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O novo obscurantismo

Terraplanismo, negação das mudanças climáticas, movimentos antivacina. Entenda por que, apesar de tantos avanços na ciência, vivemos numa época tão propícia à ignorância.

Texto: Bruno Vaiano | Reportagem: Maria Clara Rossini e Ingrid Luisa | Edição: Alexandre Versignassi | Design: Juliana Caro | Fotos: Studio Oz


Reportagem publicada pela Super em junho de 2019.

O aquecimento global é uma farsa, de acordo com o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Em 30 de maio, ele declarou que o aumento registrado na temperatura média da Terra seria uma consequência do fato de que ruas, estacionamentos e outras superfícies asfaltadas foram construídos nas redondezas de estações meteorológicas que antes ficavam em áreas de vegetação nativa, mais frescas. Como o asfalto absorve mais calor, os termômetros estariam apenas registrando a acentuada urbanização que ocorreu desde o início do século 20.

A hipótese de Araújo foi refutada em 2011 pela Universidade da Califórnia em Berkeley. De 37 mil estações meteorológicas analisadas, 16 mil ficam em zonas perfeitamente rurais. E os dados de dois terços delas – rurais ou urbanas – indicam aumento de temperatura. Para não falar nas medições feitas por satélites, que estão em órbita, longe do asfalto.

Infelizmente, não são só membros do governo que preferem ignorar evidências científicas: os eleitores também. 46% dos brasileiros não concordam com a afirmação de que a espécie humana compartilha um ancestral comum com os chimpanzés. 89% defendem que o criacionismo seja ensinado nas escolas.1

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Uma pesquisa indicou que 4,5% dos pais se recusam a vacinar suas crianças, e outros 16,5% têm receio, ou não acham que a imunização tenha qualquer importância para a saúde de seus filhos. Entre os jovens, esse número sobe para 23%. O SUS oferece terapias sem eficácia comprovada. Picaretas publicam livros de autoajuda que distorcem a física quântica para fins motivacionais. Água sanitária é vendida como cura para o autismo.

Tal crise de confiança na ciência não corresponde ao quanto nossas vidas dependem dela. Cada vez que você toma um analgésico, pede um Uber ou liga a TV, você está se beneficiando do trabalho de centenas de cientistas (o GPS só existe por causa da Teoria da Relatividade de Einstein). Mesmo assim, extremistas dos dois lados do espectro político negam abertamente as evidências científicas sempre que elas não correspondem às suas visões de mundo.

As consequências dessa atitude são velhas conhecidas: em 1984, de George Orwell, o protagonista é torturado por agentes de um regime totalitário até se convencer de que 2 + 2 é igual a 5. Os exemplos não vêm só da ficção.

Na União Soviética da década de 1930, o camponês Trofim Lysenko, alçado a guru científico de Stalin, propôs a hipótese de que sementes aprenderiam a lidar com o frio se expostas a ele (de maneira análoga à ideia atribuída a Lamarck, de que o pescoço da girafa cresce porque ela se estica para alcançar árvores altas). Ele negava a genética e a evolução por seleção natural.

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Por influência de Lysenko, Stalin declarou a teoria de Darwin ilegal. Na prática, sua doutrina contribuiu para uma agricultura ineficaz, que prolongou surtos de fome na URSS e na China. Fica a lição: basear políticas públicas em impressões pessoais, e não em ciência de verdade, é um jeito eficaz de jogar dinheiro no lixo, reforçar preconceitos, desacelerar a economia e piorar a qualidade de vida.

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Em 1948, Stalin declarou a biologia evolutiva e a genética ilegais na URSS.

Como navegar, então por mundo em que as impressões falam mais altos que os fatos? Fazer uma pesquisa no Google é como adentrar uma sala com um milhão de vozes urrando versões contraditórias sobre um fato. Em meio à bagunça, é natural que você ouça só as vozes que reforçam suas pré-concepções: é o viés de confirmação. Quando somos bombardeados por contradições, ficamos anestesiados ao valor da verdade.

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Isso não é só divagação teórica: pode ser verificado na prática. Hélio Schwartsman destacou na Folha de S. Paulo que, em 1998, 47% dos eleitores republicanos e 46% dos democratas concordavam com a afirmação de que os efeitos do aquecimento global já se faziam sentir. Em 2018, os números eram 34% para os republicanos e 82% para os democratas. O alinhamento político passou a importar mais que o dado bruto. 

“As pessoas sentem que o ataque às suas convicções é pessoal, que sua identidade está sob ameaça”, afirma Michael P. Lynch, filósofo da Universidade de Connecticut e autor do livro In Praise of Reason (“Um elogio à razão”, sem tradução no Brasil).

O jeito mais fácil de lidar com o ruído ensurdecedor é se abraçar às suas crenças e não soltá-las mais. E a internet é ótima em personalizar nossa experiência: seus algoritmos nos enterra em bolhas onde todos pregam para os convertidos. A ciência é a melhor ferramenta para combater esse mar de incerteza, e é imprescindível entender por quê.

