A mitologia clássica está cheia de amores fadados à desgraça, à destruição e à morte. Para os gregos, era inútil lutar contra a fatalidade – e essa ideia foi o que deu origem às grandes tragédias gregas.
Texto: José Francisco Botelho | Design: Andy Faria
Ilustrações: Mike Azevedo e Adams Carvalho
a mitologia grega, o destino nem sempre é gentil com os amantes. Muitas das histórias de amor mais famosas no mundo dos mitos acabam em total desgraça. Moira, a deusa do destino – uma das filhas de Nyx, a Noite –, era uma divindade mais antiga e mais poderosa que o próprio Olimpo: ninguém contestava as suas decisões e nem mesmo Zeus podia contrariá-la.
Além de potente, Moira era misteriosa e indecifrável. “Os antigos gregos acreditavam que as fatalidades e os sofrimentos eram inevitáveis e podiam se abater sobre qualquer um. O que realmente importava era a forma como o ser humano se comportava diante das dores da vida”, explica Viktor Salis, especialista em fenomenologia dos mitos pela Universidade de Sorbonne, na França, e autor de livros como Mitologia Viva (Nova Alexandria, 2011).
Não por acaso, um dos gêneros mais famosos da literatura grega foi a tragédia – como Medeia, de Eurípides, e Édipo Rei, de Sófocles, peças compostas no século 5 a.C. Na tragédia grega, os infortúnios caem subitamente sobre os personagens, jogando-os da felicidade para a tristeza e a miséria – uma representação da fragilidade da condição humana.
Mesmo os heróis mais fortes e prósperos podem terminar a vida na desgraça. E as mais belas paixões rapidamente se transformam em sangue e cinza. Nas próximas páginas, conheça alguns dos amores mais malfadados da mitologia grega.
Medeia e Jasão
Ela era a neta do Sol e a favorita das trevas. Ele era um príncipe sem trono, em busca de glória nos confins do mundo. O amor entre ambos foi um dos mais intensos em toda a mitologia grega – e também um dos mais sangrentos. O encontro aconteceu nas profundezas de um bosque escuro, junto a um altar de Hécate, a temível deusa das bruxas. Achando estar sozinha, a princesa Medeia acabava de fazer uma oferenda à sombria divindade.
Filha de Aetes, rei da Cólquida, e neta de Hélios, o deus do Sol, Medeia era uma das feiticeiras mais poderosas do mundo antigo. Entre seus poderes, estava o dom de falar com os animais, acalmar ou invocar tempestades e erguer ondas gigantes no mar.
Medeia escutou um ruído entre os arbustos e voltou o rosto. Por um instante, a altiva feiticeira ficou sem palavras. Um rapaz de físico perfeito a observava. Tinha cabelos compridos, duas espadas na cinta, e uma pele de leopardo amarrada ao redor do corpo. Imediatamente, Medeia sentiu que seu destino estava ligado para sempre àquele homem.
Estava terrivelmente apaixonada. O jovem herói lançou-se aos pés da bela bruxa. Contou sua história – e implorou ajuda. Chamava-se Jasão e era filho de Éson, o rei destronado da cidade de Iolcos, na Tessália. O trono fora roubado pelo irmão de Éson, o inescrupuloso Pélias.
Quando Jasão, o legítimo herdeiro, exigiu o que lhe era devido, o usurpador lhe respondeu com um desafio aparentemente impossível: “Eu lhe darei o trono de Iolcos quando você me trouxer o Velocino de Ouro”. O Velocino era um artefato feito com a lã do fabuloso Carneiro Dourado. Filho de Poseidon e da mortal Teofane, a mágica criatura tinha inteligência humana e voava como um pássaro.
Após sua morte, virou a constelação de Áries. Com sua lã dourada, foi confeccionado um manto belíssimo e refulgente, que se tornou um dos tesouros mais cobiçados do mundo mitológico. O mirabolante prêmio estava guardado em um jardim no palácio de Aetes – pai de Medeia –, sob a mirada infalível de um dragão de escamas verdes, que jamais dormia.
