Em sua segunda tópica, Freud apresentou três subpersonalidades em conflito: uma que busca satisfazer desejos o tempo todo, uma que adapta essa procura ao mundo real e uma desmancha-prazeres. O resultado dessa briga psíquica? Você.
Texto: Alexandre Carvalho | Edição de arte: Estúdio Nono | Design: Andy Faria | Imagens: Getty Images
Em 1954, pesquisadores da Universidade McGill, no Canadá, descobriram que ratinhos podiam se matar de tanto perseguir sensações de prazer. Os cientistas introduziram eletrodos em algumas partes do cérebro dos animais e, quando um rato batia a pata numa alavanca, ele recebia um estímulo elétrico nessas regiões. O estímulo tanto podia ser prazeroso como repulsivo, ou não provocar reação nenhuma no bichinho. A surpresa veio quando a escolhida foi a área septal do sistema límbico – uma parte responsável pelas nossas emoções. Os ratos gostaram tanto dos choquinhos nessa área do cérebro que não pararam mais de bater na alavanca, sem dar bola para mais nada. Mais nada mesmo: esqueceram-se de comer e beber, e morreram de cansaço.
Essa área, sabe-se hoje, está relacionada às nossas sensações de prazer, principalmente prazer sexual – é onde fica nosso centro de orgasmo. E o estudo canadense revelava ali, mais de 60 anos atrás, a evidência de que temos um centro de recompensa no cérebro e que ele incita comportamentos inconsequentes de autoestimulação – que podem ser muito destrutivos, levando à morte até. Funcionou assim para o tesão dos ratinhos, funciona assim para o vício em drogas dos seres humanos.
Décadas antes dessa descoberta, Sigmund Freud já tinha afirmado que temos uma instância psíquica que só quer saber de ir atrás de prazer, como se não houvesse amanhã. É o que ele chamou de id, uma espécie de subpersonalidade tarada, agressiva, egoísta e mimada, que vive brigando com duas outras instâncias: o superego e o ego. A primeira é repressora, um avesso do id, enquanto a segunda é conciliadora, tenta encaixar as doideiras do id nas exigências do mundo real.
Curiosamente, a neurociência também descobriu mecanismos cerebrais que freiam nosso impulso de só agir por prazer. Em 2012, a Universidade de Iowa, nos Estados Unidos, comprovou por ressonância magnética que temos uma área no cérebro, o córtex pré-frontal dorsolateral, que entra em ação sempre que precisamos de autocontrole – diante da quarta fatia de pizza, por exemplo.
O paralelo existe, mas os anjinhos e diabinhos da mente humana são muito diferentes dependendo de o ponto de vista ser freudiano ou da neurociência. O sistema límbico tem suas autorregulações, está longe de ser algo como o id caótico de Freud, incitador de barbaridades e comportamentos imprevisíveis. Mas o denominador comum é um fato que tanto a ciência moderna quanto a psicanálise identificaram: nossa mente é um território em eterno conflito, onde se digladiam a busca do prazer e mecanismos inibitórios.
A segunda tópica
Você já viu neste dossiê: Freud usou o termo tópica para falar das divisões do aparelho psíquico, e fez isso duas vezes. A primeira, que surgiu na virada do século 19 para o 20, divide esse aparelho em consciente, pré-consciente e inconsciente. Já a segunda tópica apresenta um novo trio formador da nossa personalidade: id, ego e superego. Essa divisão começa a ser apresentada em Além do Princípio do Prazer (1920), mas ganha corpo mesmo três anos depois, no ensaio O Ego e o Id.
E atenção: essa segunda teoria não invalida nem substitui a primeira – nem podia, já que a essência da psicanálise está no conflito entre consciência e universo inconsciente. Na verdade, a nova tópica dialoga com a primeira, tornando a nossa psique um lugar muito mais sofisticado – e complicado. Por exemplo, o id estaria completamente mergulhado no inconsciente – ainda bem, ou suas loucuras estariam à solta –, enquanto o ego e o superego têm partes significativas expostas na consciência.
O importante é que o cabo de guerra entre essas instâncias resulta na complexidade dos comportamentos humanos – define o tipo de pessoa que você é.
Porém, antes de chegarmos às particularidades de cada uma delas, é importante conhecer dois princípios que regem o funcionamento mental, segundo a psicanálise: o princípio do prazer e o princípio da realidade. Freud falou deles pela primeira vez em 1911, no ensaio Formulações sobre os Dois Princípios do Funcionamento Mental, bem antes de lançar ao mundo sua segunda divisão da mente.
