Futebol: canhões em campo
Chutar a bola a mais de 100 quilômetros por hora é um talento que consagra apenas um punhado de jogadores. A ciência explica como eles conseguem essa proeza.
Cinco homens enfileirados aguardam tensos o momento do tiro. A onze passos o adversário concentra-se, reunindo todas as energias em único ponto, para a seguir liberá-las em uma explosão. Os espectadores viram rapidamente a cabeça tentando acompanhar a trajetória do projétil, que passa sobre os homens alinhados. O estrondoso grito de gol, que irrompe então de milhares de gargantas, encerra mais um fuzilamento de sucesso. O super chute do jogador de futebol, como nessa cobrança de falta, equivale a uma aceleração da bola a mais de 100 quilômetros por hora em décimos de segundo e costuma gerar acaloradas discussões – ou costumava, antes do advento do slow-motion (câmara lenta) na TV. Tudo acontece depressa demais e é provável que ninguém saiba descrever com exatidão o que se passou diante dos próprios olhos. Mesmo os jogadores às vezes têm dificuldade para dar uma resposta satisfatória.
O superchute, de resto, não é para qualquer um. Dos mais de 14 mil profissionais de futebol do país, os “canhoteiros”, como são chamados os chutadores mais potentes, como Gilberto Costa e Neto, que disputaram o Campeonato Paulista pelo Corinthians e Palmeiras, respectivamente, ou ainda Éder, do Atlético Mineiro, constituem apenas um seleto grupo. A medição precisa do desempenho físico dos atletas, prática comum em muitos clubes, a exemplo do São Paulo, faculdades e até no Instituto do Coração (Incor) em São Paulo, indica que esses jogadores dispõem de uma potência devastadora.
Seria de esperar que qualquer jogador de futebol bem treinado pudesse ter um chute que propelisse a bola à velocidade de um carro numa estrada, mas não é o que ocorre. A força muscular, a resistência, a boa forma física e a eficácia nos chutes a gol são itens obrigatoriamente trabalhados nos programas de treinamento que visam a aumentar o rendimento de qualquer jogador. Por que, então, só uns poucos se destacam como canhoneiros? Todo jogador, por mais que melhore, tem seus limites. Aumentar o volume dos músculos por meio de exercícios com pesos, por exemplo, não aumenta, de forma alguma, a potência do chute. Isso é explicável pelos modernos conhecimentos de anatomia. Sabe-se que um músculo se compõe de três tipos de fibras: as rápidas, as lentas e as intermediárias. Cada uma delas tem propriedades muito diferenciadas.
As fibras lentas tendem a ser mais curtas e vermelhas, responsáveis pelo rendimento contínuo, sendo as mais usadas pelos maratonistas, por exemplo. Em compensação, uma ação repentina, como um chute de arrebentar redes, requer músculos rápidos, capazes de se contrair em frações de segundo. A maior parte da energia provém, nesse caso, da combustão anaeróbica (sem consumo de oxigênio) de açúcar, que a libera quase como uma explosão. Portanto, um disparo potente depende, sobretudo, da velocidade de contração dos músculos rápidos. Além da constituição das fibras musculares, também o número de nervos que acionam os músculos ajuda a determinar a velocidade do movimento. Quanto mais numerosas as terminações nervosas em cada grupo de fibras, mais eficiente será a ação.
“Uma aptidão especial é o segredo dos profissionais de superchute”, ensina o professor de Educação Física, Alberto Carlos Amadio, da Universidade de São Paulo. Ou seja, a velocidade de contração do sistema muscular desses jogadores é extremamente alta. Esta capacidade suplementar é algo com que não se pode competir nem imitar – eles já nasceram com músculos super-rápidos. Isto não significa que um jogador de chute médio deva resignar-se. Um bom programa de treinamento pode aumentar consideravelmente a potência do chute de qualquer atleta. Para tanto, é necessário exercitar as fibras rápidas; por exemplo, com séries de corridas curtas seguidas de chutes a gol. O resultado é um robustecimento dessas fibras, que armazenam assim mais energia, além da gradual transformação das fibras intermediárias em rápidas. O programa, é claro, não consegue aumentar o número de nervos em cada músculo, definido geneticamente, mas pode ativar as terminações nervosas fora de uso por falta de exercício. O treinamento pode conseguir, ainda, que uma porcentagem muito alta de fibras se contraia de modo simultâneo (coordenação intramuscular), o que mais uma vez tem como conseqüência uma alta aceleração.
Um fato decisivo que costuma ser levado em conta é que quase toda a musculatura do corpo se põe em ação no momento do chute, por meio de “alças” opostas de contração e distensão. A perna com a qual se chuta tem somente uma fração da energia necessária para o disparo. A bola oficial de futebol, que pesa aproximadamente 450 gramas, é acelerada até alcançar uns 120 quilômetros por hora. A tremenda descarga de energia envolvida no ato, assim, só obtém o resultado máximo quando o movimento está coordenado de forma ótima.
