Perda de memória, problemas de concentração e a enigmática “síndrome da fadiga crônica”: o cansaço que não passa, e que pode ter origem neurológica. Um a cada cinco infectados pelo Sars-Cov-2 apresenta sintomas assim meses após a cura. Veja o que a ciência sabe sobre eles – e como busca combatê-los.
Texto Bruno Garattoni e Eduardo Szklarz
Ilustração Tiago Araujo
Design Juliana Krauss
Ele acordou em pânico. Anatolio José Rios, um radialista mexicano de 57 anos internado no Hospital Geral de Massachusetts, estava melhorando da Covid-19 – e os médicos reduziram a dose de sedativos, preparando o corpo do paciente para respirar sem a ajuda da intubação. Mas a volta da consciência veio acompanhada de alucinações. Anatolio via pessoas mortas espalhadas pelo chão da UTI, uma “mulher-vampiro” dentro do quarto, e tinha certeza de que havia pessoas armadas do lado de fora. “Eles querem me matar”, relatou aos médicos. 60% a 80% das pessoas internadas em UTI têm algum tipo de delírio, que é desencadeado por uma combinação de coisas: o uso de sedativos e analgésicos, somado a infecções e ao baixo nível de oxigênio no sangue (sintoma típico das doenças respiratórias). Embora Anatolio tivesse sido infectado pelo Sars-CoV-2, suas alucinações não foram necessariamente efeito do vírus.
Mas, para cada caso como o dele, há alguns outros mais insidiosos, que têm intrigado a comunidade científica. Na Inglaterra, por exemplo, uma mulher de 55 anos deu entrada no pronto-socorro com Covid. Ela sentia falta de ar e foi internada. Ficou três dias no hospital, onde recebeu oxigênio por uma cânula – não foi intubada nem recebeu sedativos. A paciente se recuperou e teve alta. Mas, no dia seguinte, o marido relatou que ela (que não tinha nenhum histórico de doenças psiquiátricas) estava agressiva, confusa e se comportava de forma estranha. Não reconhecia o esposo, colocava e tirava o casaco repetidas vezes – e jurava que leões e macacos a perseguiam pela casa (1).
Nos EUA, uma mulher de 46 anos chegou ao hospital com problemas respiratórios. O médico diagnosticou Covid e recomendou duas semanas de isolamento em casa. Mas oito dias depois a paciente voltou, dizendo que tinha alucinações: um homem de avental cirúrgico a vigiava em sua casa. O médico receitou risperidona, um medicamento antipsicótico, mas as visões prosseguiram. O sujeito de avental continuava no canto da sala. Ele só não entrava no banheiro com a mulher; de resto, a observava o tempo todo. Com o tempo, a Covid passou e a paciente pôde sair de casa – mas, quando ela retornava, a visão assustadora estava sempre lá. Aterrorizada, a mulher não conseguia dormir com medo de que o homem a atacasse. A alucinação só desapareceu 15 semanas depois (2).
“Pessoas que tiveram Covid-19 severa e se recuperaram continuam a apresentar sequelas neurológicas, como fadiga, episódios esquizofrênicos e epilepsia. Isso tem ficado cada vez mais claro”, diz o biólogo Alysson Muotri, pesquisador da Universidade da Califórnia em San Diego. A encefalomielite miálgica, uma doença misteriosa também conhecida como “síndrome da fadiga crônica” (mais sobre ela daqui a pouco), está entre as consequências mais frequentes.
Sintomas assim são menos comuns em quem teve Covid leve ou assintomática. Mas há indícios de que mesmo essas pessoas podem apresentar sequelas. Um levantamento feito por cientistas ingleses, que analisaram estudos realizados em dez países sobre os efeitos neurológicos do coronavírus (3), concluiu que um quinto dos pacientes tem algum problema do tipo após se curar. A fadiga, que acomete 19,3% das pessoas, a perda de memória (18,9%), transtornos de ansiedade (14,8%) e irritabilidade (12,8%) são os mais frequentes.
Os sintomas neurológicos da Covid ainda são pouco comentados, mas o alarme soou faz tempo. Em março de 2020, dois cientistas chineses e um japonês publicaram um artigo (4) sobre o possível neurotropismo do Sars-CoV-2, ou seja, sua capacidade de infectar o sistema nervoso. Eles destacaram que o primeiro Sars-CoV (da epidemia de 2003) podia infectar o tronco cerebral – estrutura que liga a medula espinhal ao resto do cérebro. E era provável que o Sars-CoV-2 tivesse o mesmo potencial.
Hoje, os cientistas já não têm dúvidas de que o novo coronavírus pode afetar o cérebro. Ele já foi encontrado dentro do órgão, inclusive. Mais precisamente nos astrócitos, um tipo de célula que realiza tarefas de “suporte”, como nutrir os neurônios e fazer a manutenção das sinapses, entre outras coisas. Uma equipe liderada por cientistas da USP e da Unicamp examinou o tecido cerebral de 26 pacientes que morreram de Covid-19, e encontrou vírus nos astrócitos.
“Dois trabalhos haviam detectado a presença do Sars-CoV-2 no cérebro, mas não se sabia se ele estava no sangue, nas células endoteliais [que recobrem os vasos sanguíneos] ou dentro das células nervosas”, disse em nota Daniel Martins-de-Souza, professor da Unicamp e um dos líderes do estudo (5). “Nós mostramos pela primeira vez que ele de fato infecta e se replica nos astrócitos, e que isso pode diminuir a viabilidade dos neurônios.”
O coronavírus ataca os astrócitos porque, além de eles serem a célula glial (de suporte) mais abundante do sistema nervoso, são o tipo que mais tem receptores ACE2 – que o vírus usa para se conectar às células humanas. “Quando o astrócito é infectado, o processo inflamatório gera um dano neural. Os neurônios morrem por causa desse efeito tóxico”, diz a bióloga Gabriele Vargas, pesquisadora do Laboratório de Neurobiologia Celular da UFRJ e coautora de uma extensa análise sobre o papel das células gliais na Covid (6).
A equipe do brasileiro Alysson Muotri, na Universidade da Califórnia, demonstrou que o coronavírus também é capaz de ir além, infectando diretamente os neurônios (7). “Mostramos que existe morte celular e redução de sinapses excitatórias no córtex, região essencial para nossa cognição”, diz Muotri. Os pesquisadores colocaram o Sars-CoV-2 em contato com organoides cerebrais. Os organoides são pequenas esferas, com até 0,5 cm de diâmetro, cultivadas em laboratório a partir de células-tronco humanas. Dentro de cada uma há cerca de 2,5 milhões de neurônios e outros tipos de célula, que formam redes neurais e imitam o funcionamento do cérebro. Foi usando essa técnica que, em 2016, Muotri mostrou que o vírus da Zika podia provocar microcefalia em recém-nascidos.
A ciência já sabe que o coronavírus é capaz de contaminar o cérebro. Mas falta responder a uma pergunta que só parece simples: como ele entra? Afinal, o cérebro é envolto pela barreira hematoencefálica, que bloqueia a entrada de vírus e bactérias (e, de quebra, as moléculas de 98% dos medicamentos). Mas há exceções capazes de furar essa barreira – e o vírus pode ser uma delas.