O método científico se baseia na noção de falseabilidade, introduzida pelo filósofo Karl Popper em 1934. Ela é simples: você começa levantando uma hipótese – por exemplo, a de que todo esquilo tem rabo. Essa hipótese só pode ser considerada válida cientificamente se for possível refutá-la – isto é, se for possível encontrar um esquilo que não tenha rabo. Sabemos que isso é possível; basta procurar um.

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Se um número razoável de buscas, feitas por pesquisadores diferentes em lugares diferentes, tentar encontrar um esquilo sem rabo e falhar, a hipótese de que todo esquilo tem rabo ganhará força. Perceba que é impossível provar algo definitivamente. Só dá para reduzir a incerteza sobre um determinado assunto. Você pode encontrar dezenas de esquilos com rabo: nenhum deles é capaz de provar, sozinho, que você está certo. Mas se você encontrar um único esquilo sem rabo, ele será suficiente para provar que você está errado. Essa é uma espécie de mão invisível da ciência. Ela regula a si própria.

Seria inocência defender que a ciência está imune à má-fé: o movimento eugênico e o nazismo, assim como o lamarckismo de Lysenko na URSS, provam que cientistas com motivação política são capazes de manipular dados para atingir conclusões estabelecidas de antemão. A ciência é uma atividade humana, que sofre de imperfeições humanas.

Mesmo assim, ela ainda é o método de busca do conhecimento mais capaz de se atualizar, admitir os próprios equívocos e seguir em frente. A frase mais famosa de Winston Churchill – “A democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as outras” – se aplica igualmente bem ao método científico.

Nas próximas páginas, vamos apresentar a história e o presente dos principais movimentos anticientíficos atuais – e entender por que é essencial basear políticas públicas na razão.

1. Número extraído do livro A Goleada de Darwin, de Sandro de Souza (Record, 2009).

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Homeopatia

O médico alemão Samuel Hanehmann criou a homeopatia no início do século 19 como uma alternativa razoável à medicina convencional da época, cuja terapia mais comum era a sangria: abrir cortes nos doentes na esperança de que a hemorragia reestabelecesse o equilíbrio aos fluidos corporais. Tal insanidade era tida como cura para qualquer coisa, de gripe a convulsões, e foi praxe na Europa por 2 mil anos.

Hanehmann baseou sua tese em dois princípios. O primeiro é o de que semelhantes curam semelhantes: a crença de que o remédio ideal para um sintoma é alguma substância que cause esse sintoma. Por exemplo: se você tem rinite alérgica, a ingestão de uma pequena quantidade de cebola supostamente faria seus olhos pararem de lacrimejar. O antraz, toxina produzida pela bactéria Bacillus anthracis que causa feridas na pele, seria capaz de curar espinhas, furúnculos etc. Há até um caso documentado de médico que receitou pedaços do muro de Berlim para uma mulher depressiva – afinal, é inegável que a construção deprimiu os berlinenses.

O segundo princípio é o da potenciação, isto é: a substância é diluída em água, álcool ou açúcar. Muitas e muitas vezes. A diluição mais comum é a chamada C30, o que significa que a substância ativa foi diluída 30 vezes na proporção de 100 para 1. “Para conter uma única molécula de substância ativa, a pílula homeopática nessa diluição teria que ter o diâmetro equivalente à distância entre o Sol e a Terra [149,6 milhões de quilômetros]”, diz Edzard Ernst, professor emérito da Universidade de Exeter, na Inglaterra. “Ou seja: os remédios homeopáticos mais comuns não contêm uma única molécula de princípio ativo.”

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150 milhões de quilômetros é a distância entre a Terra e o Sol. Esse é o diâmetro que precisaria ter um comprimido de homeopatia para conter uma única molécula de princípio ativo.

Não é à toa que a homeopatia se popularizou: entre sangrar até a morte e ingerir algumas gotas de água ou álcool, a segunda alternativa é melhor. Cebola, antraz ou muro de Berlim não farão nenhum efeito – principalmente na diluição C30 –, mas uma consulta com um médico atencioso, que prescreve repouso e deixa seu sistema imunológico funcionar é mais recomendável do que passar uma navalha no braço.

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De lá até aqui, felizmente, muita coisa mudou. Da mesma forma que a tecnologia aeronáutica foi do 14 Bis ao pouso na Lua em 60 anos, a medicina convencional superou Heródoto e as sangrias. Atualmente, toda droga passa por três rodadas de verificação em humanos antes de chegar às farmácias. Eles servem para determinar como ela é metabolizada e excretada, descobrir seus efeitos colaterais, estabelecer a dosagem ideal para cada doença e faixa etária etc.

Ao longo de todo o processo, os médicos e farmacêuticos tomam três precauções para evitar conclusões enviesadas. Primeiro, a amostra de voluntários é divida em dois (grupos de comparação). Metade toma o remédio em fase experimental, a outra metade toma um remédio já existente no mercado ou um placebo – isto é, um comprimido ou injeção falsos, que não contêm o princípio ativo.

