Da inspiração no faroeste à representação de ataques cirúrgicos contra talibãs, o filme de guerra se tornou um registro documental – muito mais animado – dos maiores conflitos entre nações. E fez história nas telas.
Texto: Alexandre Carvalho | Design: Andy Faria | Imagens: Divulgação
Quase 50 anos antes que Hitler ocupasse a França, foi o cinema quem fez Paris vir abaixo. No salão de um hotel, em 1895, os irmãos Auguste e Louis Lumière organizaram a primeira projeção pública da arte que eles inventaram: curtas-metragens com cenas do cotidiano dos inventores, como um café da manhã em família e funcionários saindo de sua fábrica. Era o nascimento do cinema. Mas logo os cenários bucólicos dariam lugar à selvageria da guerra.
Entre 1898 e 1901, Thomas Edison produziu 68 filmes a respeito da Guerra Hispano-Americana, resultado da intervenção americana na guerra da independência de Cuba. Era a pré-história de um tipo de filme que, pelo fascínio exercido junto ao público e a vastidão de sua produção, acabaria virando um gênero em si, atravessando os mais diversos estilos: desde o épico (O Mais Longo dos Dias) até a animação (O Túmulo dos Vagalumes), passando pelo drama psicológico, o cinema político, o perfil biográfico e, claro, os filmes puramente de ação.
Mas o que é preciso para que um longa-metragem possa ser classificado como “de guerra”? O professor de cinema John Belton, da Universidade Rutgers, em Nova Jersey, identificou quatro elementos que caracterizam esse tipo de filme, pelo menos no contexto da produção hollywoodiana:
1 • A suspensão da moralidade civil durante os tempos de guerra.
2 • A prevalência dos objetivos coletivos sobre as motivações individuais.
3 • A rivalidade entre os homens em grupos predominantemente masculinos.
4 • A reintegração dos veteranos de guerra à sociedade.
Para um especialista do gênero, o diretor e ex-soldado Samuel Fuller, é mais simples do que isso: “o objetivo de um filme de guerra, não importa quão pessoal ou emotivo, é fazer com que o espectador sinta a guerra”. Mas não basta o impacto da experiência: o bom filme do gênero também precisa trazer uma mensagem que mexa com as pessoas. Um estudo de 2013, da Universidade de Augsburg, na Alemanha, investigou por que o público gosta tanto de filmes violentos.
Pesquisas anteriores já haviam apontado que os espectadores não procuram esse tipo de filme pela violência em si, mas pelo que ela traz no pacote: emoção e suspense. Os pesquisadores alemães identificaram que, além desses prazeres hedonistas, o público se expõe voluntariamente a imagens de derramamento de sangue e mortes em massa porque esses retratos – pelo menos nos filmes de guerra – oferecem insights sobre algum aspecto da condição humana.
“Representações de violência percebidas como cheias de significado podem promover empatia com as vítimas, admiração por atos de coragem, beleza moral ou autorreflexão”, afirmou Anne Bartsch, líder do estudo. Foi com essa combinação de percepções, ligadas inconscientemente ao autoconhecimento, que o filme de guerra evoluiu através dos tempos – e se tornou um dos pilares mais fortes (e ganhadores de Oscar) da história da Sétima Arte.
COWBOYS DE FARDA
Se a expansão do Universo começou no Big Bang, o mundo dos filmes de guerra teve início no bangue-bangue. Gênero de imensa popularidade no cinema ocidental, o faroeste foi a primeira e maior referência quando Hollywood virou as câmeras para os grandes conflitos armados do século 20.
No Western, há a Conquista do Oeste, quando forasteiros rápidos no gatilho exploram regiões inóspitas e cheias de riscos imprevisíveis. Nada muito diferente do avanço das tropas americanas pelas praias da Normandia, o norte da África ou mesmo as ilhas do Pacífico, na 2ª Guerra Mundial.
A caracterização do inimigo também descende do faroeste: soldados do Eixo são retratados de forma maniqueísta, opondo o heroísmo ou o humanismo dos Aliados à selvageria de seus oponentes – alemães são sociopatas, japoneses são sádicos. Isso sem esquecer os ingredientes racistas que temperam essas produções.
Enquanto o inimigo europeu, principalmente da Alemanha, é mostrado numa generalização apolínea de bom porte físico, inteligência e eficiência, japoneses e vietnamitas são retratados como índios nas telas. Encarnam o arquétipo do mau selvagem: atacam de forma desorganizada, geralmente aos gritos, são franzinos e têm um comportamento instintivo… além de péssima mira. Troque o capacete de guerra por uma pena na cabeça e você terá o perfeito índio de bangue-bangue.
Fato é que, tendo o faroeste como régua e compasso, os filmes de guerra evoluíram até encontrar sua mina de ouro nos anos 1940, quando os oficiais de Hitler se encaixavam na caricatura de psicopata que glorifica o vilão clássico. E também por uma combinação positiva, de Zeitgeist e tecnologia, que ainda não vingava no conflito anterior.
A 1ª Guerra enfrentava um distanciamento psicológico do espectador americano, que considerava o conflito predominantemente europeu. E havia ainda um obstáculo técnico. Diferente das guerras posteriores, a 1ª não teve imagens jornalísticas chegando com frequência – para despertar o interesse do espectador.
Pior, entre 1914 e 1918, período em que durou a Grande Guerra na Europa, o cinema era mudo – o primeiro falado, O Cantor de Jazz, é de 1927. Metralhadoras e canhões silenciosos perdem muito do seu poder de deslumbramento.
