O monstro
Quando criança, Josef queria ser um cientista famoso. Já formado em medicina, viu em Auschwitz a oportunidade para realizar seu sonho – usando humanos como cobaias.
“Rechts”, “links”, dizia o médico de 33 anos, estatura mediana, olhos e cabelos castanhos, e os incisivos superiores notavelmente separados. No uniforme da SS, uma Cruz de Aço: ele era o único médico do complexo de Auschwitz com condecoração de guerra. A cada preso que saía do trem, o rapaz apontava para uma ou outra direção com uma bengala – acabara de quebrar a bacia num acidente de moto no campo de concentração, em junho de 1943. “Rechts”: e seguiam para a fila da direita os judeus capazes para o trabalho escravo. “Links”: e seguiam para a esquerda os “incapazes”, a caminho de Birkenau, rumo às câmaras de gás. Mas dr. Josef Mengele buscava ainda um terceiro grupo: cobaias humanas, sobretudo irmãos gêmeos. Para o médico, que mal tinha se formado antes de ir para o front, Auschwitz não era apenas um trabalho. Era o trampolim para a fama.
“Josef me falou que um dia eu ainda leria seu nome na enciclopédia”, disse o ex-colega de escola Julius Diesbach, numa entrevista de 1980. Não que lhe faltasse pedigree. Até hoje, a cidadezinha bávara de Günzburg, onde nasceu em 1911, ostenta uma rua Mengele. A homenagem não se refere a Josef, mas a seu pai, Karl, dono da terceira maior indústria de equipamentos agrícolas da Alemanha. Os negócios do pai não atraíam o primogênito. Josef queria ser conhecido por algo mais grandioso. Decidiu tornar-se o primeiro cientista da família Mengele e virou médico.
Josef estava na hora errada no lugar mais errado da história: foi estudar na Universidade de Munique em 1930. A cidade era notória por sediar o partido nazista, e por servir de palanque para um certo ex-soldado austríaco, que tinha planos de exterminar judeus e de dominar o mundo. Hitler. Naquele ano, uma crise econômica agravava a polarização política, de forma que o partido nazista já era o segundo no Parlamento alemão. Além de Munique, poucas universidades eram tão abertas para a ascensão dos nazistas, que confundiam antropologia com genética, e genética com eugenia.
Durante os estudos, um dos professores que mais influenciaram Josef foi o dr. Ernst Rudin, que defendia que médicos deveriam eliminar certas vidas “destituídas de valor” para “higienizar” a raça. Em 1933, quando Adolf Hitler virou chanceler alemão, a ideia de Rudin virou a Lei para Prevenir Doenças Hereditárias, que previa a esterilização obrigatória de pessoas com atraso mental, deformidades físicas, cegueira e surdez. O racismo, assim, virou política de Estado. Com 45% dos médicos alemães afiliados ao partido nazista, a medicina eugenista chegou a Josef Mengele.
Para coroar sua adesão ao nazismo, em 1938, Mengele se filiou à SS, a Schutzstaffel, força paramilitar de Hitler. Para isso, teve seus detalhes físicos detalhadamente registrados. Consta dos arquivos da SS que Mengele tinha 1,74 m de altura e 78 kg, tórax arqueado com 93 cm de diâmetro, cabeça com 57 cm de diâmetro e formato achatado, porte atlético, todos os dentes molares obturados e um histórico de sepse, osteomielite e nefrite aos 15 anos. Cinco décadas depois, foi essa minúcia dos arquivos nazistas que ajudou a identificar o paradeiro de Mengele.
Dois meses depois de entrar para a SS, recebeu o título de doutor pela Universidade de Frankfurt. Mas a carreira pseudocientífica do dr. Mengele foi breve. No dia 10 de setembro de 1939, a Alemanha invadiu a Polônia e iniciou a 2a Guerra Mundial – Mengele tinha 28 anos de idade, cinco meses de casado e apenas dois estudos publicados: uma tese comparativa sobre maxilares e um artigo que analisava a hereditariedade de dobrinhas na orelha. Depois de uma breve passagem pelo front soviético, no qual resgatou dois soldados alemães de um tanque em chamas e acabou condecorado com a Cruz de Aço, Mengele voltou para a pesquisa médica. Desta vez, porém, em Auschwitz. Ele tinha apenas 32 anos.
