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A amarga saga da IPA

Séculos atrás, essa cerveja premium ganhou mais álcool e lúpulo para suportar as navegações da Inglaterra até a Ásia. Conheça a história da India Pale Ale.

Por Alexandre Carvalho
Atualizado em 17 fev 2023, 15h26 - Publicado em 20 jan 2022, 12h43

Antropólogo, professor de história, especializado na Antiguidade egípcia e greco-romana, o americano Travis Rupp soma ao currículo um ofício surpreendente – e que deve ser divertido: arqueólogo de cerveja.

Ele não se limita a pesquisar vestígios para descrever receitas e costumes antigos relacionados à bebida. Entre 2016 e 2020, Travis liderou um projeto científico especial na Avery Brewing: ressuscitar cervejas do passado. Com base na documentação sobrevivente, pesquisa de contexto histórico e até estimativas de como seriam as águas em cada tempo e lugar, ele entrou em laboratório para descobrir se o que nossos antepassados bebiam poderia ser chamado de cerveja hoje. E se a coisa era palatável. (Spoiler: era.)

Nesse projeto, chamado “Cervejas da Antiguidade” (o nome em inglês é mais interessante: Ales of Antiquity é um trocadilho com Tales of Antiquity – “Contos da Antiguidade”), ele recriou cervejas vikings, do período Inca no Peru e, indo mais longe, até do Egito Antigo. Mas o projeto que mais deu trabalho nessa série foi o que recuperou, em 2019, um tipo de bebida que se espalhou pelo mundo a partir do fim do século 18 e que, hoje, é praticamente sinônimo de cerveja artesanal: a India Pale Ale (IPA).

Em sua experiência, Travis Rupp fez um recorte temporal: sua meta foi recriar a IPA que era bebida nas Índias Orientais, na época em que boa parte do Sudeste Asiático era todo ele colônia britânica. As cervejas chegavam lá junto a uma diversidade de produtos, como carne seca, bacalhau, queijo, manteiga, vinagre e rum… Tudo para abastecer os britânicos que moravam ou trabalhavam na Ásia. De volta, os navios levavam para a Europa, principalmente, chá, pimenta e outros temperos exóticos. As valiosas especiarias.

A maior dificuldade dessa viagem no tempo não foi a escolha dos ingredientes certos. O perrengue foi outro: a bebida que chegava aos marinheiros, soldados e civis britânicos alocados no continente asiático viajava de três a 18 meses no oceano, dependendo da região de destino. Essa jornada marítima enfrentava mudanças radicais de temperatura: partindo do frio inglês, as bebidas passavam por zonas tropicais e equatoriais. Sempre sacolejando em navios com estrutura do século 18 ou 19. A combinação perfeita para estragar qualquer cerveja.

Como o objetivo era experimentar essa bebida de séculos atrás, o arqueólogo foi criativo para repetir essas condições. Usou empilhadeiras para balançar barris de madeira, na tentativa de espelhar as águas agitadas do mar aberto. E subiu e desceu a temperatura do processo, tendo como referência o clima em pontos-chave daquelas navegações: Inglaterra, oeste da África na Linha do Equador, o Cabo da Boa Esperança e o Oceano Índico.

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Mas o material sobreviveu bem. Mesmo depois das intempéries artificiais, a cerveja surgiu frutada, picante, terrosa, com nuances de carvalho, baunilha e o amarguinho exigido de qualquer IPA. Ah, e como Travis seguiu a receita original, não faltou álcool ali: 7,7% – contra uns 6% das IPAs padrão de hoje, e 5% das pilsens de churrasco.

“Embora eu não possa dizer que este produto seja exatamente o que as Índias Orientais estavam bebendo na época, acho que chegamos muito, muito perto”, comemorou o arqueólogo etílico no blog da Avery, em 2019.

Se conseguiu mesmo clonar a bebida, Travis recriou uma cerveja histórica. Mas não a primeira IPA de todos os tempos. É histórica porque representa um período de boom da exportação de cerveja do Império Britânico para suas colônias, época em que a cervejaria Bow, do londrino George Hodgson, esteve na liderança desse comércio, a ponto de muitos acreditarem que o estilo IPA teria sido inventado por ele. A cerveja de Travis Rupp até se chamou “1752’’ por causa de George: uma referência ao ano em que sua cervejaria foi fundada.