O primeiro tem por objetivo proporcionar prazer e evitar desgostos, custe o que custar. Ele pede que a mente se esforce para atender aos nossos impulsos mais básicos e primitivos: sexo, raiva, fome etc. Enquanto esse impulso não é atendido, a mente fica num estado de ansiedade, que só desaparece quando o estímulo é satisfeito. Sabe aquela pessoa que fica num tremendo mau humor quando está com fome? É por aí.
Já o princípio da realidade confronta o do prazer, impondo as restrições necessárias para que nossas vontades se adaptem ao mundo real. Afinal, não é viável – nem possível – fazer sexo a toda hora, em qualquer lugar, por mais que você esteja a fim. Esse princípio nos lembra que é preciso cair na real: não dá para ser feliz o tempo todo. Mas estávamos falando das instâncias da segunda tópica. É o que vamos ver a seguir.
ID
Movido pelo princípio do prazer, o id é a parte da mente que quer gratificação imediata de todos os seus desejos e necessidades. Imagine-se vivendo uma eterna primeira infância, quando você chorava se tinha fome, arrancava um boneco das mãos do amigo porque queria o brinquedo, dava um pontapé no gatinho da sua avó só porque achou o miado dele engraçado. Bebês estão sempre com o id no controle, já que é a única instância psíquica que, segundo Freud, está presente desde o nascimento. Mas há muitos exemplos de id desgovernado também na vida adulta, como o tarado que coloca o pênis para fora no ônibus, mesmo sabendo que haverá consequências, ou a pessoa que, diante de uma promoção no site de vinhos, gasta muito mais do que sua condição financeira recomenda – aliás, o cartão de crédito é uma incrível ferramenta para colocar o id atropelando o que vier na frente.
E preste atenção à ideia de a gratificação ter de ser imediata – como o neném faminto que chora horrores exigindo o peito materno, não querendo saber se a mãe está numa videoconferência ou dirigindo na estrada. No caso do tarado, ele não espera estar trancado num banheiro para se masturbar – faz em público mesmo, na hora que dá vontade. E o consumidor impulsivo não consegue esperar o salário entrar no começo do mês seguinte – acha que precisa comprar agora.
Freud apresentou o id como a única parte da nossa personalidade que é totalmente inconsciente, onde se escondem nossos pensamentos mais ogros. Assim como um vilão de história em quadrinhos, o id não conhece freios morais nem dá bola para a ética da sociedade. Só quer buscar satisfação – o que, claro, não é uma possibilidade realista se você não for um vilão de HQ. Se fôssemos guiados só pelo princípio do prazer, sairíamos pela rua estuprando – para satisfazer um desejo sexual momentâneo –, roubando – a versão adulta do bebê que pega o brinquedo do colega sem autorização –, agredindo, rindo em horas impróprias, comendo e bebendo até vomitar, ingerindo drogas até a overdose. Seríamos violentos e tarados.
Deu para pescar que o id é um lado psicopata da nossa personalidade. Mas há um bom motivo para ele existir. Imagine alguém sem impulsos de atender às próprias necessidades e desejos. Esse alguém morreria de fome. E a espécie humana não iria para a frente se os primeiros hominídeos não respondessem aos seus desejos sexuais, já que não existiria reprodução.
O que o id faz é tentar diminuir aquela ansiedade criada pelo princípio do prazer. Por exemplo, se você sente fome, começa a ficar tenso, pensando “preciso comer”. O id então chega e diz “cara, se está com fome, come logo e para de sofrer por causa disso”. Bom, né? O problema é que ele não conhece medida, e também pode soprar no seu ouvido algo assim: “Cara, a fome é grande. Pede logo esse sanduba de picanha com provolone, maionese, catupiry e cebola empanada. Melhor: pede dois”. Ah, mas você está de dieta, precisa perder 10 quilos. O id não está nem aí para esse detalhe. Só quer recompensa imediata. Quem tenta ajustar esse desejo às circunstâncias da vida real é a próxima instância teorizada por Freud.
Ego
Enquanto o id é guiado pelo princípio do prazer, o ego se baseia no princípio da realidade. É uma espécie de mediador entre a impulsividade do id e as condições externas, fazendo a interação entre a sua personalidade e as leis do seu país, a cultura do seu tempo, as regras de etiqueta e as normas do bom convívio. Dependendo do livro de Freud que você encontrar, o ego pode ser traduzido por “Eu”, o que dá bem a ideia de que essa instância, adequando as suas vontades ao mundo em volta, acaba sendo quem você é de fato aos olhos das outras pessoas. E essa parte da nossa personalidade não existiria sem o id – é dele que o ego tira suas forças.