Os gêmeos
Para os médicos nazistas, a triagem de prisioneiros era a tarefa mais estressante do campo. Quem contou isso foi a dra. Ella Lingens, austríaca presa no campo por ter protegido judeus. “Alguns chegavam a se embebedar antes do batente.” Mengele, não. Nenhum colega era tão resoluto ao selecionar prisioneiros para as filas da direita ou da esquerda. Ganhou notoriedade pela eficiência ao lidar com uma epidemia de tifo entre as presas de Birkenau, no fim de 1943. Nessa ocasião, sem hesitar, Mengele mandou matar todas as 600 mulheres de um bloco e, em seguida, desinfetou o lugar. No fim de 1944, Mengele resolveu uma crise de abastecimento diminuindo o número de bocas no campo: mandou cerca de 4 mil mulheres para a câmara de gás diariamente, por dez dias. 1,1 milhão de pessoas seriam mortas em Auschwitz-Birkenau entre 1940 e 1945.
Essa atividade quase administrativa, porém, não era seu maior interesse. Mengele mantinha o sonho adolescente de se tornar um cientista reconhecido. Experimentos com prisioneiros vinham sendo conduzidos em vários campos de concentração: testes de temperatura e desidratação extremas em Dachau, transplantes em Ravensbruck, armas químicas em Sachsenhausen, infecção com doenças em Buchenwald. Auschwitz era o maior dos campos e Mengele resolveu praticar, em escala industrial, seus experimentos de “higiene racial”.
No verão de 1943, o médico realizou sua primeira tentativa: injetou pigmentos nas íris de dezenas de crianças, para reproduzir olhos azuis. O resultado foram infecções e, em alguns casos, cegueira. Mengele preservava os olhos e enviava as crianças para as câmaras de gás. Também fez experimentos com anões e pessoas com deficiências. Mas seu maior interesse, como já dissemos, eram irmãos gêmeos, que serviriam para pesquisar se uma dada característica era genética ou conse-quência do ambiente.
Pares univitelinos eram alimentados e tratados contra doenças num galpão de Birkenau, apelidado de “Zoológico”. Uma vez saudáveis, seguiam para o hospital, onde médicos tiravam suas medidas e os entregavam a Mengele, que os examinava por horas. Começavam, então, os experimentos in vivo: amputações, punções lombares, transfusões de sangue de tipo incompatível, infecção com doenças. Um irmão servia de cobaia, outro, de controle. Depois, o médico matava os dois e comparava os corpos.
Nunca foram encontrados documentos relatando os experimentos de Mengele – as informações vêm dos sobreviventes e de colegas. Certo, porém, é que o alemão não deixou nenhuma contribuição para a ciência. Diferentemente do mito do gênio diabólico, Mengele não era genial, mas um médico medíocre que parou de estudar aos 28 anos – e que usou cobaias humanas para se projetar academicamente dentro de uma pseudociência.
O primeiro disfarce: trabalhador rural
Quando a derrota na 2a Guerra se tornou inevitável, os principais líderes nazistas se suicidaram, antes que as tropas aliadas os capturassem. Outros oficiais foram presos e enfrentaram julgamento em Nuremberg. Mengele pertence a um terceiro grupo – o dos que fugiram. Quando a artilharia soviética estava a dez dias de Auschwitz, em 17 de janeiro de 1945, o médico recolheu os registros de seus experimentos, desesperadamente. Guardou em duas caixas os papéis que considerava mais importante e partiu com elas num carro que o esperava. À meia-noite, a SS amontoou os demais documentos médicos e os eliminou ao gosto nazista: numa fogueira imensa.
Em setembro, trocou de identidade e virou Fritz Hollmann, um camponês de mãos macias e sotaque aristocrático. “Fritz” trabalhou em plantações do sul da Alemanha, colhendo batatas por quatro anos, até conseguir um passaporte falso da Cruz Vermelha em 1949. Desta vez sob o nome “Helmut Gregor”, abandonou sua Heimatland para iniciar uma nova vida em Buenos Aires. Deixou para trás a mulher Irene, o filho de 5 anos, Rolf, que só vira uma vez, e o sonho adolescente de um dia ser um grande cientista.