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Visão periférica: Olhos de craque

Nem só de pernas vivem os jogadores de futebol. A medicina mostra que treinar os olhos melhora a performance dos atletas, e que ¿visão de jogo¿ não é um dom de nascença, privilégio de bem-dotados.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h13 - Publicado em 31 out 1993, 22h00

Paulo D´Amaro

No primeiro instante, ninguém entendeu aquela jogada. Pelé recebeu a bola na entrada da área italiana e, em vez de driblar o zagueiro e partir para o gol, tocou-a com pouca força para o lado direito, onde não havia nenhum jogador. Seria um erro primário cometido pelo rei do futebol? Nada disso. Foi, na verdade, uma jogada genial. Lá de trás, vinha o lateral Carlos Alberto Torres, veloz como um foguete. O passe de Pelé veio na medida exata. Resultado: mais uma bola no fundo das redes do goleiro italiano Albertosi. Era o quarto gol da Seleção brasileira, que selaria a conquista do tricampeonato mundial, no dia 21 de junho de 1970, no Estádio Azteca, no México.

Qual a explicação para o passe genial? Como Pelé conseguiu perceber, quase de costas, a aproximação de Carlos Alberto? A resposta não tem nada de sobrenatural. Pelé tinha aquilo que, no meio futebolístico, costuma-se chamar visão de jogo — a capacidade de perceber, num piscar de olhos, tudo o que se passa à sua volta. Essa velha conhecida dos amantes do chamado esporte bretão tem outro nome para os oftalmologistas: visão periférica. É ela que permite aos motoristas, por exemplo, olhar no espelho retrovisor sem perder a atenção no trânsito à frente. Ou, ainda, ao leitor perceber as bordas da revista enquanto lê o texto. Agora juntaram-se o oftalmologista Durval Morais de Carvalho e o técnico de futebol Paulo Gonçalves, professor da Universidade Federal de Goiás, para afirmar uma hipótese ousada: essa virtude pode ser desenvolvida e melhorada artificialmente.

A questão é polêmica. A “visão de jogo” sempre foi considerada um dom de nascença de uns poucos privilegiados. “Alguns têm, outros não”, diz taxativamente o ex-jogador e técnico da Seleção brasileira, Paulo Roberto Falcão, que atualmente dirige o Internacional de Porto Alegre. Outro craque do passado recente, Roberto Rivellino, concorda: “Visão de jogo é questão de talento e isso nasce com o jogador”, diz Rivellino, atualmente comentarista de TV e técnico do Clube Brasil de Masters. Já o ex-atacante do Corinthians e da Seleção, Sócrates de Souza Vieira de Oliveira, acredita que é possível melhorar a percepção com treinamentos específicos. “O pouco uso destas técnicas é resultado da falta de conhecimento”, adverte o ex-jogador, que ficou famoso por seus desconcertantes passes de calcanhar, e hoje trabalha como médico em Ribeirão Preto, SP.

A controvérsia é fácil de resolver, para o médico Durval Morais de Carvalho: “Os craques realmente conseguem aproveitar a visão periférica naturalmente. Mas há como induzi-la também nos jogadores menos dotados”. Praticante do futebol, ele se interessou pelo assunto por acaso. “Eu sempre ficava intrigado com lances em que um jogador, às vezes de costas, percebia um colega e fazia o passe”, conta. “Até que um dia me flagrei fazendo coisas assim num jogo de amadores.” Como especialista em assuntos de visão, Carvalho descobriu que sua “jogada de Pelé” não tinha sido casual. Na época, ele se dedicava a exaustivos exercícios de leitura dinâmica. “Tinha que haver uma relação entre as duas coisas.”

E aparentemente havia. “Os exercícios me condicionavam a prestar mais atenção na periferia da visão. Ao andar pela rua, ficava incomodado com as placas e outdoors, que antes eu nem percebia.” Se a visão lateral se mostrava mais apurada num simples passeio, no campo de futebol não poderia ser diferente. Não era mais necessário olhar fixamente para a bola e, assim, Carvalho podia procurar companheiros desmarcados ou ver a colocação do goleiro antes de chutar.

Os exercícios de leitura dinâmica haviam ampliado o mundo visual do médico. Isso porque, comprovadamente, o homem comum costuma prestar atenção apenas na chamada visão central. Não é para menos. Na vida cotidiana, é necessário constantemente identificar rostos, ler palavras e perceber objetos — tarefas que demandam uma análise detalhada das imagens. “Isso só pode ser feito por células fotossensíveis bastante complexas, chamadas cones, que captam a imagem e a levam ao cérebro com muita nitidez, como se fosse uma fotografia”, explica.