Nessa condução do cavalo selvagem que existe dentro de cada um, o ego pesa os custos e benefícios dos desejos do id antes de liberar este ou aquele comportamento. E ele também possui um agudo senso de timing. Em diversas situações, vai acabar permitindo a gratificação exigida pelo id, mas só na hora certa. Por exemplo: um rapaz está no meio do público de um show de rock, dançando de pé no setor pista, e dá vontade de fazer xixi. Só que o banheiro mais próximo fica a 10 minutos de muito empurrão em meio a uma massa de fãs do Guns N’Roses. Isso gera uma tensão que o id vai querer eliminar na hora – “abre a braguilha e manda brasa aqui mesmo”. É então que o princípio da realidade faz o ego disparar um pensamento mais senhor da razão: “calma, se fizer isso você vai revoltar toda essa galera, além de molhar a própria calça; o show já está no bis, a vontade ainda é administrável, dá para esperar numa boa o Axl parar de cantar, aí você vai ao banheiro sossegado”.
Em outras situações, o ego vai ter de negar mesmo a gratificação. Naquele mesmo show, o rapaz vê uma garota bonita cantarolando “Sweet Child O’ Mine” com a camiseta molhada de suor e de chuva. O id logo lhe dá a ideia pouco inteligente de ir correndo se atracar àquele corpo que o pano mal consegue esconder. O ego então rebate com o mundo real: levando em consideração que a satisfação desse desejo renderia a) um grito de “tarado” por parte da moça, b) a possibilidade de um linchamento, c) provavelmente prisão… Que tal só puxar conversa com ela, respeitosamente?
Também vale dizer que, antes da elaboração da segunda tópica, o ego era confundido com a própria consciência humana. E contribui para essa identificação a ideia de ele lidar com as percepções conscientes que adquirimos pelos sentidos – e que vão nos dar o contexto do mundo externo. “A percepção tem, para o ego, o papel que no id cabe ao impulso”, afirma Freud. Apesar dessa identificação com a consciência, a batalha interna para refrear os estímulos cheios de tesão do id deixou claro para Freud que grande parte desse nosso “eu” ainda opera nas trevas do inconsciente.
Superego
Já vimos as instâncias guiadas pelos princípios do prazer e da realidade. Agora vamos tratar daquela que segue o que poderíamos chamar de “princípio do dever”. O superego se baseia nos valores da sociedade e nas regras de conduta que herdamos dos nossos pais para agir como um juiz das nossas intenções – um tipo de árbitro de futebol cheio de cartões vermelhos no bolso. Essa é a parte moral da nossa personalidade, a fonte dos nossos pensamentos de autocontrole que vão servir para empatar o jogo contra os impulsos “vamos que vamos” do id.
Diferentemente do ego, que tenta adiar a gratificação do id para momentos e locais mais adequados, o superego tenta barrar mesmo qualquer satisfação. Vê sempre o lado vazio do copo. Outra diferença essencial é que, mesmo que o ego e o superego cheguem à mesma conclusão sobre alguma coisa – afinal, ambos têm funções de censura –, o superego tem esse raciocínio por motivos morais, enquanto o pé atrás do ego tem base nas consequências que a ação pode acarretar.
“Meu deus, o que os outros vão pensar?” é o ego questionando o id. “Não vai fazer isso nem a pau, essa ação é errada e indecente”, diria o superego.
Segundo Freud, o surgimento dessa instância repressora tem tudo a ver com o complexo de Édipo. Num primeiro momento da nossa infância, quando esse complexo está a todo vapor, nossos impulsos são contidos pela autoridade dos pais, que estão sempre alternando suas provas de amor com advertências e punições – a menininha acha graça em jogar o iogurte no chão, e lá vem uma reprimenda para acabar com a alegria. Quando, então, a criança supera o complexo de Édipo – e seu universo passa a se estender para além da relação com os pais –, essas proibições são internalizadas.
Você mesmo assume os “não pode”, “não deve”, “para com isso”, que antes vinham só da boca do papai e da mamãe – para Freud, principalmente do papai. “O superego conservará o caráter do pai, e quanto mais forte foi o complexo de Édipo, tanto mais rapidamente (sob influência de autoridade, ensino religioso, escola, leituras) ocorreu sua repressão, tanto mais severamente o superego terá domínio sobre o ego como consciência moral, talvez como inconsciente sentimento de culpa.” E segura que lá vem mais um bocado da perspectiva machista de Sigmund Freud.
A fase edipiana do menino termina quando, sob a ameaça de castração representada pelo pai, o moleque renuncia ao desejo pela mãe, passando a se identificar com as proibições e regras das quais o pai é o portador – ou era, nos tempos de Freud, quando o homem seria sempre o chefe da casa. É assim que a internalização de um sistema de obrigações e ideais, ligado à figura paterna, gera essa parte da personalidade no menino. Ou seja, o medo de perder o pinto por causa dos seus desejos faz nascer o superego.