Os voluntários devem ser sorteados entre os dois grupos (aleatorização). Por fim, o ideal é que o experimento seja duplo-cego, ou seja: que durante sua realização, nem os cientistas nem os voluntários saibam qual é o grupo que tomou placebo e qual é o grupo que tomou o remédio real. Assim, a chance de uma falcatrua passar batida é baixa. Ou o remédio funciona, ou não.

Dado que a homeopatia permanece popular de sua criação até hoje, é imprescindível que sua eficácia seja analisada com o mesmo critério e cuidado dos remédios convencionais. Da mesma forma que a sangria caiu em desuso quando foi estabelecido que ela faz mais mal do que bem, é essencial que a população tenha acesso a estudos confiáveis sobre a eficácia da técnica de Hanehmann para decidir se deve usá-la ou não.

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Felizmente, a homeopatia – assim como a acupuntura, a aromaterapia e outras Práticas Integrativas e Complementares (PICs, na nomenclatura do SUS) – podem passar pelos mesmos testes por que passam os medicamentos vendidos em uma farmácia comum.

Um dos vários pesquisadores que se dedicam a essa tarefa é Edzard Ernst – apresentado alguns parágrafos atrás. Em 20 anos anos como professor e pesquisador na Universidade de Exeter, ele e sua equipe submeteram 29 Práticas Integrativas e Complementares a ensaios clínicos rigorosos, tomando as três precauções de praxe: grupos de comparação, aleatorização e testes duplo-cegos. Em muitos casos, era necessário criar placebos elaborados. É simples prensar um comprimido de açúcar para substituir um analgésico, mas como simular uma agulha de acupuntura ou um curandeiro?

“Para a acupuntura, projetamos uma agulha que parece penetrar a pele, mas enrola dentro de si própria. É como uma faca falsa, de lâmina retrátil, dessas usadas no teatro”, conta Ernst. “Ela comprovou que acupuntura não funciona. Tem o mesmo efeito do placebo”. A prova da cura espiritual também saiu caro:  “Tivemos a ideia de usar cinco curandeiros de verdade e, depois, recrutar cinco atores muito parecidos com eles. Cada ator aprendeu com seus respectivos curandeiros como simular o procedimento.” Em todos os casos, a conclusão foi uma só: nenhuma das terapias funciona melhor que o efeito placebo.

Mesmo assim, no Brasil, a homeopatia é considerada uma especialidade médica pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) desde 1980, e é financiada pelo Sistema Único de Saúde (SUS) desde 2006 – bem como a acupuntura. Desde 2017, outras PICs que sequer são reconhecidas pelo CFM também passaram a ser oferecidas. A lista inclui aromaterapia, reiki, florais de bach, cromoterapia, biodança etc. São, ao todo, 29. Hoje, 9,3 mil estabelecimentos do SUS em 3,1 mil municípios (entre postos de saúde, hospitais etc.) oferecem pelo menos uma PIC.

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Consultado pela SUPER, o Ministério da Saúde argumenta que há demanda da população, mas uma pesquisa de representatividade nacional encomendada ao Datafolha pelo Instituto Questão de Ciência indica o contrário: 70% da população brasileira afirma procurar um médico convencional quando tem um problema de saúde. Em segundo e terceiro lugar, com 7% e 6%, vêm terapeutas espirituais e benzedeiras. Só em quarto lugar, com 5%, vem o médico homeopata.

Também requisitamos artigos científicos comprovando a eficácia das PICs, que recebemos às dezenas. Todos, porém, haviam sido publicados em periódicos que são editados (e citados, pois o número de citações é uma métrica de qualidade relevante para os cientistas) por membros da própria comunidade que pratica as PICs.

Além disso, esses estudos são, em sua maioria, exploratórios, e não confirmatórios, isto é: são realizados para avaliar se há algum efeito dos medicamentos que mereça ser investigado a fundo, e não para investigar o efeito e tentar confirmá-lo ou refutá-lo. Quanto maior o rigor científico do estudo (aleatorização, testes duplo-cegos etc.), mais a eficácia das PICs se aproxima da do placebo.

“O efeito placebo é real”, explica Natália Pasternak, professora do Instituto de Biociências da USP e fundadora do Instituto Questão de Ciência. “As pessoas não acham que se sentem melhor: elas realmente se sentem melhor. Também há o fato de que, em doenças crônicas, há picos de dor seguidos de vales. Se o paciente procura o médico no pico e toma o remédio em sequência, ela acaba associando o vale ao efeito do remédio.” Esses e outros efeitos tornam as PICs convincentes para os médicos que as praticam, e veem seus clientes saírem satisfeitos do consultório. Assim, o argumento de que o Estado deve oferecê-las em hospitais públicos soa atraente.

