A vingança de Loki, o fim do mundo e o recomeço, segundo os mitos escandinavos.
Texto: Reinaldo José Lopes | Edição de Arte: Estúdio Nono | Design: Andy Faria | Imagens: Rômulo Pacheco e Getty Images
Depois da maior lenda heroica do passado germânico, deixamos o mundo humano e voltamos ao universo dos deuses para encerrar esta seção da revista. Apure os ouvidos, abra bem seus olhos e preste atenção ao que uma profetisa disse certa vez ao Pai-de-Todos. Não é do passado que estamos falando, mas do futuro fim de todas as coisas. Como diriam os Stark da série Game of Thrones, o Inverno está chegando.
Pois é com uma temporada de frio inimaginável, o Fimbulvetr (“inverno extremo”), que começam os eventos ligados ao Ragnarök, a “consumação dos destinos dos Poderes Supremos” ou, se você preferir uma tradução mais sucinta e próxima da linguagem corrente em português, a Perdição dos Deuses. Quando vier o Fimbulvetr, o cosmos sofrerá primeiro com três invernos rigorosos, que serão palco de guerras gigantes engolfando o mundo todo. Nenhuma dignidade será respeitada nessas batalhas, como diz a profetisa na Edda Poética:
“Irmão lutará contra irmão e será seu algoz,
Filhos de irmãs violarão os elos de parentesco;
Dura é a vida no mundo, a depravação impera,
Era de machado, era de espada, escudos são quebrados;
Era de vento, era de lobos, antes que o mundo afunde;
Nenhum homem poupará o outro.”
Depois da matança, mais três invernos virão, sem nenhum verão entre eles, cobrindo a Terra de neve e desolando a habitação dos homens com ventos gelados. Sinais nos céus tornarão esse cenário ainda mais inclemente: um lobo gigantesco devorará o Sol, enquanto outro monstro lupino engolirá a Lua, e todas as estrelas desaparecerão.
Esses dois lobos, no entanto, parecerão meros cãezinhos diante do horror deflagrado por um terremoto de força insuperável, que derrubará todas as árvores, arrancará as montanhas pela raiz e fará com que todas as cadeias e todos os grilhões se quebrem. Todas as correntes, repito – inclusive Gleipnir, a corrente mágica dos anões que era a única coisa capaz de prender Fenrir, o Lobo dos Lobos gerado por Loki e pela giganta Angrboda.
Enfim livre, Fenrir avançará contra tudo e todos: tão grande ele se tornou que seu maxilar toca os céus, enquanto sua mandíbula se arrasta pela terra: chamas saem de seus olhos e de suas narinas. O filho de Loki é acompanhado por sua irmã Jörmungand, a Serpente de Midgard, cujo corpo gigantesco, antes mergulhado no oceano, foi lançado em terra firme pelos terremotos que abalaram as fundações do cosmos. Mais do que pronta para se vingar de Odin e de todos os deuses, a serpente escarra seu veneno nos ares e no mar.
O caos que se abate sobre as ondas não é suficiente para afundar o navio Naglfar: feito com as unhas de todas as pessoas que morreram ao longo das eras, ele é capitaneado pelo gigante do gelo Hrym e carrega em seu convés todos os guerreiros de Jötunheim que ainda não foram derrotados por Thor. (É por isso que se deve sempre cortar as unhas dos defuntos: quem não faz isso está contribuindo com matéria-prima para Naglfar.)
Aos gigantes do gelo se juntam os de fogo: Surt e todos os filhos de Muspellsheim atravessam Bifrost, a Ponte do Arco-Íris, e a despedaçam. Para completar o exército das forças das trevas, Loki também aparece, livre das amarras feitas com as vísceras de seu filho, à frente dos batalhões dos que morreram sem honra e jaziam em Hel. As forças do caos se congregam na planície de Vigrid, que tem 100 léguas de diâmetro (ou 600 km, se você preferir).
Diante da ameaça representada por tantos e tamanhos inimigos, enquanto a própria Yggdrasil parece chacoalhar de medo, o deus Heimdall enfim sopra o Gjallarhorn, o chifre imenso que lhe serve de trombeta, e todos os Æsir despertam para a batalha. Odin lidera seus Einherjar, mais de 400 mil guerreiros que um dia foram humanos e morreram como heróis em todas as grandes batalhas da história. O capacete dourado do Pai-de-Todos e sua magnífica cota de malha são capazes de reluzir até na escuridão que não conhece mais o Sol, e ele avança direto para Fenrir com Thor ao seu lado.
Thor, no entanto, é atacado pela Serpente de Midgard. Por isso, Odin se vê sozinho diante do Lobo – e é engolido. Mas a vingança dos Æsir vem logo em seguida: Vidar, filho de Odin, enfia um de seus pés dentro da boca imensa de Fenrir, plantando-o com firmeza na mandíbula do monstro. (Nesse pé, Vidar estará usando um sapato muito especial, construído ao longo de todas as eras com o couro que sobra da fabricação dos sapatos dos mortais – se você quer ajudar o deus, portanto, peça ao seu sapateiro que descarte esses pedacinhos de couro.)
Com uma de suas mãos, usando o sapato como apoio, Vidar puxará o maxilar do Lobo com força avassaladora – rasgando o bicho ao meio e, enfim, eliminando para sempre essa ameaça.
Nesse meio-tempo, outros combates apocalípticos acabarão com a vida dos mais ilustres habitantes de Asgard. Thor e seu Mjölnir matarão a Serpente do Mundo, mas o veneno expelido pelo monstro será tão forte que o Deus do Trovão dará nove passos para trás – e tombará morto.
Freyr e Surt hão de se enfrentar, e o belo filho dos Vanir acabará sendo derrotado pelo gigante de fogo por não ter mais à mão sua espada, aquela que deu a seu servo Skirnir em troca de ajuda para conquistar sua amada. Loki ferirá mortalmente Heimdall – e será, por sua vez, morto por um golpe da sentinela dos deuses. Surt, talvez o grande vitorioso de toda a hecatombe que acabei de descrever, queimará toda a Terra com seu fogo.
Sim, é o fim – mas também é o recomeço de tudo. As águas do mar que avançaram para os continentes lentamente recuarão, as chamas de Surt acabarão se apagando, e do oceano emergirá uma nesga de terra verdejante, na qual a cevada e o trigo crescerão espontaneamente, sem que ninguém os semeie.
Antes de ser devorado, o Sol terá uma filha tão bela quanto ele (ou melhor, ela – para os antigos escandinavos o Sol era “a” Sol, um ente feminino), e essa nova luz voltará a iluminar o cosmos. Um casal de seres humanos, chamados Lif (“vida”) e Lifthrasir (“amante da vida”), que se escondiam em meio às folhas de Yggdrasil durante as catástrofes cósmicas, sairão de seu refúgio e repovoarão a Terra.
Vidar e Vali, filhos de Odin que sobreviveram à batalha final, assim como os filhos de Thor, Móði e Magni, vão se reunir em Idavoll, onde a fortaleza e os templos dos deuses existiram outrora. Por lá também aparecerão os irmãos Balder e Höður, enfim livres das garras de Hel. Conversando na grama, como velhos amigos, os deuses de repente verão um curioso brilho dourado por entre as folhas de relva: as peças de xadrez de ouro que os Æsir costumavam usar milênios antes, quando Asgard era jovem.