Para cumprir o desafio, Jasão reuniu uma tropa com os 50 maiores heróis gregos da época. E embarcou no Argos, o maior e mais famoso navio dos tempos míticos. Entre os tripulantes do Argos – chamados de Argonautas – estavam o músico e poeta Orfeu; Héracles, o maior dos mortais; o príncipe Meléagro, da Calidônia; e a princesa-guerreira Atalanta, da Arcádia. E lá se foram os Argonautas em direção à distante Cólquida, onde hoje fica a região do Cáucaso.
Mas a tripulação heroica não era o maior trunfo de Jasão. Antes de começar a jornada, ele havia feito um sacrifício em um templo de Afrodite, suplicando sua ajuda. A deusa do amor decidiu proteger e auxiliar o herói na busca pelo Velocino. Por isso, Medeia se apaixonou à primeira vista: era o poder de Afrodite agindo sobre ela. Em frente ao altar de Hécate, os dois jovens se beijaram e fizeram amor. Em seguida, Jasão prometeu casar-se com Medeia.
Dominada pela paixão, ela decidiu abandonar pátria e família, e passar o resto da vida com aquele homem que acabara de conhecer. A princesa entregou ao amante um frasco negro, contendo uma poção feita com as águas do Letes, um dos rios que corriam no inferno. Algumas poucas gotas foram o suficiente para fazer o terrível dragão insone adormecer. Jasão rapidamente apanhou o artefato de lã dourada e, naquele mesmo dia, o Argos zarpava de volta à Grécia.
Nem bem chegaram lá, contudo, aquele amor cheio de proezas começou a mergulhar nas trevas. Mesmo após a conquista do Velocino, Jasão não conseguiu o trono que desejava. O povo de Iolcos desconfiava dele – não por ser um estrangeiro, mas por ter se casado com uma feiticeira.
Os Argonautas se dispersaram pela Grécia e Jasão, ainda sem trono, foi viver em Corinto – o rei da cidade, Creonte, era seu amigo. Jasão ainda amava Medeia, e já tivera com ela dois filhos, Mêrmeros e Feres. Mas sua ambição política foi maior que a paixão. Quando Creonte lhe ofereceu a mão de sua filha Creúsa – e um posto no governo da cidade –, Jasão decidiu que era tempo de se separar de sua companheira de aventuras: ordenou que Medeia fosse embora e renegou os próprios filhos.
Medeia fingiu aceitar a rejeição: mostrou-se dócil e chegou a oferecer a Creúsa um belo vestido de casamento. Mas uma seguidora de Hécate jamais deixa uma ofensa passar em branco.
No dia do casamento, ao colocar o vestido sobre o corpo, Creúsa soltou um grito de horror: o tecido grudou-se em sua pele e se transformou em fogo. Horrorizado, Jasão viu a noiva se transformar em uma chama viva. De espada desembainhada, correu até a casa onde Medeia vivia com os filhos. Mas, ao chegar lá, deparou-se com uma imagem além do pesadelo mais cruel – uma das cenas mais brutais que a mitologia grega nos legou. Coberta de sangue, Medeia segurava nos braços os corpos degolados de Mêrmeros e Feres – que ela mesma havia matado.
Um clarão ofuscou os olhos perplexos de Jasão: era a carruagem de Helios, o Sol, que viera buscar sua neta. Com os corpos dos filhos, a feiticeira subiu aos céus. “Contempla os filhos que eu mesmo apunhalei, para destroçar teu coração!” gritou Medeia. “E tuas desgraças não estão completas, Jasão: espera até chegar tua velhice”. A profecia de Medeia se cumpriu. Depois de vagar pela Grécia durante anos, Jasão morreu amargurado, velho e sozinho, deitado sobre as areias de uma praia.
Eco e Narciso
Conhecer a si mesmo nem sempre é o caminho para uma vida tranquila. Isso é o que sugere a história de Narciso, filho da ninfa Liríope e do deus-rio Céfiso. Quando ele era menino, um vidente profetizou: “Narciso terá uma vida longa e feliz, desde que jamais conheça a si mesmo”. Desde pequeno, Narciso teve uma beleza hipnótica.
Quando andava pelos bosques, as ninfas suspiravam de paixão. Mas o rapaz cresceu sem jamais corresponder ao amor de ninguém. Uma das ninfas apaixonadas por Narciso era a desventurada Eco. Certa vez, havia ajudado Zeus a encobrir suas infidelidades. Por castigo, Hera lançou sobre a ninfa uma maldição: Eco se tornou incapaz de usar a própria voz, exceto para repetir as palavras dos outros.