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O problema é que o Estado financia o SUS com coleta de impostos. Dado que este dinheiro não pertence à União, e sim à população, sua obrigação é gastá-lo da maneira mais racional possível. No Brasil, em que o sistema público está sucateado e 69,7% da população não possui plano de saúde privado, as prioridades devem ser outras: “Insulina, anticoncepcional e luvas de borracha para usar nos procedimentos”, lista o jornalista científico Carlos Orsi, também do Instituto Questão de Ciência. “Eu adoraria passar no posto de saúde e tratar minha ansiedade com uma garrafa de Jack Daniels, mas os recursos públicos são finitos.”

Seguindo essa lógica, Austrália e Reino Unido baniram a homeopatia dos sistemas públicos de saúde. Na França, as Academias Nacionais pediram o fim do reembolso para remédios homeopáticos. “É central para o debate é saber em que medida essas práticas [homeopatia, acupuntura etc.] estão prejudicando o tratamento tradicional, baseado em evidência científica”, diz o patologista Paulo Saldiva, diretor do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e apresentador do programa Urbanite na TV Cultura. “Se elas não estiverem atrapalhando, podem até ajudar certos indivíduos, de acordo com suas suas crenças e valores. Mas se elas forem implantadas às custas das terapias comuns, aí é um pecado.”

Esse não seria um dilema tão grande se as pessoas realmente encarassem esses tratamentos como complementares ao invés de alternativos, como é indicado pela Organização Mundial da Saúde desde 2017 e pelos próprios terapeutas: “Nosso objetivo não é substituir a medicina convencional. Nós não tratamos de doenças pois não somos médicos. Tratamos o ser humano como um todo”, diz Simone Sequeira, terapeuta integrativa do instituto AHAU, em São Paulo.

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Infelizmente, porém, não falta quem troque a medicina por terapias inócuas mesmo em caso de doenças mortais. Um estudo da Universidade Yale revelou que, dos pacientes de câncer que utilizam medicina não-convencional, 7% recusam intervenção cirúrgica, 34,1% recusam quimioterapia, 53% recusam radioterapia e 33,7% recusam intervenções hormonais. Entre pacientes que optam só pela medicina convencional, essas porcentagens são respectivamente 0,1%, 3,2%, 2,3% e 2,8%.

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Movimento antivacina

Esses números nos levam a outra forma de negação da medicina, que extrapola a liberdade individual: o movimento antivacinas. Aqui, quem nega a ciência por superstição põe a vida dos outros em risco. Na Europa, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 2018 registrou o maior número de casos de sarampo da década: 82,5 mil pessoas contraíram a doença e 72 morreram. Para que a população esteja protegida como um todo, é preciso que 95% dela esteja vacinada. E essa meta não foi cumprida em 34 países europeus em 2017.

Nos EUA, a situação não é muito melhor. 17 Estados americanos permitem que os pais não vacinem seus filhos por terem objeções à prática. Geralmente são famílias urbanas com bons indicadores educacionais e posições políticas progressistas que passam longe da agulha. De janeiro até aqui, 1.044 casos de sarampo foram registrados em 28 Estados – o pior número desde 1992.

O sarampo é um problema especial porque a tríplice viral – que imuniza contra ele, a caxumba e a rubéola – está na origem do movimento anti-vacina contemporâneo. Ela foi associada a casos de autismo em um artigo científico fraudulento publicado em 1998. Outras doenças não estão voltando à tona no mesmo ritmo – pelo menos não nos países desenvolvidos. Nigéria e Paquistão, por exemplo, não conseguem erradicar a poliomielite.

É natural que pais preocupados com seus filhos busquem associações de causa e efeito: a criança tomou chuva e então ficou resfriada, comeu bolo quente e teve dor de barriga, etc. O mesmo vale para quem identifica certas doenças com certas vacinas.

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6 milhões é o número de mortes que as vacinas evitam no mundo todos os anos.

A ciência existe justamente para separar o joio do trigo – distinguir o que é fato do que é mera impressão. “A ciência não é uma máquina de encontrar coerências verdadeiras”, diz o jornalista Carlos Orsi, um dos fundadores do Instituto Questão de Ciência. “ela é uma máquina de descartar as falsas coerências.” Como muitos outros movimentos pseudocientíficos, os anti-vaxxers se baseiam em evidências anedóticas e falsas correlações.

Apesar disso, às vezes os ataques às vacinas têm verniz científico. Em The vaccine book: making the right decision for your child (em português, “Livro das vacinas: tomando a decisão certa para o seu filho”), um bestseller nos EUA sem tradução no Brasil, o médico Robert Sears afirma que o calendário ditado pela carteira de vacinação sobrecarrega o sistema imunológico da criança, o que é agravado pelo excesso de alumínio e timerosal na composição.

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Timerosal é uma substância antisséptica que contém mercúrio e servia de princípio ativo ao Merthiolate na época em que ele ardia. Ele é utilizado para evitar a proliferação de bactérias quando um vidrinho de vacina contém mais de uma dose e, portanto, será utilizado mais de uma vez. Embora o mercúrio seja de fato tóxico, nessa concentração ele é irrelevante. Um estudo com 1047 crianças entre 7 e 10 anos não encontrou nenhuma associação entre mercúrio das vacinas e 42 problemas de desenvolvimento neurológico.