Tudo isso mudou na 2ª Guerra. Com meios de comunicação mais eficazes, o público era bombardeado pelas cenas dos noticiários. Nunca antes o cidadão comum tivera a experiência de ver bombas de verdade explodindo, tanques atirando, soldados feridos. Um interesse que foi catapultado quando o governo americano resolveu dar uma mãozinha.
“Ninguém vai conseguir transformar um tigre em um gatinho acariciando-o”, disse o presidente Roosevelt, em 1940. “E nós sabemos agora que o preço para se ter paz com nazistas é a rendição total.” O governo americano queria a guerra. E não demorou para enxergar em Hollywood um aliado estratégico: a magia do cinema era capaz de preparar as massas para a aventura americana no Pacífico e na Europa.
Frank Capra – diretor do clássico A Felicidade Não se Compra – produziu uma série de sete documentários chamada Why We Fight (“por que nós lutamos”). Patrocinada pelo governo, tinha o objetivo de justificar a participação dos EUA no conflito.
O primeiro da série, Prelude to War (“prelúdio para a guerra”), ganhou o Oscar de melhor documentário ressaltando as diferenças entre Estados democráticos e fascistas, associando a esses últimos os países do Eixo (dica: dá para ver todos esses filmes no YouTube). A trilha sonora foi executada pela orquestra da Força Aérea, e as animações, pelos estúdios Disney.
A coisa ficou ainda mais séria após o ataque a Pearl Harbor. Nos três anos seguintes à ofensiva japonesa contra a base área americana no Havaí, em 1941, um em cada quatro filmes produzidos nos EUA tinha um tema bélico.
Casablanca, um romance que não chega a ser exatamente um filme de guerra, ganhou o Oscar principal mostrando um dono de bar (Humphrey Bogart) que abre mão da mulher que ama para ajudar um fugitivo dos nazistas: “Os heróis contidos neste filme mostram a conversão americana, da neutralidade ao sacrifício altruísta, agora com o desejo de combater o fascismo, em vez de se isolar dele”, explica o professor Pete Mason, autor do livro The Evolution of the War Film Genre (“a evolução do gênero de filme de guerra”, sem edição brasileira).
O Tio Sam ajudava, inclusive cedendo armas, barcos e tanques para as filmagens, mas desde que o enredo atendesse às suas expectativas: precisavam ser filmes pró-intervenção. Um órgão do governo proibia a exportação dos longas mais críticos à guerra. Uma consciência que ainda era minoritária naquela época, mas que teria seu ápice mais de 30 anos depois, quando Hollywood perdeu o medo de tocar numa ferida que dói até hoje: a Guerra do Vietnã.
ONE, TWO, THREE, FOUR… WE DON’T WANT THIS F*** WAR
Se até a 2ª Guerra Mundial os filmes pró-guerra prevaleciam – em sua exaltação do patriotismo, dos sacrifícios e vitórias –, tudo mudou quando os EUA foram se meter no Sudeste Asiático. Mais uma vez acompanhando o espírito de seu tempo, Hollywood deu voz (e imagem) a diretores que quiseram se manifestar contrários à luta contra os norte-vietnamitas. Mas essa crítica não era fácil.
O país estava tão dividido na época – entre os que apoiavam e rejeitavam a guerra – que as primeiras grandes obras críticas dessa intervenção só vieram quando o conflito já tinha terminado – em 1978, com os lançamentos de O Franco Atirador e Amargo Regresso. Começava uma época de longas dramáticos, de veteranos mutilados ou com distúrbios emocionais, e de violência mais gráfica – para que o espectador realmente sentisse a insensatez da brutalidade. Os sonhos de medalhas dão lugar a pernas amputadas – e o patriotismo é mostrado como uma malícia do governo para atingir estratégias geopolíticas.
A GUERRA CIRÚRGICA
A abordagem dos filmes desse gênero sofreu outra reviravolta com os eventos do 11 de Setembro. O combate externo ao terrorismo foi amplamente visto como uma ação justificável aos olhos do público, indispensável para que os americanos não vissem nunca mais aviões explodindo prédios em Nova York. Filmes exaltando a bravura individual do soldado americano voltavam à tela, como em O Grande Herói.
Mas os filmes das lutas no Oriente Médio inovaram por outro motivo. A guerra tecnológica, cirúrgica, parece depender mais do uso de um computador que de infantarias travando lutas corpo a corpo – alvos agora podem ser atingidos por drones. Aliás, cadê os exércitos? A dinâmica dos soldados não se apoia mais em pelotões, mas em tropas de elite que podem chegar no breu da noite a um alvo determinado (o esconderijo de Bin Laden em A Hora Mais Escura) e dali voltar à base.
Esses filmes também pouco mostram o inimigo – já que o terrorista, em sua essência, vive escondido. No documentário Restrepo, nunca se vê quem atira contra os militares americanos; em Guerra ao Terror, o inimigo pode ser qualquer pedestre insuspeito vagando nas redondezas, com um celular na mão – um dispositivo capaz de detonar uma bomba.
Apesar de olhares contemporâneos voltados ao passado (Dunkirk), a evolução do gênero segue seu curso. A tal ponto que o filme de guerra deu munição para outras mídias. Games como Call of Duty e Medal of Honor são uma extensão dessa cinematografia, transportada para consoles e fones de ouvido. Num olhar sem preconceito, eles conseguem aquilo que Samuel Fuller descreveu como a quintessência do gênero: “que o espectador sinta a guerra”.
Se é inadequado chamar um gamer de “espectador”, já que ele interage com o cenário virtual, não há dúvida de que ele se teletransporta psicologicamente para o campo de batalha – uma emoção que só os melhores filmes de guerra conseguem proporcionar.