Texto: Rafael Battaglia | Ilustração: Vinicius Capiotti | Design: Juliana Alencar | Edição: Bruno Vaiano
Rússia é para o xadrez o que o Brasil é para o futebol. A diferença é que eles nunca levaram um 7×1. O histórico de paixão é longo: Ivan, o Terrível, estava jogando uma partida quando um derrame o matou, em 1584. A Condessa de Stroganoff, da família que deu nome ao prato, organizou um duelo entre a imperatriz Catarina 2ª e o rei sueco Gustavo 4º em 1796. Detalhe: era xadrez gigante, com peças humanas.
Em uma foto de 1908, o líder bolchevique Vladimir Lênin joga uma partida com seu rival de partido Alexander Bogdanov – autor de ficção científica e médico pioneiro da transfusão sanguínea. Eles estão na casa do célebre escritor Maxim Gorki, na Itália. Lênin (que, segundo Gorki, tinha chiliques mimados quando perdia) não deixou de jogar nem durante o exílio de três anos na Sibéria antes da Revolução de 1917: os movimentos das peças iam e voltavam por correspondência.
O xadrez surgiu a partir de um jogo indiano do século 6, chamado chaturanga – que tinha um elefantinho no lugar do bispo. Chegou aos persas, espalhou-se pela Ásia e entrou na Rússia pela Sibéria no século 9. Deu match com o temperamento russo e virou o passatempo preferido da aristocracia imperial. Mas só caiu de vez no gosto do povo séculos depois, de maneira premeditada – quando foi transformado em arma política pelos soviéticos. Nikolai Krylenko, um influente assecla de Stálin, disse: “Vamos organizar brigadas de choque de jogadores, e começar um plano quinquenal”.
A ideia era que um jogo lógico e racional – o favorito do alemão Karl Marx, diga-se – servisse como demonstração da superioridade intelectual da URSS sobre os países capitalistas. Seria fácil implantá-lo: as peças podem ser fabricadas em larga escala, e a única infraestrutura necessária é uma mesa. Além disso, a população já nutria alguma simpatia pelo tabuleiro alvinegro, e havia um herói nacional recente para exaltar: Mikhail Chigorin, que esteve no top 5 mundial no final do século 19 e batizou vários lances. Logo, o xadrez foi incorporado ao treinamento de todos os recrutas das Forças Armadas.
“O Partido Comunista acreditava que o xadrez poderia ser de grande utilidade para elevar o nível cultural das massas trabalhadoras”, escreveu o historiador Michael A. Hudson. “O encorajamento oficial fez do xadrez um componente cultural significativo na vida dos cidadãos.” Stálin mobilizou a máquina de propaganda, e seus assessores chegaram a forjar as sequências de movimentos de partidas fictícias do ditador.
Todo esse incentivo rendeu frutos em 1948, quando Mikhail Botvinnik venceu o primeiro Campeonato Mundial organizado pela Federação Internacional de Xadrez, a Fide. Foi o início da hegemonia soviética na competição: todos os campeões das duas décadas seguintes eram de lá. Os EUA, do outro lado da Guerra Fria, sequer conseguiam chegar à final. Vontade de provocar os soviéticos não faltava. Faltava tradição mesmo. A sorte ianque só começou a mudar no fim dos anos 1960, graças a um garoto tímido do Brooklyn.