Sears também alega, corretamente, que quando o bebê faz dois meses ele já recebeu algo entre 0,2 e 1,2 mg de alumínio graças às vacinas. Aos seis meses de idade, porém, uma criança já terá ingerido 6,7 mg de alumínio proveniente do leite materno ou 37,8 mg em fórmulas infantis em pó baseadas em proteína de soja.

Uma pessoa comum ingere entre 30 a 50 mg de alumínio diariamente.Quanto à sobrecarga, não há com que se preocupar: o sistema imunológico de um bebê aguentaria uma dose de antígenos muito maior do que a presente em uma vacina. Adiar as inoculações apenas aumentaria as chances de expor a criança à doença.2

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O movimento antivacina não é forte no Brasil, mas nossa proporção de vacinados também vem caindo. Entre 2018 e 2019, o Brasil registrou 10,3 mil casos de sarampo – doença que se julgava erradicada. A cobertura da vacina tríplice viral, que estava estável e próxima a 100% até 2014, atingiu 85% em 2017.

Já com relação à poliomielite, a cobertura vacinal estava acima de 95% até 2015, mas caiu para 78,5% em 2017 – as informações são do Ministério da Saúde.  É difícil determinar o que é consequência do movimento e o que se deve a outros fatores – como o fato de que pais nunca viram as doenças que foram erradicadas pela imunização, o que faz sarampo e poliomielite parecerem curiosidades históricas, e não ameaças reais.

“A cognição humana tem muita dificuldade em compreender grandes tendências estatísticas, mas se acomoda muito bem com os casos que ocorrem com indivíduos próximos”, diz o psicólogo Ronaldo Pilati, pesquisador da Universidade de Brasília (UnB) e autor do livro Ciência e Pseudociência.

2. Vacinar, sim ou não? Um guia fundamental, de Gabriel Oselka, Guido Carlos Levi, Monica Levi.

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O pós-modernismo

A famosa Revolta da Vacina de 1904 – em que a população carioca se rebelou contra uma campanha de inoculação obrigatória para deter a varíola – ocorreu em uma época em que a ciência era algo diferente do que é hoje.

Foi um período de grandes reformas urbanas, em que a população miserável dos cortiços foi despejada do centro do Rio e substituída por calçadas e postes de jeitão francês e as primeiras redes modernas de água, luz e esgoto. Imperava entre médicos e sanitaristas como Oswaldo Cruz uma visão de mundo higienista, baseada nas metrópoles europeias.

A genética e a seleção natural, nessa época, foram utilizadas para justificar discriminação racial, a suposta superioridade intelectual do homem sobre a mulher e impedir a entrada de imigrantes de certos países. Essa estrada, é claro, deu em Hitler e no Holocausto.

Quando a poeira da 2a Guerra abaixou, a comunidade acadêmica se deu conta de que defender a ciência de maneira absolutista era arriscado. Devemos em grande parte a um movimento filosófico chamado pós-modernismo a percepção de que muita coisa que os cientistas davam por fato na verdade era uma construção social.

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Extremistas dos dois lados do espectro político negam as evidências científicas quando elas não correspondem às suas visões de mundo.

O machismo, o racismo e a xenofobia dos biólogos do entreguerras fez com que eles manipulassem seus dados para alcançar certas conclusões. O problema é que o pós-modernismo conclui que absolutamente tudo é construção social. Não haveria uma verdade objetiva, apenas a narrativa que cada tribo – inclusive a dos cientistas – considera verdade.

Um caso emblemático do embate entre pós-modernismo e ciência data de 1975, quando o biólogo evolutivo Edward O. Wilson, de Harvard, publicou o livro Sociobiology. Era um resumo das hipóteses mais recentes sobre como a comunicação, o altruísmo, a agressão, os rituais do sexo e a paternidade dos animais evoluem por seleção natural. Ele aplicou essas hipóteses a insetos, peixes, pássaros e, no capítulo 27, a nós, humanos.

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Wilson explica algumas conclusões básicas da biologia evolutiva: a de que somos territorialistas e tendemos à monogamia, e de que a família nuclear (duas pessoas morando juntas e criando filhos) é a unidade básica da organização humana – isso não exclui casamentos homossexuais com filhos adotivos, por exemplo. Wilson também escreveu que nossa disposição em ajudar e amar parentes vem do fato de que compartilhamos mais genes com eles do que com outras pessoas.

Todos esses são conceitos baseados em décadas de pesquisas científicas e antropológicas, e ainda são. Mesmo assim, houve protestos, distribuição de panfletos, invasões de sala de aula e pôsteres chamando-o de racista, genocida e “profeta direitista do patriarcado” – embora ele tenha votado na esquerda democrata americana a vida toda. O clima, entre intelectuais progressistas, era de que absolutamente tudo é construção social.3

Nosso cérebro seria uma tábula rasa, uma folha em branco sem equipamento de fábrica, moldado exclusivamente pela cultura. Isso é um erro: também somos animais – nosso comportamento, até certo ponto, foi moldado de acordo com o que foi benéfico para a sobrevivência de nossos ancestrais. É o caso da família nuclear. Não tendemos a formar casais (héteros ou não), e a cuidar de filhos (biológicos ou não), porque aprendemos isso vendo novela. Fazemos isso porque está tão impresso nos nossos genes quanto nos dos cisnes, pinguins e pombos.