Hodgson foi muito importante para a disseminação da IPA, mas essa história de ter sido o primeiro alquimista do estilo tem mais folclore que evidências históricas. Essa cerveja já circulava pelo mundo antes que o empreendimento do britânico fizesse sucesso. Mas a saga das Pale Ale ao longo do século 18 dá boas pistas de como essas novas características, e esse novo nome, acabariam emplacando no planeta cerveja.

Montagem de foto de copo de cerveja visto de cima e texto explicando as iniciais que formam o nome IPA.
Clique na imagem para ampliar. (Carlos Eduardo Hara/Alexandre Carvalho/Superinteressante)

Ingleses preferiam cerveja escura

Na Inglaterra, a preferência nacional no século 18 era a Porter. O que ficou como mito diz que as IPAs surgiram para substituir essa cerveja escura, que não descia bem no clima escaldante da Índia. Hum… mais ou menos. As Porters continuaram chegando aos portos da Ásia quando a IPA já tinha se espalhado pelo sudeste do continente.

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De acordo com o historiador de cerveja Ron Pattinson, entre 1849 e 1857, a Companhia Britânica das Índias Orientais encomendou 46 mil barris de Porter. Mas o raciocínio por trás da falta de harmonização entre bebida e clima não é disparatado. “Essa libação pesada, viscosa e semidoce [das Porters] combinava melhor com o clima frio britânico do que com a umidade tropical opressiva”, escreveria outro especialista, Nicholas J. Hamlin, em seu jornal, Britain, Bengal, Burton, and Beer.

Antes da IPA, os britânicos nas Índias Orientais já bebiam opções mais claras e refrescantes, entre elas a Pale Ale (pale significa pálida), sem o “India” no nome. Isso graças à adoção do carvão como alternativa à madeira, no século 17, para a produção do malte, o que permitiu uma torração mais limpa dos grãos e, como consequência, cervejas mais claras (pálidas) do que os líquidos turvos que predominavam.

Já temos o “Pale” do nome, mas e o “Ale”? Esse exige um parêntese um pouco mais técnico. Ale é uma das três grandes famílias de cerveja, ao lado das lagers e lambics, classificadas de acordo com sua fermentação (o processo em que as leveduras consomem os açúcares do mosto e os transformam em álcool e gás carbônico).

Enquanto as lagers são de baixa fermentação (quando as leveduras ficam depositadas no fundo do recipiente, resultando em cervejas mais transparentes e com aromas discretos) e as lambics são de fermentação espontânea (o mosto – líquido com açúcares extraídos do malte – fica em tonéis expostos ao ambiente, gerando cervejas mais ácidas), as Ales são de alta fermentação. Neste caso, as leveduras, da espécie Saccharomyces cerevisiae, sobem para o topo do tanque e agem mais rapidamente na transformação dos açúcares do mosto em álcool, dando à luz um produto mais alcoólico e frutado.

Lupuladas

Veja bem: essas cervejas eram Pale Ale, iam para a Índia… mas ainda não eram IPA. A mudança de nome passa antes por uma mudança na fórmula. Em 1768, um cervejeiro anônimo publicou um “compêndio da produção de cerveja inglesa”, no qual alertava que cervejas para climas quentes deveriam ser mais lupuladas.

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Para que as cervejas passassem pelas variações de temperatura e sacolejos de navio sem mudar drasticamente de sabor, os produtores começaram a adicionar-lhes mais lúpulo. Trata-se de uma planta prima da cannabis, com propriedades conservantes. Um efeito colateral é que, por causa da maior presença do lúpulo, a cerveja ficou também mais amarga.

Ainda deixaram a bebida com maior teor alcoólico. Quanto mais álcool no líquido, afinal, mais ele resiste ao desenvolvimento de contaminações microbiológicas – cervejas com maior ABV (sigla em inglês para “Álcool Por Volume”) duram mais.

E a aprovação foi geral. A cerveja clara e amarga que ia para a Índia se tornou tão popular que começou a ser consumida nas outras colônias britânicas, como Austrália e Nova Zelândia, e até, num efeito-bumerangue, no lugar em que era produzida: a Inglaterra, onde passou a rivalizar com a Porter.

