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A guerra que não acabou

Duas décadas depois do fim dos conflitos pela independência das repúblicas da Croácia e da Bósnia e Herzegovina, a dor e a ameaça de novos confrontos ainda estão presentes

Por Salus Loch
Atualizado em 4 nov 2016, 18h44 - Publicado em 25 Maio 2015, 19h00

Para entender uma guerra, é preciso observar os elementos que cercam, historicamente, disputas por poder, território e diferenças étnicas e religiosas. Qualquer guerra envolve pelo menos um destes elementos. Frequentemente, todos. Foi o que aconteceu em dois grandes conflitos entre 1991 e 1995, envolvendo Croácia, Bósnia e Herzegovina e Sérvia. Na época, essas eram as principais repúblicas da antiga Iugoslávia. Mais do que colocar um fim à República Federal Socialista da Iugoslávia, as Guerras nos Bálcãs da primeira metade dos anos 90 deixaram 140 mil mortos, 2,2 milhões de refugiados e consequências econômicas, sociais e psicológicas que ainda estão presentes.

Investigar o tema e conhecer as histórias de quem testemunhou a guerra não é fácil. A SUPER visitou seis cidades na Croácia, na Sérvia e na Bósnia, e encontrou pelo caminho muita gente que, 20 anos depois, ainda se recusa a falar sobre o assunto. Para essas pessoas, a guerra é um episódio muito recente, uma espécie de tabu. Mesmo assim, existe gente disposta a compartilhar histórias interessantes sobre o período mais tenso da história recente dos países balcânicos.  

 

Debaixo da terra

Vladmir Dukaric, 49 anos, fez parte do 1º exército formado na Croácia, entre 1990 e 1991. O grupo tinha 1,5 mil homens que enfrentaram os rebeldes sérvios que viviam em território croata. Os soldados também encararam o exército iugoslavo, então sob domínio do presidente sérvio Slobodan Milosevic, que não admitia a independência dos croatas. Mesmo assim, um referendo popular que aconteceu no dia 25 de junho de 1991 decidiu pela separação.

Família Dukaric

A esposa de Vladmir, Mileta, de 47 anos, perdeu o pai na guerra, em fevereiro de 1992. Ele foi atingido por uma granada, em novembro do ano anterior, enquanto abastecia seu carro num posto de gasolina da cidade de Osijek. Hoje, Mileta e Vladmir moram na mesma cidade com o filho Denis, 25, e a nora, Lorna, 23. O filho mais novo do casal, Sven, 21, mora em Dublin, na Irlanda – onde foi buscar um futuro que não conseguia enxergar em sua terra natal.

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Além de perder o pai, Mileta teve que fugir da Croácia em meados de 1991, levando o filho Denis, que tinha dois anos de idade. Eles buscaram abrigo com parentes numa pequena cidade no interior da Áustria. “Osijek era bombardeada diariamente pelo exército da Iugoslávia/Sérvia. Eu e meu marido decidimos que eu deveria sair da Croácia para tentar garantir a segurança do nosso filho. Foi o que eu fiz, mas tive que voltar um tempo depois por que a saúde do meu pai se agravou e ele acabou morrendo no começo de 1992. Decidi, então, ficar em Osijek e tentar levar uma vida normal”, conta. A vida normal, no entanto, consistia em passar boa parte do tempo em porões, onde as famílias se reuniam a cada toque de sirenes que anunciavam um novo bombardeio. No governo croata, à época, havia quem defendesse a ideia de que as pessoas passassem a viver em aterros subterrâneos ou nos próprios porões das casas.

 

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A região sombreada em vermelho corresponde à antiga Iugoslávia. A marcação amarela é a cidade de Osijek

Lorna, a nora dos Dukaric, conta que seu avô de origem sérvia, Milan Uacl, também morava em Osijek durante a guerra. Mas, após se recusar a lutar ao lado das forças sérvias durante o conflito, Milan acabou sendo preso pelo exército de seu próprio país. Assim que conseguiu se livrar daquela situação, o avô de Lorna se aliou aos croatas e foi à frente de batalha contra a Sérvia. Aos 72 anos, ele – que é casado com uma croata – ainda está vivo para contar essa história.