Inutilmente, ela seguia Narciso pelos bosques. “Me deixe em paz!”, ordenava o egocêntrico Narciso, e Eco respondia apenas: “Paz… paz… paz…” Sem jamais conseguir declarar seu amor com palavras próprias, Eco acabou se esvanecendo de tristeza: o corpo desapareceu e restou apenas a voz, condenada a repetir sons alheios.
A vaidade de Narciso era tão grande que irritava alguns deuses. Foi o caso de Ártemis, que resolveu puni-lo. Um dia, em suas andanças, ele se deitou junto a uma fonte de água pura para saciar a sede. Mas, no momento em que se inclinava para beber, Ártemis fez com que ele se apaixonasse pelo rapaz que o contemplava na superfície da água: seu próprio reflexo.
Narciso tentou abraçar o amado; mas a água escorria entre suas mãos. Por fim, acabou enterrando uma adaga no peito. Segundo outra versão do mito, de tanto olhar seu reflexo, ele caiu nas águas e morreu afogado. Na grama às margens da fonte, cresceu a flor que hoje leva seu nome.
Édipo e Jocasta
A desventurada história de Édipo, rei de Tebas, foi uma cruel obra-prima de Moira: cada momento da vida dele estava meticulosamente encadeado, numa equação cujo único resultado possível era o infortúnio. Sua vida foi uma minuciosa tragédia.
Édipo era príncipe de Corinto e filho de Pólibo e Periboeia – ou, pelo menos, era isso o que ele pensava. Um dia, o príncipe visitou o oráculo de Delfos com a inocente intenção de conhecer seu futuro. Mas o que ouviu dos lábios da pitonisa, no templo de Apolo, foi a promessa de um pesadelo: “Você matará seu pai e casará com a própria mãe”.
Horrorizado, Édipo fugiu de Corinto. Decidiu afastar-se o máximo possível de Pólibo e Periboeia, para que a profecia jamais se cumprisse. O que Édipo não imaginava é que aqueles eram apenas seus pais adotivos: eles o haviam encontrado quando ainda era bebê, abandonado em um cesto no mar.
Tentando fugir do destino, Édipo vagou pela Grécia. Certo dia, entrou em um desfiladeiro. Andava por uma estrada muito estreita, quando se deparou com um arrogante desconhecido, que vinha chicoteando cavalos em uma carruagem.
O homem ordenou que Édipo saísse de seu caminho. Irritado com o tom de voz do sujeito – cujo rosto, no entanto, lhe era estranhamente familiar –, o orgulhoso jovem se recusou a obedecê-lo. Furioso, ele tentou atropelar Édipo. O rapaz desviou-se do ataque e, com a lança, derrubou o desconhecido do carro. Depois, amarrou as rédeas aos pés do homem, chicoteou os cavalos e fez com que os animais o arrastassem até a morte.
Édipo continuou viajando por algum tempo. Finalmente, chegou à cidade de Tebas, que estava sendo assolada pela Esfinge, filha de Tifão e Équidna. O monstro – que tinha cabeça de mulher, corpo de leão e asas de águia – havia pousado nas vizinhanças da cidade, junto a um despenhadeiro. Ali, lançava a todos os viajantes um enigma: “Qual é o animal que anda com quatro pernas pela manhã, com duas à tarde e com três à noite?”
Quem não respondesse era destroçado e devorado na hora. Muitos viajantes já haviam morrido nas garras da Esfinge. Mas o recém-chegado Édipo matou a charada sem pestanejar. “É o homem – que engatinha quando criança, anda com firmeza quando adulto e precisa de uma bengala quando velho”.
A temperamental Esfinge não suportou a derrota: pulou no precipício e se destroçou nas rochas lá embaixo. Por ter derrotado o monstro, Édipo foi aclamado rei de Tebas. O antigo soberano da cidade, Laio, havia partido algum tempo antes em uma viagem a Delfos – queria perguntar ao Oráculo como poderia se livrar da Esfinge. Mas Laio desapareceu no caminho, e agora todos já o davam por morto.
O novo rei casou-se com a linda rainha viúva, Jocasta. Tudo parecia bem – e Édipo chegou a acreditar que havia escapado à sombra de Moira. Mas o punho do destino tombou de repente sobre ele, e a tragédia se completou de forma cruelmente memorável.