Mas não é só a Biologia que impõe limites à arte do superchute. As leis da Física, naturalmente, também contam. Isso significa que o jogador não pode sonhar com técnicas de golpear a bola que contrariem as regras do movimento dos corpos. Cabe-lhe, isto sim, carregar o corpo com a maior quantidade de energia possível, o que ocorre quando toma impulso na corrida. Se ele já não vier correndo pelo campo a toda velocidade, convencionou-se que pelo menos cinco passos são recomendáveis.
Pouco antes do chute, quando o jogador coloca a perna de apoio junto à bola, diminui a velocidade e todo o corpo estira-se para trás como um arco pronto a disparar uma flecha. Mais do que a velocidade do impulso, essa tensão prévia é requisito importante para uma explosiva contração muscular no chute. Os músculos do estômago se contraem rapidamente e catapultam a perna que dispara para a frente como um relâmpago. Outra conclusão das pesquisas é que também o músculo reduz a velocidade alguns décimos de segundo antes do contato com a bola. A freada repentina faz com que a perna à altura do joelho, agora retardada, se lance como um chicote. Num chicote de verdade, o estalo é resultado da enorme velocidade da ponta da tira de couro, no momento do seu retrocesso. A comparação não é descabida, pois o peito do pé golpeia a bola durante 5 a 10 milésimos de segundo, acelerando-a instantaneamente.
A violência da “patada” que catapulta a bola equivale à energia necessária para movimentar 300 quilos. A perna do chute é incapaz de suportar mais nestas frações de segundos. E assim deve ser. Se, por qualquer motivo inexplicável, o peso da bola diminuísse repentinamente, a potência do choque se multiplicaria e a perna não agüentaria as conseqüências, ficando com os cordões musculares estirados e até ossos estilhaçados.
Os pesquisadores do futebol descobriram que o psiquismo do jogador também influencia os músculos do seu corpo. Na ação, alguns deles se contraem (alça de contração) e outros se estiram. Fala-se, então, de ligamentos musculares, nos quais os diferentes músculos cooperam de uma forma complexa. No superchute, os músculos passivos reagem de forma especialmente elástica, não freando os músculos ativos, que aceleram a perna do disparo.
O receio de machucar-se ou a grande responsabilidade diante de um gol que talvez decida a partida podem provocar uma contração involuntária nos músculos, que assim deixam de estirar-se com rapidez suficiente. As alças musculares se põem mutuamente fora de serviço nos décimos de segundo decisivos. O bloqueio psicológico raramente pode ser explicado pelos jogadores ou treinadores. As vezes passam semanas até que a crise seja superada, da mesma maneira que chegou. O craque das copas de 74 e 78 e atual deputado estadual em Minas Gerais, Nelinho, deu um bom exemplo de superação desse tipo de bloqueio após operar o joelho e a coluna no auge da carreira. Ele prometeu – e cumpriu – que chutaria uma bola para fora do estádio do Mineirão, em Belo Horizonte, a uma altura de mais de 25 metros. O jogador Rivelino, outro chutador forte contemporâneo de Nelinho, conhecido como “patada atômica”, não se lembra de já ter se machucado em campo e atribui sua resistência ao futebol de rua, praticado desde a infância. O certo é que, por mais que o talento para o superchute seja inato, craques do passado e do presente como Pepe, Jair, Gérson, Éder ou Gilberto Costa também precisaram suar muito a camisa em treinos de coordenação física e psicológica.
Para saber mais:
(SUPER número 1, ano 2)
(SUPER número2, ano 2)
(SUPER número 3, ano 5)
(SUPER número 12, ano 7)
(SUPER número 11, ano 7)
Exercícios na medida certa
No laboratório da Faculdade de Educação Física da USP, as cobaias são humanas. Ali os atletas andam sobre plataformas altamente sensíveis, saltam diante de câmaras fotográficas estroboscópicas ou ainda correm em esteiras ligadas a tubos e eletrodos. Esse autêntico campo de provas, que conjuga experimentos de três disciplinas – Fisiologia, Biomecânica e Antropometria -, constitui um dos mais modernos centros brasileiros de estudo do desempenho da máquina humana. Equipamentos da ordem de 300 mil dólares fornecem dados para mais de uma dezena de pesquisas em cada uma das áreas de estudo abrangidas pelos testes, incluindo serviços de medição de esforço físico para clubes.
Os experimentos são simples. Uma plataforma, que ocupa quase toda a extensão do laboratório, indica por meio de balanças precisas a intensidade de todas as forças em jogo nos movimentos executados sobre ela. Isso permite identificar os momentos em que o corpo está mais sujeito a sobrecargas de força e possíveis contusões. Os movimentos são registrados em uma série de fotos, que mostram a posição do corpo em cada fração de segundo, facilitando a análise. A tecnologia do vídeo entra em cena também para gravar as atividades em 5 mil quadros a cada segundo. A eletromiografia é outro sistema de medição biomecânico, que mede a contração muscular, por meio de eletrodos presos à pele. É assim que se sabe qual músculo está em ação no movimento, o que torna possível corrigir a coordenação motora.