Denis Dukaric, o filho mais velho de Vladmir e Mileta, mesmo tendo convivido parte de sua infância ouvindo o estampido dos tiros ou se escondendo das bombas que caiam sobre Osijek, não culpa o povo sérvio pelos ataques e pelas recordações que estão presentes até hoje. “Tenho amigos sérvios, e eles são gente de bem. Os grandes culpados por tudo aquilo são os líderes do país naquele tempo; não seu povo”, diz – para logo em seguida ser emendado pela mãe: “Eu perdoo o que eles fizeram. Numa guerra, acontecem coisas terríveis”, diz. É justamente por isso que os Dukaric esperam que os conflitos jamais se repitam. “Hoje, sabemos o que é uma guerra, e não queremos passar por isso de novo. Seria difícil resistir”, finaliza Mileta.

A retomada dos confrontos não pode ser totalmente descartada nesta região. É preciso que as autoridades mundiais se mantenham vigilantes a respeito dos movimentos na Bósnia e Herzegovina

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No entanto, para Milica Kostic – diretora jurídica do Humanitarian Law Center (HLC), com sede em Belgrado, capital da Sérvia -, um novo conflito não está descartado. Mas dificilmente isso vai acontecer na Croácia. Já não dá para dizer o mesmo sobre a Bósnia e Herzegovina. Por lá, 100 mil pessoas morreram entre 1992 e 1995. “A Bósnia segue, pós-guerra, uma divisão administrativa tripartite: bósnios (a maioria de origem muçulmana), sérvios e croatas – sendo que um ‘lado’ bloqueia a ação do outro quando seus interesses não são contemplados, criando um cenário delicado”, explica. Segundo ela, o ambiente propicia que antigas e novas diferenças venham à tona. “A retomada dos confrontos não pode ser totalmente descartada nesta região. É preciso que as autoridades mundiais representativas, e aqui falo de todas elas (ONU, União Europeia, OTAN), se mantenham vigilantes a respeito dos movimentos na Bósnia e Herzegovina”, enfatiza a advogada formada pela Universidade de Michigan (EUA).

 

Questão de opinião

O Humanitarian Law Center é uma organização não-governamental que dá suporte legal às famílias vítimas da guerra na década de 90 na antiga Iugoslávia. O HLC também serve como fonte para consulta de documentos, o que é bem útil para os tribunais que julgam os crimes ocorridos no período. Mas as decisões desses tribunais tem deixado a desejar. Nas últimas décadas, dezenas de líderes políticos, militares, soldados e milicianos sérvios, bósnios e croatas foram condenados por crimes de guerra pelo Tribunal Internacional de Crimes de Guerra da Antiga Iugoslávia (estabelecido pela ONU em maio de 1993). O problema é que uma boa parte das vítimas civis continua sem assistência. Até hoje, por exemplo, a Sérvia não reconhece os crimes de estupro ocorridos no período como passíveis de reparação.

As divergências ideológicas entre os países envolvidos no conflito deixam um clima permanente de tensão no ar. Até o nome do conflito tem versões diferentes, dependendo de quem responde. Para os croatas, que perderam 23 mil cidadãos na época, a guerra da independência ganhou o apelido de “homeland war”, como se o país tivesse pegando em armas para defender a própria casa. O diretor do Memorial de Documentação Croata da Guerra da Independência, Ante Nazor, classifica a guerra como uma “agressão cometida pelos sérvios”, com a desculpa de criar uma Grande Sérvia (nação que abraçaria a comunidade sérvia vivendo em cada uma das demais repúblicas constituintes da antiga Iugoslávia), nem que para isso fosse preciso invadir, e conquistar, os respectivos territórios e áreas ocupadas pelos descendentes sérvios ‘além fronteiras’.

Na Sérvia, a interpretação é outra. A população chama o conflito de guerra civil. Sob esse ponto de vista, o objetivo conflito era evitar a perseguição e o sofrimento dos sérvios que viviam na Croácia e na Bósnia. Como ambos os países passavam por trocas de governos e processos de independência, a Sérvia precisava defender seus filhos – o que justificaria os atos do governo. Havia também uma certa sensação de vingança e nacionalimo: ao longo da Segunda Guerra Mundial, croatas lutaram ao lado de nazistas e dizimaram as populações sérvias. Com esse argumento, o líder sérvio Milosevic conseguiria convencer qualquer um.

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