Uma praga terrível começou a dizimar a população de Tebas. Na Grécia, pestilências súbitas eram sempre vistas como castigo divino. Um dia, em meio às ruas cheias de gemidos, surgiu um viajante cego, apoiado em um cajado. Era Tirésias, o maior vidente da Grécia. Por ordem dos deuses, ele vinha revelar a Édipo a terrível verdade. O homem que o jovem herói havia matado no desfiladeiro era Laio – que, além de ser o legítimo rei de Tebas, era o verdadeiro pai de Édipo.
Anos antes, uma profecia garantira que Laio seria morto por seu próprio filho. Por isso, o soberano ordenara que o menino fosse abandonado em um local selvagem. Mas tudo fazia parte do terrível plano traçado por Moira. Por mais que tentasse fugir ao destino, Édipo não apenas matara Laio, como havia se casado com sua própria mãe, Jocasta.
Horrorizada com a revelação, a rainha se enforcou. Édipo furou os próprios olhos com um broche, abandonou Tebas e vagou durante o resto da vida pela Grécia, perseguido pelas Erínias – as terríveis divindades infernais, que puniam com a loucura aqueles que derramavam o sangue da própria família. Na Grécia mitológica, não havia distinção entre crimes propositais e involuntários: era preciso pagar por todas as faltas, mesmo as cometidas sem querer.
“Contemplem agora Édipo, o herói que derrotou a Esfinge, e que foi tão poderoso e altivo! Vejam a tempestade de terror que o engoliu!”, escreveu Sófocles ao final de sua peça. “E que nenhum ser humano se considere totalmente feliz, até haver chegado, sem os dolorosos golpes do destino, ao último dia de sua vida”.
Orfeu e Eurídice
O maior dos músicos desceu aos infernos para buscar seu amor
Orfeu foi o poeta e músico mais célebre da Grécia mitológica. Tocava a lira com tanto sentimento que até as feras selvagens se deitavam, mansas, aos seus pés. E sua voz era tão melodiosa que fazia as árvores se balançarem, dançando suavemente. Até as pedras mudavam de lugar, seguindo o ritmo de sua música.
Orfeu amava apenas uma coisa mais que sua arte: a esposa Eurídice. Mas o destino não permitiu que ficassem juntos neste mundo. No vale de Tempe, na Trácia, Eurídice foi mordida por uma serpente venenosa, e sua alma desceu à sombria região governada por Hades. Orfeu apanhou a lira – sua única arma – e desceu ao reino dos mortos, por uma caverna na região de Trespócia. Em seguida, desceu pelo túnel sinistro até o rio Estige, nas margens do inferno.
Lá, não usou a força, mas a arte para vencer os poderes da morte. Com o toque de sua lira, hipnotizou Caronte, o barqueiro infernal, e o convenceu a levá-lo à outra margem do rio. Depois, amansou Cérbero com as notas de sua música. Mas sua maior façanha ainda estava por vir. Orfeu apresentou-se diante do tenebroso trono de Hades, o deus dos mortos, que jamais havia sido tocado pela piedade.
O poeta dedilhou as cordas da lira e entoou a mais triste canção já composta no mundo. Pela primeira vez, a alma de Hades se enterneceu; e o senhor dos mortos consentiu em libertar Eurídice. Mas impôs uma condição: até Eurídice estar de volta à luz do sol, na superfície da Terra, Orfeu não deveria olhar o rosto da amada.
O amante vivo e a amada morta se puseram a caminho. Enquanto subiam o trajeto escuro rumo à boca da caverna, Eurídice foi seguindo as notas que Orfeu dedilhava. Durante a maior parte do trajeto, o poeta controlou-se para não olhar para trás. Mas o desejo de rever a face de sua amada foi mais forte que a sensatez.
Quando Orfeu colocou os pés na saída da caverna, seu rosto se virou instintivamente. Por apenas um segundo, ele teve um vislumbre das feições de Eurídice: pálida, lânguida, mas ainda com as feições que ele amava. Um segundo depois, uma força invisível puxou o fantasma de Eurídice de volta às profundezas. Ela estava perdida – desta vez, para sempre. E Orfeu passaria o resto da vida cantando seu amor extraviado entre as sombras.