Como os escandinavos invadiram boa parte da Europa e registraram seus mitos (depois de não acreditarem mais neles).
Texto: Reinaldo José Lopes | Edição de Arte: Estúdio Nono | Design: Andy Faria | Imagens: Rômulo Pacheco e Getty Images
omecemos com um aviso de utilidade pública: pelo amor de Odin, nunca diga “mitologia viking”, mui nobre leitor. Seria mais ou menos como usar o termo “mitologia dos legionários” para designar os mitos da Roma antiga. Assim como os legionários eram os soldados das legiões romanas (exércitos), não correspondendo, portanto, a todo o povo dos Césares, o termo “viking” não designava uma etnia, mas sim, ao que tudo indica, uma ocupação: a dos sujeitos que se lançavam ao mar em viagens de longa distância, que podiam ter como objetivo investidas militares, comércio ou, já que ninguém é de ferro, um pouco das duas coisas, dependendo do porto onde o navio desembarcava. É nesse sentido que o termo é utilizado nos textos medievais que chegaram até nós descrevendo o “comportamento viking”. Beleza?
Tendo tirado esse bode da sala, vamos a outro ponto importante: contexto. Os territórios que historicamente foram a fonte das expedições dos vikings também são os principais responsáveis por preservar dados substanciais sobre as narrativas mitológicas dos antigos povos germânicos. Para situar melhor esse pessoal no mapa-múndi moderno, estamos falando basicamente da região que, na Europa continental, abrange a Dinamarca, a Suécia e a Noruega.
A primeira coisa a se ter em mente em relação a essa área é que ela ficou de fora dos domínios do Império Romano, senhor quase absoluto da Europa (e da África do Norte, e de um bom pedaço do Oriente Médio também), mais ou menos entre a época do nascimento de Cristo e o ano 400 d.C.
Por motivos logísticos e econômicos, a expansão romana chegou ao sul da atual Alemanha, mas não foi adiante, deixando a maior parte dos antigos povos germânicos livres para tocar sua vida sem ter de responder a um imperador (ou para atacar as fronteiras romanas de vez em quando).
Os dados arqueológicos revelam sinais abundantes de comércio entre os domínios de Roma e os grupos ao norte da fronteira, mas, do ponto de vista político e social, os nórdicos da Antiguidade continuavam a viver em vilas, com um estilo de vida fortemente agrário e tribal, no qual quase nenhum chefe conseguia comandar mais do que algumas centenas ou, com muita sorte, poucos milhares de guerreiros.
Mais importante ainda da perspectiva da nossa história, enquanto o Império Romano se torna oficialmente cristão e abole todos os cultos politeístas (ou seja, que adoram diversos deuses ao mesmo tempo) no fim do século 4º d.C., os povos do extremo Norte quase não sentem as influências desse novo ambiente religioso, continuando a cultuar suas divindades ancestrais por séculos, o que também deve ter contribuído para a preservação das tradições a respeito desses deuses por lá.
O fim de Roma como potência imperial não foi o fim do processo de cristianização da Europa Ocidental, no entanto. Os reinos germânicos que tomaram o lugar do antigo Império na Espanha, na Gália (atual França) e na Itália foram criados por chefes guerreiros que já tinham aderido à nova fé ou que logo acharam que valia a pena aceitar o batismo.
Já a Bretanha romana, mais ou menos correspondente à Inglaterra, ao País de Gales e ao sul da Escócia modernos, foi quase toda invadida e conquistada por guerreiros germânicos politeístas – os anglos, saxões e jutos – vindos da atual fronteira entre a Alemanha e a Dinamarca, gente que tinha muita coisa em comum com seus vizinhos escandinavos. Tais tribos retalharam o solo bretão entre si, lá criaram seus próprios reinos e, após alguns séculos, mais ou menos a partir do ano 600 d.C., começaram a aceitar a presença de missionários cristãos, como monges vindos da Irlanda e até da própria Roma.
