hoje mesmo.
Ele me ordenava a informá-lo, com muita prepotência, e muitas vezes ameaçou jogar-me no vasto Tártaro. Deves acreditar, uma vez que tu te vanglorias de ser meu pai, que não trouxe à minha casa as vacas para fazer fortuna. Respeito profundamente os deuses e nutro afeto por ti. Por mais que Apolo seja forte, um dia eu farei com que ele pague por esse desumano sequestro; afinal, tu proteges os mais jovens”.
RECONCILIAÇÃO DIVINA
Com o coração, Zeus ri da eloquência de seu filho, ordena que os dois se reconciliem e procurem o rebanho no lugar onde Hermes o escondeu. Apressados, eles chegam ao estábulo, de onde Hermes traz as vacas de Apolo. Mas, à distância, o deus da luz reconhece o couro das duas vacas sacrificadas. “Bandido, se ainda bebê conseguiste matar duas vacas, realmente me preocupo com a força que terás adulto”, diz Apolo. “É melhor que não cresças muito.”
Apolo então agarra as pernas de Hermes e as prende com um forte laço de vime. Nesse momento, Hermes pega sua lira e começa a tocá-la para encantar o irmão. E, conforme soam as límpidas notas, Hermes as acompanha com sua voz de menino. Apolo para imediatamente de amarrá-lo e, maravilhado, diz: “Tu inventaste algo que vale mais do que minhas vacas. Acredito que podemos entrar facilmente em um acordo se me presenteares com essa arte milagrosa. Se me ensinares tua arte, serás famoso entre os deuses imortais”.
O mais novo responde a seu irmão: “Não sou contrário a que tu a aprendas. Hoje mesmo a conhecerás. Na verdade, quero ser teu amigo. Mas conversamos sobre o acordo. Zeus te concedeu o dom das profecias. Da tua parte, meu caro, deixa para mim essa glória”. Hermes oferece então a lira a Apolo, que, com prazer, doa ao meio-irmão seu chicote e o rebanho roubado. Os dois voltam então ao Olimpo, Apolo nutrindo para sempre afeto por Hermes.
“Estreitarei contigo um acordo perfeito entre imortais. Eu te darei a prosperidade, e Zeus te encarregará de introduzir o comércio entre os homens. Mas a profecia que me pedes… Não é lícito que nenhum imortal a aprenda, pois assim jurei a Zeus. Porém, se fores até as ninfas Trias que habitam o Monte Parnasso, elas poderão te ensinar a adivinhação com pedras.”
Quando apertam as mãos selando seu acordo, os dois encontram Zeus. Depois de Apolo lhe contar a conversa que teve com o meio-irmão, o rei dos deuses declara Hermes o senhor dos animais.
“Somente ordeno que respeites o direito à propriedade e não contes mentiras. No mais, me pareces um deus bem inventivo e eloquente”, diz Zeus. “Então faz de mim teu mensageiro, pai”, responde Hermes. “E eu me responsabilizarei pela segurança de toda tua propriedade. Prometo jamais mentir. Só não garanto contar sempre a verdade inteira.”
“Isso não se esperaria de ti”, diz Zeus, sorrindo. “Mas suas tarefas daqui para a frente incluirão a criação de tratados, a promoção do comércio, a manutenção do direito de todos os viajantes de percorrer qualquer estrada do mundo.” E assim o rei dos deuses o acolhe como o 12º deus olímpico. Dá-lhe um bastão mágico capaz de separar brigas, um chapéu que o protege das chuvas e sandálias aladas, que o fazem voar.
Hermes também cria a escrita dos homens – diante do que ficam tão gratos que passam a dedicar-lhe a língua de todo animal sacrificado. Depois, cria a astronomia, as escalas musicais e a ginástica. Nenhum deus grego será tão próximo dos humanos quanto esse talentoso mensageiro.