Durante a Guerra Fria, os EUA tentaram confundir a URSS vazando informações sobre uma arma química incrivelmente letal que na verdade não existia – ela era impossível de fabricar. Mas o plano deu errado: os russos conseguiram produzir o gás. E ele pode ter sido usado recentemente contra dois inimigos do Kremlin.
Texto Eduardo Szklarz e Bruno Garattoni Ilustração Amanda Miranda Design Juliana Krauss
Alexei Navalny acordou bem cedo e foi direto para o aeroporto de Tomsk, na Sibéria, sem tomar café da manhã. Por volta das 7h, comprou um chá e ficou esperando para embarcar no voo de volta para Moscou. Tirou uma selfie, sorridente, com pessoas que o reconheceram no aeroporto – Navalny é blogueiro e político, de oposição ao governo Putin. O avião decolou às 8h, e logo ele percebeu que não estava bem. Entrou no banheiro e ficou lá dentro por 20 minutos, vomitando, até que as aeromoças bateram na porta. Navalny deitou no corredor do avião e entrou em pânico. Começou a gritar, aparentemente de dor, e às 9h20 o piloto decidiu fazer um pouso de emergência no aeroporto mais próximo, na cidade de Omsk. Mas o tempo estava ruim, e o avião só conseguiu aterrisar às 10h. Navalny foi levado direto para o hospital, onde entrou em coma. Por insistência da família, foi transferido para Berlim, onde continuou internado. Só acordou do coma em 7 de setembro de 2020, 17 dias após o fatídico voo.
Em outubro, técnicos da Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPCW), uma divisão da ONU, analisaram amostras de sangue e urina de Navalny. E concluíram que os biomarcadores encontrados “têm características estruturais semelhantes” às do grupo de substâncias conhecidas como novichok. Desenvolvido nos anos 1970 e 1980, o novichok (a palavra significa “novato”, em russo) é cinco a oito vezes mais letal do que o gás VX – até então a arma química mais potente do mundo. E Navalny não foi seu único alvo recente. Em 4 de março de 2018, o ex-espião russo Sergei Skripal e sua filha Yulia foram encontrados inconscientes no banco de um parque na cidade britânica de Salisbury, onde viviam. Ambos sobreviveram, mas ficaram em estado crítico durante semanas. Haviam sido envenenados com novichok.
Os casos desencadearam grandes crises diplomáticas. A Inglaterra acusou os russos de invadir seu território para envenenar Skripal, do mesmo jeito que eles teriam feito com o ex-agente da KGB Alexander Litvinenko (leia texto abaixo). Após o ataque a Navalny, a França pressionou a Alemanha a abandonar o Nord Stream 2, um enorme gasoduto que está sendo construído para levar gás natural da Rússia para a Europa (os russos fornecem 37% de todo o gás consumido no continente, e querem ampliar sua participação). E os Estados Unidos ameaçaram impor novas sanções econômicas aos russos – que negam todas as acusações. O país afirma que o caso Navalny pode ter sido armado pelos EUA ou seus aliados, pois mais de 20 nações supostamente dominam a produção de novichok (em 2018, um consórcio de imprensa reunindo o jornal Süddeutsche Zeitung, a revista Die Zeit e as emissoras NDR e WDR revelou que a Alemanha havia obtido uma amostra do veneno, fornecido por um cientista russo, no final dos anos 1990).
O novichok foi criado pelos russos, mas nasceu devido a uma manobra dos EUA. Durante a Guerra Fria, os americanos vazaram documentos (verdadeiros e falsos) sobre suas tentativas de desenvolver o GJ, um gás extremamente letal – mas, na prática, instável demais para ser usado como arma. O objetivo era fazer os soviéticos desperdiçarem tempo e dinheiro tentando copiar a substância. Só que o tiro saiu pela culatra.