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Só que essas células superevoluídas concentram-se apenas na região central da retina, bem no centro de um círculo de apenas 1,5 milímetro. Por isso, conseguimos ver com minúcias apenas as coisas que estão exatamente em frente de nossos olhos, num cone visual de irrisórios 10 graus, algo como o facho de uma lanterna. “É verdade que temos a impressão de ver com nitidez bem mais do que isso”, diz Carvalho. A razão é a rapidez de movimentação dos olhos, que conseguem mudar o foco da “lanterna” de um alvo para outro em frações de segundo. “Vale lembrar que os músculos oculares são os mais velozes de todo o corpo humano.”

Assim, apesar de não percebermos, a maior parte do nosso mundo visual está sempre no campo da visão periférica. Esta, por sua vez, é proporcionada por outro tipo de célula. São os bastonetes, mais simples, situados na periferia daquele pequeno círculo da retina. Como se fossem desenhistas preguiçosos, os bastonetes repassam ao cérebro apenas um esboço da imagem que a pessoa vê. Só dizem o formato aproximado dos objetos ao redor, a e se estão parados ou em movimento. Não percebemos claramente onde termina nossa visão central e onde começa a periférica pois há uma faixa de transição, onde cones e bastonetes se misturam.

Como qualquer humano normal, um atleta tende a seguir a regra de usar muito mais a visão central que a periférica. Só que, no esporte, o sofisticado trabalho das células cones não tem tanta importância. Nenhum jogador precisa ler qualquer coisa durante o jogo ou analisar o rosto de um companheiro ou adversário. Basta perceber a cor do uniforme daqueles que o rodeiam, se estão longe ou perto, parados ou em movimento. É aí que a visão periférica adquire um status que não costuma ter na vida comum. Somada a um bom desenvolvimento da musculatura do pescoço e dos olhos, ela faz os craques do futebol acharem rapidamente um companheiro desmarcado, sem precisar virar o corpo, tarefa que demanda preciosos segundos e revela ao adversário a intenção da jogada.

Ao perceberem isso, Durval Carvalho e o técnico goiano Paulo Gonçalves decidiram unir teoria e prática. “A preparação dos jogadores de futebol tem visado muito mais a parte motora, ao passo que com treinamento da percepção pode-se melhorar a velocidade dos reflexos. Por isso, é importante também criar exercícios para os olhos”, afirma Paulo Gonçalves, que, ao contrário da maioria dos técnicos de futebol, optou pela formação acadêmica: é mestre em ciências do esporte pela Universidade Paris V, na França, onde pretende apresentar o trabalho desenvolvido pela dupla no ano que vem, interrompendo temporariamente sua carreira de técnico.

Foi desenvolvida uma espécie de terapia para aumentar o aproveitamento da visão periférica pelos jogadores. Os primeiros resultados foram sentidos este ano na sensacional campanha do antes inexpressivo Vila Nova, de Goiás, o time escolhido como cobaia. “A intenção era aumentar a velocidade dos reflexos da musculatura do pescoço e dos olhos, além, é claro de forçar o uso da visão periférica”, explica Gonçalves.

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Bons treinadores já haviam se preocupado em orientar os novatos para jogar de cabeça erguida. “Normalmente, os garotos novos olham apenas para a bola e não percebem a aproximação do adversário, errando mais passes”, diz Telê Santana, técnico campeão mundial interclubes pelo São Paulo, de quem os juniores são-paulinos volta e meia ouvem broncas como: “Levanta a cabeça!”, ou “Presta atenção no jogo!”

Outros, como Otacílio Pires de Camargo — o Cilinho — são mais criativos. O atual técnico do Rio Branco de Americana (time revelação do futebol paulista no último ano) ficou famoso por “garimpar” novos talentos e também por insistir para que esses novatos praticassem exaustivamente os fundamentos do esporte: chute, drible, passe, cabeceio e condução de bola. Cilinho inventou um treino curioso para laterais e pontas.Com o objetivo de condicioná-los a olhar com atenção para a área antes de cruzar uma bola, ele se coloca perto do gol, segurando uma camisa vermelha e outra amarela. Conforme o jogador se aproxima da linha de fundo para cruzar, Cilinho levanta uma das duas camisas. O jogador tem que gritar a cor da camisa antes de chutar, o que obriga a desviar a atenção da bola e utilizar a visão periférica.

Alguns craques também são bons exemplos de autodidatismo. O atual técnico do Corinthians, Mario Sérgio Pontes de Paiva, ficou famoso na década de 80 como jogador capaz de visualizar jogadas que ninguém conseguia imaginar. Ex-craque do Grêmio Porto-alegrense, São Paulo e Palmeiras, Mário Sérgio não se preocupava com a bola enquanto corria, mantendo os olhos livres para planejar o jogo. Mas nem sempre foi assim. “No início de carreira, eu só olhava para baixo”, confessa. “Perdia tantas bolas e errava tantos passes que um dia me irritei e decidi treinar incansavelmente até aprender a jogar de cabeça erguida. Deu tão certo que passei a surpreender até meus próprios companheiros de time com passes muito rápidos”, revela.