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Apesar desse e de outros conflitos entre a extrema esquerda acadêmica e as ciências naturais, em uma coisa o pós-modernismo acertou: cada pessoa carrega uma verdade própria, e a intolerância com as verdades dos outros dá errado. Assim, não faz efeito, em uma democracia, argumentar a favor da ciência como algo que é verdade, em oposição a jeitos de ver o mundo que não são verdade. Como cada tribo tem sua verdade, nenhuma vai engolir.

Por outro lado, afirmar que todo argumento tem valor idêntico é entregar os pontos. Como viabilizar um debate entre congressistas se a conclusão for sempre a de que todos os lados estão certos à sua maneira? Se não existe uma verdade objetiva, e sim uma porção de verdades particulares, como decidir implantar esta e não aquela política pública? É aqui que entra a ciência.

O que ela faz, no argumento do sociólogo alemão Hans Joas, é fornecer um “poder de ação maior sobre o ambiente”. A ciência nos permite construir aviões que pousam em segurança, remédios que curam pessoas mais rápido, vacinas que evitam que as pessoas fiquem doentes. O Estado é sensato em levar a ciência em consideração se quiser tornar melhor a vida de seus cidadãos – não porque ela seja uma verdade mais verdadeira que as outras, mas porque ela é, no nível prático, um jeito muito eficaz de aumentar a qualidade de vida.

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Para que a ciência exerça esse papel,  ela precisa, como já mencionado, lidar com as limitações psicológicas dos seres humanos, cujas raízes são, ao menos em partes, darwinianas. Nossos ancestrais sobreviveram em decorrência da assimilação de padrões no ambiente: o céu está preto, então vai chover. A sombra atrás da árvore parece um rabo de onça, então é melhor fugir.

Mora aqui o apelo da astrologia: nada na ciência leva a crer que a influência gravitacional ou a radiação refletida por Júpiter e Saturno determinem de alguma forma a personalidade de um ser humano, mas o cérebro tem uma satisfação indescritível em perceber que as previsões do mapa astral correspondem, de alguma forma, a quem somos.

Para os babilônios, essa era só uma extensão de algo observável: a maneira como os ciclos do Sol e da Lua se sincronizam com a agricultura, a menstruação e as marés. Se Marte deu as caras quando uma batalha foi vencida, talvez haja aí outro padrão. Este repórter não acredita em astrologia, mas… bem, esse ceticismo é típico de sagitariano. Dá-lhe outro padrão.

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A ciência oferece justamente o oposto: uma forma de conhecimento em constante autorrevisão. Isaac Newton criou uma teoria que explicava bem a gravidade, mas Einstein suplantou-o com uma que explica melhor ainda. “O conhecimento científico, com suas verdades transitórias [a redução de incerteza, de Popper], é psicologicamente incômodo. O conhecimento não científico se acomoda mais fácil na mente humana”, resume Ronaldo Pilati, psicólogo da UnB. E põe mais fácil nisso, como veremos a seguir.

3. A história é contada em Tábula Rasa: A Negação Contemporânea da Natureza Humana, de Steven Pinker (2002). Agradecemos a colaboração do psicólogo Paulo Almeida, também do Instituto Questão de Ciência, nesta discussão.

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“Você sabe que a Terra é plana?”

Essa é a primeira pergunta do questionário que dá acesso ao maior grupo brasileiro de terraplanistas do Facebook. Supondo que você responda sim, a exigência aumenta no segundo item: “Cite ao menos três provas de que o globo não existe”. Se você for um terrabolista – uma das várias alcunhas dadas a quem admite viver em uma esfera, e não uma panqueca – talvez precise consultar o Google antes de passar à terceira e última pergunta: “como funcionam o Sol e a Lua na Terra plana?”

Partindo do Facebook, não é difícil entrar nos grupos de Whatsapp. No ambiente mais intimista, eles se sentem livres para abordar suas outras aflições conspiratórias: o vapor exalado pelas turbinas de avião contém veneno, vacinas causam autismo e, principalmente, fazemos todos partes de uma grande Matrix – o filme de 1999. Os terraplanistas teriam despertado, enquanto o resto da população mundial consistiria em manipulados ou manipuladores.

Os terraplanistas andavam fora dos holofotes, mas um documentário original da Netflix e um tweet recente de Olavo de Carvalho – “Não estudei o assunto da Terra plana. Só assisti a uns vídeos de experimentos que mostram a planicidade das superfícies aquáticas, e não consegui encontrar, até agora, nada que os refute” reacenderam a polêmica. 

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(Studio Oz/Superinteressante)

Há poucos dados sobre terraplanistas no Brasil. Mas 8% da população não acha que a Terra gira em torno do Sol.

