A fuga das galinhas
A pior situação, de longe, é a das aves: a cada ano, o homem cria nada menos do que 19 bilhões de galinhas, segundo dados da FAO (divisão alimentar da ONU). A imensa maioria vive confinada, ocupando espaço menor que o de um caderno. Muitas nunca veem a luz do dia. Estressadas, elas atacam e ferem umas às outras, o que os criadores tentam evitar recorrendo a uma prática medieval: fazem a chamada debicagem, ou seja, cortam a ponta do bico dos animais.
Mas há sinais de melhora – a começar pela própria debicagem. As granjas brasileiras já estão substituindo o processo tradicional, feito com lâmina, por luz infravermelha. No primeiro dia de vida dos pintinhos, com seu bico ainda em formação, a ponta dele (onde não há terminações nervosas) é exposta a uma luz infravermelha, e por isso amolece e cai. O método é indolor e nem se compara à violência da debicagem tradicional, que podia acabar cortando além do necessário e causar sofrimento. “O infravermelho é muito menos prejudicial para a ave, porque garante a precisão”, diz Paola Rueda, da ONG World Animal Protection.
Cada vez mais granjas estão criando as galinhas soltas, com liberdade para ciscar no pasto. Na Inglaterra, 48% de toda produção de ovos já é gerada nesse sistema. No Brasil a JBS e a BRF, as duas maiores empresas de alimentos do País, se comprometeram a não comprar mais ovos de granjas que deixam as galinhas presas – a partir, respectivamente, de 2020 e 2025. O McDonald’s prometeu fazer o mesmo, nos EUA, no Canadá e em mais 20 países, incluindo o Brasil, até 2025. O Grupo Pão de Açúcar e o Carrefour, as duas maiores redes de supermercados do Brasil, também anunciaram que no futuro pretendem comercializar apenas o “ovo caipira”, que é produzido por galinhas criadas soltas. Mas você já pode se antecipar a isso, e a outras mudanças em prol do bem-estar animal, na hora de fazer suas compras de supermercado.
Além de melhorar a vida das galinhas, o ovo caipira é um bom negócio para o consumidor (porque contém até 30% mais vitamina D, segundo um estudo feito pela Universidade de Reading, na Inglaterra(2)) e para o produtor: como sofrem menos estresse, as galinhas criadas soltas põem ovos por até dois anos, chegando a produzir 400 deles. No sistema convencional, as galinhas só põem ovos durante um ano e meio, e seu rendimento é menor: 300 ovos por animal, em média. A Granja Mantiqueira, que fica em Minas Gerais e é a maior da América do Sul, já cria parte das suas galinhas fora de gaiolas – e produz 450 mil ovos por dia nesse esquema.
Continua após a publicidade
A trituração de pintinhos machos, uma das práticas mais cruéis da indústria alimentícia, parece estar com os dias contados: nos EUA, a Associação de Produtores de Ovos se comprometeu a abandoná-la até 2020. A Europa, por sua vez, estuda a adoção de uma técnica que usa laser para determinar, já no terceiro dia após a colocação do ovo, se ele contém um embrião macho ou fêmea. Dessa forma, os ovos que contêm embriões machos poderiam ser imediatamente separados e utilizados em outras atividades (produção de ração animal, por exemplo), evitando que os pintinhos cheguem a se desenvolver e nascer – e acabem descartados por meios cruéis. No Brasil, desde 2016 tramita no Congresso um projeto de lei, de autoria do deputado Rômulo Gouveia (PSD-PB), proibindo o uso de triturador ou o sufocamento dos pintinhos.
50 litros de leite, por dia: é quanto cada vaca chega a produzir – três vezes mais do que seria normal em condições naturais.
As vacas sofrem menos do que as galinhas, mas também são maltratadas. Na natureza, elas formam grupos de amigas e passam a maior parte do dia juntas. Mas têm uma vida terrível nas fazendas de criação intensiva. Em muitas delas, a novilha é inseminada aos 15 meses e depois terá uma gestação forçada por ano para produzir 15, 30 ou até 50 litros de leite por dia, durante os nove ou dez meses de lactação. “O esforço exigido de uma vaca, para que ela dê 50 litros diários de leite, é como o de um atleta que corre uma maratona por dia”, diz o veterinário John Webster, da Universidade de Bristol. Tanto que essas vacas são abatidas aos 5 ou 6 anos, quando o normal seria viver 20.
Continua após a publicidade
Mas nem sempre é assim. A fazenda Leitíssimo, que fica na Bahia e produz 1,5 milhão de litros de leite por mês, adota uma série de técnicas para melhorar a vida de suas 4 mil vacas. Elas ficam soltas no pasto, e não são forçadas a produzir leite em excesso (a média é de 13 litros por dia). Além disso, a fazenda emprega a chamada “sexagem do sêmen”. Um processo de laboratório separa os espermatozoides que possuem o cromossomo X (eles têm 4% a mais de DNA, e podem ser diferenciados visualmente). Os demais, que possuem o cromossomo Y, são descartados. Como as vacas são inseminadas apenas com espermatozoides X, elas só têm bezerras fêmeas (que carregam os cromossomos XX). Com isso, o processo não gera bezerros machos (XY), que são indesejados e acabam sendo mortos nas fazendas convencionais. A empresa, que recebeu mais de R$ 100 milhões de investimento, já oferece seu leite nos supermercados de 12 Estados brasileiros.
No caso dos suínos, como a pobre porquinha que ilustra o começo deste texto, a principal melhoria é a gestação coletiva: em vez de ficar numa gaiola, ela pode viver em grupo, e num espaço maior. “Isso permite que o animal caminhe, descanse onde quiser e interaja com outros. Pode também buscar alimento, um comportamento extremamente importante para o suíno”, afirma Rueda, da World Animal Protection. Essa ONG realizou, em 2012, um estudo pioneiro na Granja Miunça (Distrito Federal), demonstrando que a gestação coletiva era economicamente viável.
A prática já está sendo adotada pela indústria. A BRF foi a primeira, em 2014, a anunciar sua adesão ao modelo. “Mais de 100 mil matrizes (porcas reprodutoras) do nosso plantel já seguem o novo sistema”, diz a empresa, que promete colocar todas as suas porcas em gestação coletiva até 2026 – um ano depois da JBS.
A indústria não está revendo seus métodos unicamente pelo bem-estar dos animais. É que a Europa, grande compradora de carne do Brasil, tem banido várias práticas (a criação de porcas em gaiolas, por exemplo, é proibida por lá desde 2013) e pressionado nossas empresas a fazer o mesmo. Uma análise feita pela World Animal Protection, que comparou as condições de 50 países (3), colocou o Brasil na categoria “C”, junto a França, Itália, Austrália e Índia no quesito bem-estar animal – atrás dos EUA, que entraram na categoria “B”, mas à frente do Canadá (“D”).
Continua após a publicidade
As condições dos animais podem melhorar, mas é impossível evitar um fato: eles são criados para virar comida. Logo, em algum momento, terão de ser mortos. O abate é o momento mais traumático, e polêmico, do processo de produção de alimentos. Mas mesmo ele pode ser aperfeiçoado – e já está sendo.