O mesmo ocorreu com Rivellino, que apesar de considerar a visão de jogo um dom de nascença, confessa que aprendeu pouco a pouco a usá-la para enganar os zagueiros adversários. “Na Seleção, cansei de fazer uma jogada em que olhava para o Edu na esquerda e passava para o Zico, na direita”.

Todas essas tentativas, no entanto, foram isoladas e intuitivas. O primeiro trabalho realmente estruturado em moldes científicos começou pelas mãos da dupla goiana, em 1983. Desde então, eles desenvolveram um aparelho capaz de medir a velocidade de captação de imagens e a percepção periférica. Paralelamente, inventaram e testaram toda sorte de exercícios visuais, elegendo, ao final, os mais produtivos, que foram aplicados pela primeira vez em 1992.

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Gonçalves e Carvalho recrutaram doze jovens do time de juniores do então inexpressivo Vila Nova, de Goiás. Primeiro, a velocidade de reflexo visual de cada um foi verificada. O jogador era colocado a 1,5 metro de duas telas de vídeo, separadas entre si também por uma distância de 1,5 metro. Dessa forma, era impossível olhar fixamente para os dois vídeos ao mesmo tempo. Tinha então que identificar letras que apareciam de repente nas telas. Enquanto na à direita aparecia, por exemplo, um “a”, a tela da esquerda mostrava um “j”. As letras ficavam durante um momento nas telas e então se apagavam.

Nas primeiras baterias, o tempo de permanência das letras era mais do que suficiente para que os jogadores pudessem facilmente ler uma tela, virar e ler a outra. No decorrer do teste, porém, os flashes ficavam cada vez mais rápidos, exigindo não somente movimentos de pescoço e dos olhos, mas também o emprego da visão periférica. O tempo de permanência das letras foi reduzido até o ponto em que mesmo os jogadores mais rápidos não conseguissem ler ambas as telas. Esses privilegiados atingiram a impressionante marca de 46 centésimos de segundo. Ou seja, necessitavam menos de meio segundo para ler dois estímulos diferentes separados por mais de um metro de distância. “Muitos, no entanto, revelaram reflexos visuais bem mais lentos”, conta Carvalho. O próximo passo seria decisivo para os menos dotados.

Descoberta a velocidade visual de cada jogador, os novatos do Vila Nova foram submetidos a três modalidades de treinamento para a visão, realizados três vezes por semana, durante três meses. Uma delas era eminentemente laboratorial e assemelhava-se aos exercícios de leitura dinâmica. O jogador era condicionado a ler, com apenas um golpe de vista, palavras impressas com vários centímetros de distância umas das outras.

O segundo exercício já estava ligado à bola. A velha e boa “embaixada” — aquela brincadeira de ficar chutando a bola para cima sem deixá-la cair no chão — tinha que ser executada ao mesmo tempo em que o jogador era obrigado a olhar para o gol. “Nas primeiras tentativas quase ninguém conseguia dar mais de trinta olhadelas em direção ao gol em cada série de 80 embaixadas”, recorda-se Carvalho. “Ao final de um mês, no entanto, alguns jogadores já conseguiam olhar para o gol 70 vezes a cada 80 toques na bola.” Em outras palavras, eles haviam se libertado da bola. Se antes tinham que olhar fixamente para ela, agora bastava a visão periférica, tal qual fazem os jogadores de basquete enquanto quicam a bola.

A terceira e última etapa foi a mais difícil para os juniores do Vila Nova. Era um treino de cabeçadas para o gol, após cobranças de escanteio. Só que, em vez de simplesmente esperar o cruzamento, os jogadores precisavam cumprir uma tarefa durante o trajeto da bola. Assim que era chutada, tinham de olhar para o lado oposto e ler palavras escritas em uma tabuleta. À primeira vista, parece realmente impossível virar-se para trás, ler uma placa, voltar e cabecear a bola para o gol — tudo em mais ou menos um segundo. “Como no exercício das embaixadas, ao final de dois meses a maioria já tinha reflexos suficientemente rápidos na musculatura do pescoço e dos olhos para cumprir a tarefa.”

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Seis dos doze juniores treinados por Gonçalves e Carvalho tornaram-se titulares do time principal, após a experiência. O Vila Nova, que fazia nove anos não ganhava nada, saiu de uma fase ruim, à beira do rebaixamento para a segunda divisão, para chegar em 3.º lugar em 1992 e se sagrar campeão estadual goiano em 1993. “É claro que muitos fatores levaram o time a ganhar o campeonato. Mas, com certeza, um dos mais importantes foi o treinamento da visão”, diz Paulo Gonçalves.

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A ciência do chute com efeito

(SUPER número 1, ano 2)

Canhões em campo

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A ciência constrói atletas (SUPER número 3, ano 5)

Doping sem barreiras

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