No fim das contas, também os anglo-saxões acabaram trocando Woden (Odin) e Thunor (Thor) por Jesus Cristo, de modo mais ou menos pacífico. Coisa bem diferente aconteceu com as tribos do norte da Alemanha, como os saxões (sim, os parentes dos conquistadores da Inglaterra que ficaram no continente e não cruzaram o mar). Na base da pancadaria, o imperador germânico Carlos Magno (742-814) os subjugou e lhes impôs a fé cristã.
Podemos dizer, de maneira geral, que os últimos pagãos de fala germânica da Europa foram os escandinavos. E, logo depois que Carlos Magno cristianizou a Saxônia a ferro e fogo, temos a primeira notícia de um ataque viking – ironicamente, uma incursão que desembarcou na ilha de Lindisfarne, parte do reino cristão de Nortúmbria (norte da Inglaterra), então ocupada por um monastério, no ano de 793.
Era a história se repetindo como tragédia: os descendentes dos invasores anglo-saxões estavam sentindo na pele o que era ser atacado por guerreiros vindos do mar. “Os pagãos derramaram o sangue dos santos em torno do altar e pisotearam os corpos dos santos no templo de Deus, como esterco nas ruas”, escreveu consternado o erudito anglo-saxão Alcuíno de York, então um dos membros mais importantes da corte de Carlos Magno, ao saber do desastre.
O massacre em Lindisfarne foi só um gostinho do que estava por vir. Nos séculos seguintes, frotas nórdicas cada vez maiores, normalmente vindas da Dinamarca e da Noruega, puseram-se a obter quantidades cada vez mais vultosas de metais preciosos e escravos nos dois lados do Canal da Mancha, chegando perto de dominar todos os reinos ingleses e fundando seu próprio ducado, o da Normandia, no território governado pelos descendentes de Carlos Magno. (“Normandia”, aliás, vem do termo usado para designar os “homens do norte” em latim.)
Na parte oriental da Europa, grupos formados principalmente por senhores da guerra suecos foram subindo os grandes rios da região e, com o apelido de Rus, tornaram-se os fundadores dos Estados que dariam origem à Rússia e à Ucrânia, isso quando não se alistavam como mercenários de elite no exército do Império Bizantino, formando uma unidade militar só sua, a chamada Guarda Varangiana.
Chefes vikings fundaram Dublin, na Irlanda; outros conquistaram as ilhas da costa ocidental da Escócia; e os mais aventureiros e malucos de todos, avançando para regiões desconhecidas do Atlântico, chegaram à Islândia (praticamente desabitada, pelo que sabemos), à Groenlândia e até ao litoral da América do Norte (ambas habitadíssimas por povos indígenas). Coloque tudo isso no mapa e você perceberá como era gigantesco o “mundo viking”, em seu auge.
As razões que levaram a essa expansão impressionante ainda não estão totalmente claras. De qualquer modo, com o passar dos séculos, o avanço viking acabou sendo vitimado por seu próprio sucesso. A partir do momento em que os navegantes nórdicos deixaram de simplesmente pilhar o mais rápido possível as regiões costeiras e decidiram que era uma boa ideia se fixar nas terras europeias mais ao Sul, explorando-as em tempo integral, eles acabaram envolvidos permanentemente na trama de relações políticas e econômicas do continente – e estamos falando de um continente que se tornava cada vez mais cristão.
Era inviável manter a crença nos velhos deuses e ao mesmo tempo cultivar alianças com potências emergentes como o Sacro Império Romano-Germânico (cujo embrião surgiu quando o próprio papa coroou Carlos Magno em Roma, no Natal do ano 800), a França e a Inglaterra unificada, que se tornou um reino governado por um só soberano justamente graças à reação contra os invasores escandinavos.
Entre os anos 900 e 1100, mais ou menos, os povos germânicos do extremo Norte foram abraçando paulatinamente o cristianismo, com a chegada de missionários, a construção de igrejas e monastérios, o batismo de reis (em geral seguidos por seus principais nobres) e alguns conflitos religiosos sérios entre adeptos da nova e da antiga fé.
