Barca para a eternidade
Em 1954, num poço perto da Grande Pirâmide, em Gizé, foi encontrada a barca do faraó Quéops. No ano passado, a descoberta de outra embarcação levantou novas e fascinantes pistas sobre o significado da vida além-túmulo para os egípcios
Maria Inês Zanchetta
Durante 48 horas seguidas podia-se ouvir o som da broca perfurando o bloco de rocha, perto da base da Grande Pirâmide de Quéops, em Gizé, a sudoeste do Cairo. Em seguida, uma câmara de vídeo desceu ao paço por uma abertura de 8 centímetros. Minutos depois, na superfície, o monitor registrava a imagem de uma densa pilha de painéis de madeira. Sem dúvida, tratava-se de uma barca —a rigor, a segunda barca do faraó Quéops, construída há 4 600 anos e descoberta por uma equipe internacional de pesquisadores, em outubro do ano passado. Desde 1954, quando a primeira barca de Quéops foi descoberta ali perto, já se presumia a existência de um segundo poço, onde também haveria uma barca. Trinta e três anos, no entanto, transcorreram até que, sob o patrocínio da fundação americana National Geographic Society, cientistas decidiram desvendar os mistérios do segundo poço. O lugar, junto com outras câmaras subterrâneas e a própria pirâmide, forma o conjunto que, segundo os antigos egípcios, seria a morada do faraó quando ressuscitasse. A intenção imediata dos pesquisadores, porém, mais do que revelar o interior do poço, era recolher amostras do ar ali contido. Não só para saber que atmosfera se respirava no Egito há quatro milênios, mas para descobrir que propriedades do ambiente ajudavam a conservar a madeira. Afinal, quando a primeira barca foi encontrada, estava em excelente estado de preservação. Mas não seria tarefa fácil impedir que o ar ao século XX contaminasse o de dentro. Para evitar que isso ocorresse, usou-se uma tecnologia especializada.
Finalmente, quando os trabalhos se iniciaram, logo veio a primeira decepção: à medida que a broca descia, a pressão permanecia a mesma, um forte indício de que o poço não estava hermeticamente selado, como supunham os cientistas. Mais tarde, o resultado das amostras de ar colhidas confirmou as primeiras suspeitas. Elas eram semelhantes ao ar do Cairo, com a agravante de que apresentavam duas vezes mais dióxido de carbono, em função do apodrecimento do material orgânico dentro do poço. Para desgosto dos cientistas, a câmara de vídeo registrou também marcas de água no teto e até um besouro vivo passeando pelas paredes. As imagens revelaram ainda que, ao contrário da primeira, a segunda barca não estava tão bem conservada, nem as madeiras se achavam tão cuidadosamente empilhadas—os egípcios costumavam desmontar as embarcações, empilhar as partes dentro das câmaras subterrâneas e depois lacrá-las. A deterioração evidente era mais um indício de que o lacre fora rompido. Mais tarde, os pesquisadores concluíram que a ruptura da argamassa tinha ido causada por uma máquina de misturar cimento, durante a construção, em 1960, do museu que hoje briga a primeira barca. Por sinal, ele se encontra fechado ao público porque a barca—que levou 26 anos para ser restaurada—apresenta sinais de deterioração.
De qualquer forma, a descoberta da segunda barca do faraó acabou levantando novas questões sobre o significado da vida além-túmulo para os antigos egípcios—um aspecto fundamental de sua religião. Os Textos das Pirâmides—uma coleção de inscrições encontradas em tumbas de períodos posteriores—são um valioso documento para se saber mais sobre essa questão, embora se refiram apenas à imortalidade do faraó. Os textos revelaram, por exemplo, que os egípcios tinham três concepções sobre a vida após a morte: numa, o faraó, depois de ressuscitar, vivia numa espécie de paraíso subterrâneo; segundo outra, os mortos navegavam pelo céu noturno e as estrelas eram lâmpadas atadas aos barcos que iluminavam os caminhos. Mas a concepção predominante era a de que os reis mortos acompanhavam a barca de Ra, o deus Sol, pelo céu.
Embora os Textos das Pirâmides datem do fim da V ao fim da VI dinastia (2345-2181 a.C.), os historiadores acham que podem servir como documento das crenças funerárias das dinastias anteriores, como a IV, da qual Quéops foi o segundo faraó. Já no Médio Império, meio milênio depois, a eternidade não era mais exclusividade do faraó e sim de todos os mortais, ou, pelo menos, daqueles ricos o suficiente para construir e manter as oferendas funerárias após a morte.