E nelas? Afinal, menina não tem pinto para perder. O complexo de Édipo funciona de forma diferente aqui: a garota se revolta com a mãe, achando que ela é a culpada pela sua ausência de pênis, e volta seu desejo na direção do pai – já que ele tem o que ela inveja. Assim, enquanto o medo da castração faz o menino sair do complexo de Édipo, é a constatação de que “é castrada” que faz a menina entrar nesse complexo. Freud não descobriu direito por que a menina uma hora acaba deixando a fase edipiana para trás. Mas o que importa agora é algo que ele acha que descobriu: se a menina já “é castrada”, e assim não tem um pênis para colocar em risco, ela é um tipo de ser humano sem nada a perder.
O superego, por isso, seria frágil nas mulheres, o que explicaria a visão de que “mulher é tudo louca”: segundo Freud, elas falham na sua moralidade, falham na tomada de decisões racionais, são impulsivas e precisam de alguém – um homem, claro – que as contenha.
E a comparação negativa para o lado das mulheres não para aí. O superego, além de fazer papel de censor e agente da moral e dos bons costumes, é a principal instância de aperfeiçoamento do indivíduo – tem funções educativas, é transmissor dos valores da sociedade e da ética dos pais. Assim, busca a construção de um ideal de pessoa. Já a mulher, com seu superego subdesenvolvido, teria problemas de caráter. A ponto de Freud acreditar que, devido à bissexualidade inerente a todo indivíduo, o homem nunca atingirá uma condição de suprassumo da humanidade. Afinal, tem em si uma porção feminina estragando tudo.
Saco de pancadas
Sim, o conflito entre essas três instâncias é um verdadeiro MMA no nosso ringue psíquico. E quem toma porrada é sempre o ego. De um lado, precisa dar uma chave de braço no id para conter seus impulsos agressivos e sexuais –, mas não com tanta força que o impeça de aliviar a tensão que um desejo impõe. De outro, precisa suportar os cruzados do superego, que quer construir o indivíduo mais certinho da humanidade, criado à base de leite com pera. “Vemos esse ego como uma pobre criatura submetida a uma tripla servidão”, diz Freud, “que sofre com as ameaças de três perigos: do mundo exterior, da libido do id e do rigor do superego”.
Com golpe vindo de todo lado, não é de se estranhar que haja tanto remédio para ansiedade. Nossos sentimentos de culpa, que geram uma baita tensão, nascem desse conflito entre o ego e o superego, entre aquilo que somos e o que a parte mais moralista da nossa personalidade gostaria que fôssemos – na nossa mente, o nosso eu está sempre sendo julgado.
Transferindo para um exemplo do cotidiano, essa tensão se manifesta sempre que você termina de raspar uma lata de leite condensado. Muita gente com problema de peso tem de encarar essa briga de foice entre um id devorador e um superego fazendo cara de “que absurdo” diante da balança. Como, então, sair inteiro desse ringue psíquico? Freud usou a expressão força do ego para se referir à capacidade de a mente lidar com instâncias em conflito. Um ego forte permite administrar bem essas pressões, impedindo que uma das instâncias seja tão dominante que resulte em uma personalidade desequilibrada.
Alguém que tenha o id hiperativo tende a ser excessivamente impulsivo e incontrolável na busca por satisfazer seus desejos. É o perfil clássico do psicopata, a pessoa que não pensa duas vezes em pisar nos outros para atingir o que quer. O traficante colombiano Pablo Escobar, responsável por cerca de 4 mil assassinatos, é um bom exemplo. Quando soube que um garçom havia roubado prataria da sua casa, Pablo ordenou que seus jagunços amarrassem os pés e as mãos do rapaz e o jogassem na piscina – onde, claro, o garçom morreu afogado. Além da desproporção do corretivo – “você rouba uns garfos meus, eu te mato” –, não havia, na mente de Pablo, força do ego suficiente para deixar a ação para outra hora, até o momento em que a raiva passasse. Com o id a toda, Escobar assassinou o garçom bem no meio de uma festa, na frente dos seus próprios convidados.
Já um superego dominante gera um indivíduo moralista, paralisado pelos impedimentos que sua mente impõe a vida toda. É um perfil que se encaixa bem nos fanáticos religiosos, que guiam suas condutas tendo como ponto de partida sempre um conjunto de proibições.
A boa notícia é que esse conflito é produtivo também. As três instâncias trabalham juntas na formação do seu comportamento. O id cria as demandas, o ego acrescenta as necessidades da realidade, e o superego incorpora a moral à ação. Segurando a onda dos elementos mais radicais dessas influências, o resultado pode ser um indivíduo em paz consigo mesmo – ainda que, às vezes, sua mente tenha de recorrer a escudos e disfarces para chegar lá.