É aqui que preciso destacar mais uma vez o papel central da pequenina Islândia na preservação de grande parte da herança pagã escandinava. Perdida lá nos cafundós do Atlântico Norte, colonizada por imigrantes noruegueses que começaram a botar os pés na ilha nos anos 870, aparentemente fugindo do processo de centralização política que acabaria por transformar a Noruega num reino unificado, a Islândia se tornou o ambiente ideal para a conservação de antigas tradições: um lugar altamente fora de mão, povoado por gente que queria manter seu modo de vida original a todo custo.
Provavelmente não por acaso, o islandês moderno é, de longe, a língua que mais se aproxima do idioma falado pelos nórdicos da Era Viking (na época, ainda não havia diferenças muito significativas entre dinamarquês, norueguês, islandês e sueco, como há hoje). Esse espírito conservador, por assim dizer, acabou até criando um nicho para os islandeses no mercado de trabalho medieval: a ilha virou exportadora dos chamados escaldos, os grandes poetas e bardos do mundo nórdico.
Se você já teve a chance de ler os textos de alguns dos grandes poetas da Antiguidade greco-romana, como os gregos Homero, Hesíodo ou Píndaro, ou então os romanos Virgílio ou Ovídio, certamente percebeu que a arte desses sujeitos dependia muito das referências a episódios das mitologias grega e romana. As aventuras e amores de deuses e heróis eram a principal matéria-prima e compunham o pano de fundo essencial para a imaginação literária e para a cultura daquele período.
A mesma coisa, consideradas as devidas proporções, valia para a nobreza escandinava. Se um escaldo se punha a arquitetar aquela puxação de saco básica de certo chefe guerreiro, almejando ser recompensado por ele com alguns braceletes ou anéis de ouro, a melhor aposta era comparar suas aventuras às lutas de Thor contra os gigantes ou afirmar que, após uma vida de combates gloriosos, o brutamontes em questão certamente seria recrutado como membro dos Einherjar (pronuncia-se “êinheriar”), os guerreiros imortais de Odin que lutarão ao lado dos deuses no fim dos tempos.
Para cantar de forma adequadamente nobre e elevada os feitos de seus patronos, os escaldos da Islândia e do resto do “mundo viking” precisavam ter os episódios mitológicos de seu povo na ponta da língua, e mais ou menos a mesma coisa valia para o público que os ouvia declamar (e provavelmente cantar, com acompanhamento instrumental) seus versos – a graça da coisa era justamente entender as referências e a habilidade com que elas eram usadas.
Com a conversão ao cristianismo, surge um impasse, que aliás não era propriamente novo. Algo bastante parecido já ocorrera nas regiões mais ao sul da Europa na época da transição entre um Império Romano pagão e sua versão cristã: o que fazer com essa cultura, considerada nobre e refinada, que tinha uma ligação tão estreita com o passado politeísta e com deuses considerados falsos, ou mesmo demoníacos?
Na antiga esfera de influência de Roma, a resposta foi transformar os deuses de Homero e Virgílio em referências literárias “aceitáveis” – desde que deixassem de ser adorados, lógico. Parece que algo do tipo aconteceu também na zona escandinava.
Um dos grandes defensores de tal visão, e provavelmente o indivíduo que mais contribuiu para a preservação de parte do legado mitológico nórdico, atendia pelo nome de Snorri Sturluson (1179-1241). Snorri era um poeta, historiador e político islandês, gorducho e amante da boa vida, que desempenhou papel de destaque no Alþing, uma espécie de parlamento de sua ilha, até ser assassinado por rivais políticos (três dos quais genros dele…) na adega de sua própria casa. (A letrinha esquisita tem o mesmo som do th na palavra thing em inglês.)
Antes do golpe fatal desferido por seus adversários, porém, o erudito teve tempo de produzir uma série de obras seminais, entre elas a chamada Edda em Prosa, o único relato detalhado em forma não poética sobre a origem, os feitos e o destino dos deuses escandinavos.
Snorri, assim como todos os moradores da Islândia de seu tempo, era cristão, o que significa que ele precisava de uma boa desculpa para abordar as histórias sobre as divindades pagãs. Fácil: boa parte da Edda em Prosa é um tratado que ensina como fazer poesia à moda antiga, usando a métrica e a linguagem tradicionais dos escaldos pagãos, com exemplos práticos e tudo o mais.