Réplicas de barcos esculpidos em tumbas plebéias atestam isso. Sabe-se que a Grande Pirâmide foi construída no reinado de Quéops—como o historiador grego Heródoto (século V a.C.) traduziu o nome egípcio Khufu — aproximadamente entre os anos 2551 a 2528 a.C. O que se conhece desse faraó é contado pelos objetos encontrados na tumba de sua mãe, a rainha Heteferes. A única representação que se tem dele é uma estatueta de marfim de 5 centímetros de altura que se encontra no Museu do Cairo. Dois mil anos depois da morte de Quéops, Heródoto escreveu que os egípcios o consideravam um tirano opressor. No entanto, os pesquisadores acham que isso é inverossímil, “porque nem sempre os detalhes que ele dá coincidem com as conclusões das pesquisas arqueológicas”, diz o professor Ciro Flamarion Cardoso, especialista em Egiptologia, da Universidade Federal Fluminense.
Embora as informações sobre a IV dinastia sejam poucas, é certo que o apogeu do poder real no Egito Antigo se deu nesse período quando a centralização era a marca registrada do sistema político e econômico. Prova disso seria a própria construção da Grande Pirâmide, que só teria sido possível graças à concentração de recursos administrados com grande eficiência. A função da pirâmide era servir de palácio ao rei morto, para o dia em que ele ressuscitasse, o que era tido como inevitável. Por isso, tudo o que ele usava normalmente era enterrado com seu corpo.
Os egípcios—que por sinal eram exímios armadores—possuíam embarcações variadas: de minúsculas jangadas para duas ou três pessoas, feitas provavelmente de papiro, até grandes embarcações de madeira para transporte de carga e passageiros. Sem falar nos navios de alto-mar destinados ao comércio com outros povos do Mediterrâneo. Apesar de tudo, não é simples explicar por que o faraó precisava de duas barcas ou até mais que duas em sua vida além-túmulo. “Embora só duas barcas tenham sido encontradas, havia, na verdade, cinco poços perto da pirâmide”, conta o professor Cardoso. De fato. os outros três poços foram descobertos no século XIX, no lado leste da Grande Pirâmide. Estavam abertos e cheios de entulho e areia. Mais tarde, fragmentos de madeira dourada e uma corda encontrados em um dos poços sugeriram que o lugar poderia ter sido abrigo de uma barca.
Para o professor Cardoso, “o mais lógico é supor que existissem cinco barcas. Por isso, a hipótese levantada por alguns de que as duas barcas encontradas seriam barcas solares— uma para acompanhar o deus Sol durante o dia e outra para fazer a viagem de volta à noite—é improvável. Se fosse assim, não eram necessárias cinco embarcações”. A hipótese mais provável é que se enterravam várias barcas porque, se por algum motivo algumas fossem destruídas, sempre sobraria uma para que o faraó não ficasse literalmente a pé. Esse espírito previdente dos egípcios explica também porque, além do corpo embalsamado, enterrava-se uma cabeça de pedra—caso a múmia fosse destruída por algum motivo, a cabeça seria uma alternativa para a ressurreição do morto.
Mas há ainda outra hipótese sobre as embarcações: teriam sido construídas para transportar o equipamento funerário pelo rio Nilo durante o enterro do faraó e depois seriam desmontadas e empilhadas nos poços. Como também existem cinco poços ao lado da pirâmide de Quéfren (filho de Quéops), outro próximo à pirâmide de Djedefre (outro filho de Quéops) e três junto às tumbas das rainhas, em Gizé, os historiadores tendem a achar que alguns deles foram planejados não para conter barcos de verdade, mas como abrigos simbólicos.
Até pouco tempo atrás, o que se sabia sobre as barcas vinha das pinturas e maquetes no interior das tumbas. Afinal, as embarcações tinham papel de destaque na vida dos antigos egípcios, os quais certamente queriam continuar cercados por elas—mesmo em representações—na eternidade. A perfuração do segundo poço no ano passado revelou alguns dados que vieram confirmar o que já se sabia sobre a IV dinastia. Um dos momentos mais emocionantes do trabalho aconteceu quando a câmara de vídeo focalizou o teto e mostrou sinais nos blocos de pedra. Eram hieroglifos que foram rapidamente reconhecidos. Um deles, um sinal st, era nada menos que a marca da equipe de operários que trabalhou no corte daquele bloco e depois o transportou até o local. As equipes que trabalhavam na construção eram organizadas de acordo com o lugar de onde vinham e cada uma tinha um nome.