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O movimento ilustra as tendências psicológicas que listamos alguns parágrafos atrás. O vestibular para entrar no grupo de Facebook, por exemplo, é uma senha para assegurar a coerência grupal dos membros. “Um elemento crucial é a existência de um grupo social que valide as crenças individuais. Isso movimenta as pessoas a encontrar argumentos para acreditar naquilo que elas querem acreditar”, diz Pilati.

Deter um conhecimento que ninguém mais detém, claro, é muito atraente. “Teorias da conspiração oferecem explicações simples para fenômenos complexos, ou fazem as pessoas acreditarem possuir conhecimentos secretos que os poderosos querem ocultar”, resume a Economist. “Eles tendem a ser populares entre pessoas com menores índices de escolaridade, que não confiam nas instituições públicas.” 

A perspectiva bíblica adotada por boa parte dos terraplanistas acrescenta um outro fato: a tradição judaico-cristã prevê um cosmos com início, meio e fim. De acordo com o psicólogo Valdiney Gouveia, da Universidade Federal da Paraíba, uma pessoa que parte daí tem dificuldades em aceitar uma cosmologia em que o Universo é infinito e a Terra não ocupa uma posição privilegiada. O modelo terraplanista dá a seus seguidores o conforto que a astrofísica não fornece. Nele, é impossível transpor o “domo” em forma que cobre a Terra, onde ficam as estrelas. Tudo acabaria ali, a um raio de poucos quilômetros do chão, como no filme O Show de Truman

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[Errata: Na versão impressa desta reportagem, presente na edição de número 404, ocultamos acidentalmente o nome do pesquisador Valdiney Gouveia. O texto da versão online foi atualizado para inclui-lo].

Se de um lado a ciência sofre com quem não consegue lidar com os desdobramentos filosóficos de suas conclusões, de outro ela sofre com quem se entusiasma um pouco demais com esses desdobramentos. E nenhuma ciência, hoje, sofre mais desse “exagero para pior” que a mecânica quântica.

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Esoterismo quântico

A mecânica quântica é o ramo da Física que se dá melhor em descrever os fenômenos que acontecem em escala microscópica. É nela que se baseia nossa compreensão atual de partículas subatômicas, átomos e moléculas (conjuntos de átomos).

A mecânica quântica começa em 1900, quando Max Planck se dá conta de que a luz é composta de pequenas partículas, hoje chamadas fótons. Até então, a luz era descrita pelas equações de Maxwell como uma onda, o que, paradoxalmente, também dá certo.

Esse comportamento ambíguo da luz – que pode ser descrita simultaneamente como onda e um conjunto de partículas – está na base da física quântica. Há um experimento de laboratório célebre, o da dupla-fenda, que demonstra esse fenômeno. Entendê-lo é essencial para compreender um  fenômeno do obscurantismo moderno, o do esoterismo quântico.

No experimento da dupla-fenda, um físico aponta uma fonte de luz para uma tela. Entre a fonte de luz e a tela, ele põe um obstáculo com duas fendas verticais, paralelas. Tipo… assim: | |

O único jeito da luz transpor o obstáculo e chegar à tela é passando pelas fendas. Quando Thomas Young fez esse experimento pela primeira vez, em 1801 – muito antes de Planck –, ele encontrou a comprovação cabal de que a luz se comporta como uma onda. Verificou que, quando a luz é forçada a se espremer pelas fendas para passar, ela sai do outro lado dividida em feixes. Como esses feixes são ondas, eles interferem um no outro.

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Quando a crista das ondas coincide, mais luz chega à tela lá atrás. Já quando a crista de uma onda encontra o vale de outra, elas se cancelam e não há luz. Isso gera um padrão de interferência: a luz que você vê projetada no anteparo fica listrada, luz sim, luz não, luz sim, luz não… Assim: | | | | | | | |.

Quando o experimento de Young foi revisitado pela física quântica, a tensão estava no ar. Afinal, se a luz é composta de fótons, e fótons são partículas individuais e contáveis, como é que pode eles, atuando em conjunto, se comportarem como uma onda?

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Pois é. A natureza é insistente. Calhou que quando você pega um canhão de fótons e os dispara um por um na direção da dupla-fenda, como se fossem projéteis de uma arma, eles insistem em não atravessar as fendas em linha reta. Eles continuam formando o padrão de interferência lá atrás. Cada fóton, de alguma forma, sabe se comportar como uma onda, mesmo sendo uma partícula.

O único jeito de evitar que se forme um padrão de interferência é colocar um detector nas fendas, projetado para determinar se o fóton passou pela fenda da esquerda ou pela fenda da direita. Quando isso acontece, bizarramente, os fótons largam mão de ser ondas e passam a se comportar como bolinhas. Não há padrão de interferência, o anteparo fica assim: | |.

Essa propriedade – dentre tantas outras da física quântica – desafia o senso comum. E isso se tornou um combustível fértil para a imaginação de esotéricos. Se a presença de um instrumento observando o fóton muda seu comportamento, dizem eles, então a realidade não é objetiva nem está determinada: nós seríamos capazes de alterá-la só com a força da consciência.