Foi aí que ela ganhou um nome específico para diferenciá-la das demais Ales. Na hora de pedir sua bebida favorita, o cliente começou a dizer que queria “aquela Pale Ale ‘da Índia’”. E o nome pegou. O primeiro registro conhecido do termo é de 1829, num anúncio de jornal, que nem era inglês: uma publicação de Sydney, na Austrália (prova de que a cerveja já rodava por outras colônias britânicas), fez um anúncio de venda de “East India Pale Ale”.

Porcentagens mostrando os diferentes teores alcoólicos das IPAs e cervejas pilsen.
Clique na imagem para ampliar. (Carlos Eduardo Hara/Alexandre Versignassi/Superinteressante)

Uma precursora

Outro caminho da evolução das Pale Ale para suas irmãs com “I” na frente do nome está em uma bebida cuja história ficou para trás: a “cerveja de outubro”. Basicamente, foi uma fermentada para exportação, produzida sempre nesse mês do ano com destino para os Países Bálticos.

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Era uma Ale (alta fermentação) de forte teor alcoólico e muito lúpulo, mas não tinha nada de Pale: sua coloração ia do âmbar ao marrom. Isso até que os produtores começassem a fabricá-la também para o consumo doméstico, e nesse caso passaram a usar maltes claros.

Sim, exatamente como uma IPA tradicional. Mas uma IPA que era um soco no fígado: seu teor alcoólico chegava fácil aos 12% (patamar dos vinhos). Com uma quantidade absurda de lúpulo, essa cerveja ainda envelhecia de nove meses a três anos em barris de carvalho, o que lhe dava cor e nuances de sabor. E também encarecia o processo de fabricação.

A cervejaria Bow exportava Porters e Pale October Ales para a Índia. Mas Hodgson e outros cervejeiros provavelmente mexeram na fórmula para deixá-la mais barata, economizando no lúpulo e reduzindo um pouco o teor alcoólico. Só que, ao diminuir álcool e lúpulo, você também reduzia o poder de conservação da bebida. Esses exportadores tiveram de descobrir a sintonia fina que mantivesse seu comércio lucrativo e, ao mesmo tempo, não corresse o risco de transformar sua cerveja em água suja. Provavelmente foi essa busca que deu ao mundo a India Pale Ale.

Montagem de copo de cerveja e gravura de lúpulo com texto explicando a diferença entre as IPAs inglesas e americanas.
Clique na imagem para ampliar. (Carlos Eduardo Hara/Alexandre Carvalho/Superinteressante)

IPA – american way

Nada disso significa que as pessoas bebam hoje qualquer coisa parecida com a IPA de 200 anos atrás, que o arqueólogo Travis Rupp recriou. Não só pelos séculos que nos separam, mas também porque a Grã-Bretanha perdeu, há muito tempo, a supremacia sobre esse estilo de cerveja.

Já no início do século 20, a IPA ficou de escanteio na Inglaterra. A leveza das cervejas pilsen tomou o mercado inglês (e o do resto do planeta). A India Pale Ale, então, virou cerveja de nicho. Mas já tinha feito história a ponto de chamar atenção de produtores independentes americanos.

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Em 1968, o pesquisador Chuck Zimmerman, do Departamento de Agricultura dos EUA, e o produtor John Segal criaram um híbrido experimental de lúpulo numa estação de pesquisa em Washington. Batizado de Cascade, ele é o Adão dos lúpulos cítricos que marcariam as India Pale Ale feitas nos EUA: as American IPAs.

Os americanos pegaram a IPA inglesa, aumentaram o lúpulo cítrico e reduziram a quantidade de maltes. E aí surgiu um novo estilo de bebida, mais refrescante. Ao longo dos anos 1970 e 1980, os produtores artesanais dos EUA passaram a sofisticar e diversificar receitas com essa fórmula-base e renovaram um movimento consistente em torno das Ales, que uma hora chegaria ao Brasil.

As IPAs que as cervejarias artesanais (e industriais) produzem hoje são filhotes desse processo evolutivo. Na prática, qualquer uma que tenha bastante álcool e lúpulo tende a ganhar essas iniciais – temos as “Brown IPAs” e as “Black IPAs”, por exemplo, que nada têm de pálidas. E tudo bem. Ainda assim, cada pint contém uma boa dose da história da humanidade.

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