Hoje, os pesquisadores acham provável que naquele período os construtores das pirâmides não fossem escravos, mas camponeses comuns que na época das cheias do Nilo ficavam impedidos de trabalhar na terra. Entre as imagens fotografadas pela câmara, uma delas mostrava um cartucho— espécie de moldura onde se escrevia em hieroglifos o nome do rei—, reconhecido como sendo Djedefre, que já aparecera nos blocos durante as escavações do primeiro poço. A descoberta reforçou a crença de que foi ele, e não seu irmão Quéfren, quem enterrou os barcos ao lado da tumba do pai.
As fotos e videotapes do interior do segundo poço foram estudados pelo americano Paul Lipke, renomeado restaurador de embarcações antigas, que fizera uma análise detalhada da primeira barca. Lipke concluiu que a segunda barca era mesmo irmã da primeira.
Junto com Cheryl Haldane, arqueóloga da Universidade do Texas, ele examinou o material e detectou partes e detalhes semelhantes entre as duas embarcações: quatro proas pontudas, dois painéis laterais da cabine que ficava no centro da barca e dois pedaços de prancha com os mesmos buracos em forma de “V” encontrados na primeira barca, entre outras coisas.
Eles constataram também que a segunda era um pouco menor que a primeira – esta composta de 1224 partes, com 43 metros de comprimento depois de reconstituída. De qualquer forma, Lipke e Haldane não conseguiram encontrar nenhum indício de sua finalidade. A única certeza sobre as barcas é que para os egípcios elas estavam ligadas à crença na ressurreição e foram construídas para um rei que depois de morto navegava ao lado do deus Sol.
Para saber mais:
(SUPER número 1, ano 2)
(SUPER número 6, ano 2)
(SUPER número 1, ano 3)
A magia das bonecas
(SUPER número 8, ano 6)
(SUPER número 8, ano 7)
O passado ao vivo e em cores
Há muitos anos a centenária revista americana National Geographic queria descobrir um modo de fotografar e estudar o interior de tumbas seladas, sem causar os danos tão comuns nas escavações tradicionais. Por isso, antes de empreender a expedição que tentaria desvendar o interior do segundo poço próximo à pirâmide de Quéops, a revista empreendeu um longo trabalho de pesquisa em colaboração com nada menos de 41 organizações. Não apenas uma empresa especializada foi contratada como também fotógrafos e especialistas quebraram a cabeça, a fim de descobrir um meio de documentar o interior do poço sem alterar as condições do ambiente.
O primeiro passo foi enviar para análise uma amostra do bloco de pedra que selava o primeiro poço. Os resultados mostraram que se tratava de uma pedra calcária porosa e que a argamassa usada pelos antigos egípcios como lacre era construída de pó de pedra calcária, gipsita e partículas de argila. Depois, por meio de um radar verificou-se que a espessura do bloco era de quase 2 metros. Essas eram as únicas informações que os cientistas tinham antes de iniciar o trabalho. Para resolver a questão de como fotografar o interior do poço, foi utilizado um sistema de vídeo por controle remoto, ao qual se acrescentou uma fonte de luz fria, isto é, dada por um feixe de fios de fibra ótica.
Assim, seria possível trabalhar sem que raios ultravioleta ou qualquer tipo de luz interferissem no ambiente. Para que a atmosfera de fora não contaminasse a de dentro, providenciou-se um bloqueador que vedava a entrada de ar. As amostras de ar seriam colhidas por um tubo de aço inoxidável introduzido através do bloqueador. O tubo bombearia o ar do poço para os frascos na superfície. Começou, então, a perfuração. Foi um trabalho penoso e paciente. Colhidas as amostras de ar, introduziu-se a câmara de vídeo enquanto na superfície um monitor transmitia as imagens. Uma câmara fotográfica de 35 mm acoplada ao equipamento permitia tirar fotos coloridas.
A última etapa foi a colocação de sensores para medir as condições no interior do poço: a temperatura era de 27 graus e a umidade relativa do ar, de 84 por cento. Ao fim das pesquisas, o paço foi lacrado, mas de maneira tal a facilitar o acesso em estudos posteriores. A utilização dessa tecnologia especializada veio revolucionar a pesquisa arqueológica. Doravante, antes de começar a escavar tumbas seladas, os pesquisadores poderão saber o que elas contêm, evitando assim destruir ou danificar artefatos e objetos preciosos.