De fato, uma tradução aproximada possível do termo edda seria algo como “arte poética”. Mas o ponto central é que as dicas do erudito para os jovens escaldos dependiam do conhecimento das antigas referências mitológicas, o que permitiu que ele explicasse, com considerável nível de detalhe, como eram os mitos originais e seus principais personagens.
No prólogo da Edda em Prosa, nosso amigo Snorri também se saiu com uma explicação engenhosa para a origem das histórias fabulosas a respeito dos antigos deuses do Norte: eles seriam, na verdade, reis e guerreiros humanos do passado remoto que, com o transcorrer dos milênios, adquiriram fama praticamente divina. Hipóteses desse naipe na verdade eram comuns na Antiguidade e na Idade Média, sendo usadas para explicar também figuras mitológicas de outras culturas.
Seguindo essa mesma linha, Snorri propôs que a família dos deuses nórdicos (na verdade, humanos muito poderosos) teria se originado na célebre cidade de Troia, a da guerra entre gregos e troianos narrada por Homero. Thor, por exemplo, originalmente seria conhecido como Tror (pegou a semelhança dos nomes? Thor/Tror/Troia, hein?). Um dos descendentes de Thor, chamado Odin, teria decidido deixar a região de Troia e fundar novos reinos no norte da Europa, o que conseguiu fazer sem dificuldade graças à sua sabedoria, riqueza e habilidade.
Como esses novos governantes tinham vindo da Ásia, onde fica Troia (mais precisamente, na atual Turquia), seus súditos passaram a chamá-los de Æsir, o nome coletivo dos principais deuses escandinavos. (Na verdade, a palavra, às vezes aportuguesada como “ases”, não tem nada a ver com a Ásia; seu sentido original parece ter sido algo como “força, vida, alento”; a letrinha esquisita, desta vez, tem som similar ao do nosso “é”).
Outra fonte crucial, que talvez contenha camadas mais primitivas do universo mítico germânico, é a Edda Poética, uma compilação de poemas (não diga!) cujo editor e cujos autores não são conhecidos, mas seus manuscritos têm mais ou menos a mesma idade dos textos de Snorri. A idade aparentemente mais recuada de trechos da Edda Poética é proposta pelos especialistas, em parte, por causa de detalhes da linguagem dos poemas, e também por aspectos de seu conteúdo.
Se as estimativas deles estiveram corretas, há material ali que talvez remonte aos anos 800-900 d.C., vários séculos antes da composição do manuscrito, portanto. A obra começa com o texto Völuspá (“A Profecia da Vidente”), uma magnífica junção de narrativas sobre o começo e o fim do cosmos, e depois apresenta histórias sobre os deuses, coleções de ditos da sabedoria popular e, finalmente, uma grande série de poemas heroicos, a maioria dos quais sobre a família de Sigurd, o mais poderoso guerreiro da tradição escandinava.
Apesar da abundância de textos sobre Sigurd e seus ancestrais e descendentes na Edda Poética, o melhor jeito de acompanhar a trajetória do herói sem quebrar demais a cabeça é a Saga dos Volsungos, escrita no fim do século 13, cujo objetivo é justamente contar a história da família dele, desde suas origens.
Na narrativa, Sigurd ganha fama imortal ao despachar para o quinto dos infernos (ou melhor, para Hel, o reino dos mortos escandinavo) o dragão Fafnir, obtendo assim a fabulosa fortuna do bicho, mas esses elementos claramente míticos convivem com fragmentos da história germânica do fim da Antiguidade, como a formação dos reinos bárbaros no território de Roma ou o célebre rei dos hunos, Átila, o “Flagelo de Deus” (na história, ele se casa com a viúva de Sigurd). A lenda do matador de Fafnir ganhou tanta fama que inspirou ainda um poema épico em alemão medieval, A Canção dos Nibelungos.
Antes que existissem guerreiros, dragões ou mesmo gigantes e deuses, porém, era preciso dar forma e ordem ao Universo. Comecemos, portanto, do início.