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Um dos pioneiros dessa mistura pseudocientífica de física quântica e misticismo foi o astrônomo britânico Arthur Eddington em seu livro Nature of the Physics World, publicado em 1928. Eddington é mais famoso por ter liderado a equipe que comprovou a Teoria da Relatividade de Einstein com fotos feitas durante um eclipse em Sobral, no Ceará, em 1919. Apesar do currículo, usou o quantum para discutir livre-arbítrio.

O físico Fritjof Capra reviveu o debate com o livro O Tao da Física (1975), um best-seller que juntava física quântica e misticismo oriental. Para ele, a consciência humana e o Universo formam um todo interconectado e irredutível. Seja lá o que isso signifique. O fato é que a magia quântica está confinada ao mundo infinitesimal. Qualquer tentativa de aplicar conceitos como a dualidade onda-partícula a coisas grandes, como você, é picaretagem.

Hoje, os luminares de tal picaretagem são Deepak Chopra, que promove a “cura quântica”, e Amit Goswami. Goswami, diga-se, é professor de física aposentado da Universidade de Oregon, nos EUA. Há 20 anos ele não publica artigos  em periódicos consagrados. Em sua concepção, “os objetos são possibilidades dentre as quais a consciência quântica, que é Deus, escolhe uma”.

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“Títulos e prêmios não impedem ninguém de falar besteira”, diz Marcelo Yamashita, diretor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp. “Linus Pauling ganhou dois Nobel, um de química e outro da paz. Mas ele defendia que doses absurdas de vitamina C preveniam câncer, o que não tem respaldo científico. Eu não sei por que gurus quânticos como Goswami, Capra ou Chopra disseminam essas ideias, mas com certeza o misticismo dá mais dinheiro que a pesquisa séria.”

De fato, a moda movimenta um amplo mercado de livros de autoajuda, palestras motivacionais e até cursos de saúde quântica em universidades particulares (procuramos entrevistar alguns professores, que recusaram). Eles têm alguns pontos em comum: com base na dualidade onda-partícula, dizem que tudo é vibração, e atribuem frequências em hertz a emoções e estados de espírito.

Não ter controle sobre os fatos é incômodo, e a física quântica, se má-interpretada, provê a ilusão de que a realidade é construída pelo observador. Uma parcela do movimento, encabeçada por Gregg Baden, afirma até ser possível reprogramar o DNA – embora seja difícil imaginar a força do pensamento alterando a sequência de bases nitrogenadas das moléculas no interior do núcleo de cada uma das suas 37,2 trilhões de células.

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Fato vs. convicção

O Brasil é o segundo país mais conectado do mundo: cada cidadão passa em média 9 horas e 29 minutos por dia no celular. Em 2018, o aumento de 9% no número de usuários da internet se refletiu em um aumento de 9% no número de usuários de redes sociais – o que significa que todo mundo que ganha acesso à rede corre para o Facebook e WhatsApp.

Isso é ótimo, mas também representa um problema. Paolo Gerbaudo, professor do King’s College de Londres, explica que a arquitetura das redes sociais propicia o desenvolvimento de mensagens sensacionalistas. Enquanto qualquer um puder falar o que quiser e alcançar um público razoável, o movimento antivacina, os terraplanistas, os esotéricos quânticos e todas as outras tendências pseudocientíficas continuarão disseminando desinformação de maneira bem-sucedida, impedindo que qualquer debate se baseie em evidências sólidas.

É claro que duvidar da real forma da Terra beira o cômico, mas há outras formas de ceticismo que põem em risco coisas bem mais valiosas. O que nos leva de volta ao começo do texto, com a negação do aquecimento global por Ernesto Araújo.

97% dos cientistas concordam que o planeta está mais quente graças à ação humana. De 13,9 mil artigos sobre ciências climáticas publicados entre 1991 e 2012 – e que passaram pelo importante processo de revisão por pares –, só 24 rejeitam o aquecimento global. O público, porém, não sabe disso: de acordo com o Pew Research Center, 45% dos americanos acreditam que o consenso abrange só algo entre 30% e 50% dos cientistas.

De 13,9 mil artigos publicados entre 1991 e 2012, só 24 negam o aquecimento global.

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O que fazer para mudar esse quadro? O propósito aqui não é ditar regras. Mas, sejam quais forem as soluções, elas passam pela capacidade de diferenciar evidência de convicção pessoal. “O próprio aquecimento global é um fenômeno físico”, diz o filósofo Michael P. Lynch.

“Mas as pessoas dos dois lados do debate o tornaram uma questão de identidade. As mídias sociais são uma máquina de transformar questões de fato em questões de convicção. Precisamos achar um jeito de redescobrir a mente aberta. E ter humildade intelectual para as evidências que os outros trazem à discussão.” Em suma, basta exercer o comportamento civilizado. Foi ele, afinal, que nos trouxe até aqui.

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