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Brasil: o país cordial sanguinário

Não nos metemos para valer em guerras, muito menos em matanças generalizadas. Mas os números de vítimas em massacres por aqui não são nada animadores.

Por Felipe van Deursen Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
2 mar 2018, 18h59

Todas as dez nações mais populosas do mundo, incluindo a União Europeia, cometeram ou foram vítimas de alguma atrocidade em larga escala no século XX.

A China comunista matou milhões de cidadãos do país. A partição da Índia britânica, em 1947, resultou em três novos países, Índia, Paquistão e Bangladesh, com assassinatos em massa em todos eles. Os Estados Unidos incineraram cidades japonesas com a Segunda Guerra já ganha. A Indonésia eliminou comunistas e timorenses. A Nigéria teve uma sanguinária guerra civil. A Rússia sofreu horrores na mão dos nazistas e, no período soviético, também cometeu chacinas monstruosas nos gulags. O Japão foi vítima dos americanos, mas também tocou o terror na Ásia. A União Europeia é a evolução de um conjunto de países formado justamente por causa da Alemanha nazista. Por fim, quem falta? O Brasil.

Nosso amistoso e cordial país tem mais a ver com os açougueiros belicosos citados do que imaginamos. Se você ficou impressionado, tudo bem, isso também explica muita coisa sobre nós. Não nos metemos para valer em guerras, muito menos em matanças generalizadas. Então por quê? Pensou em crimes cometidos pela ditadura militar?

Errou – e isso também diz muito, porque você esqueceu a resposta óbvia: índios. Entre 1900 e 1957, o Brasil tirou do mapa 87 de suas 230 tribos sobreviventes. Oitocentos mil indígenas foram obliterados em pouco mais de meio século. Os 3 milhões de habitantes nativos que existiam em 1500 viraram 70 mil em 1957.

Em Auschwitz, 19 mil ciganos roma foram mortos. Mesmo assim, nos eventos em memória dos 70 anos da libertação do mais infame dos campos nazistas, nenhum deles foi convidado para representar seu povo. O índio brasileiro é o cigano europeu. O que mais nos destaca nesse grupo de nações muito populosas que vivenciaram grandes massacres talvez seja o fato de que o Brasil é o único em que uma política de eliminação dessas proporções não tenha deixado uma cicatriz profunda na consciência nacional.

Uma possível explicação está na maneira como isso aconteceu. Após a conquista e dominação total dos povos que viviam nas Américas, a Amazônia se tornou o último grande refúgio dos nativos. Com o avanço econômico do Brasil rumo ao Norte, sempre que se descobria algum recurso natural, pouco ou nada era feito para salvar os índios da região. Borracha, metais, gado, energia hidrelétrica eram(e muitas vezes são) considerados mais valiosos do que manter a floresta, e tudo o que vive nela, de pé.

Como foi um avanço razoavelmente silencioso, em um país continental, o massacre de índios não ficou marcado na memória brasileira como, por exemplo, ficou na americana. Aqui, botamos o aniquilamento indígena na conta da doença, progresso e afins.

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Nos EUA, houve um cenário mais definido de guerra entre brancos e indígenas, com batalhas e covardes massacres protagonizados por ambas as partes – com uma nítida vantagem para os brancos porque, afinal, eles venceram. Então, lá, apesar do extermínio ter sido em uma escala bem menor, existe uma noção mais ou menos clara de que esse foi um dos maiores pecados da história do país. Não que no Brasil não existam exemplos de fortes combates entre brancos e índios. Pelo contrário.

Ao longo do século XVII, as Províncias Unidas, a base da atual Holanda, se voltaram contra os extensos domínios dos rivais portugueses. Em tempos mercantilistas, a riqueza de um país só aumentava à custa de outro, então a solução para tudo era atacar as províncias alheias. Nesse embate no além-mar, que incluiu a conquista holandesa de partes do Nordeste brasileiro, o tráfico atlântico ficou comprometido. Para suprir essa lacuna de captura e transporte de escravos, entraram em cena os bandeirantes.

Esses homens desbravaram o interior e expandiram o território do Brasil à procura de riquezas e pessoas para escravizar. Se o Brasil é gigante, isso é obra deles. Mas, à medida que adentravam nos campos e matas, matavam índios. Em 1631, cerca de 12 mil guaranis e jesuítas amedrontados fugiram para não ser massacrados.

O episódio ficou conhecido como Grande Êxodo Paranaense. A violência na região da fronteira com o Paraguai foi tão grande que se dizia que os guaranis nutriam um ódio dos portugueses maior do que o que os espanhóis sentiam pelos mouros. Até hoje, entre paraguaios, banderante é sinônimo de bandoleiro.

A falta de responsabilização histórica em relação aos índios brasileiros permite que ainda aconteçam atrocidades sem que ninguém lhes dê a devida importância. Índio é assunto chato. Não elege ninguém, não gera manifestações solidárias nas redes sociais. Só damos atenção a eles quando algum estrangeiro famoso abraça a causa, seja Sting em 1988, seja a Alemanha campeã do mundo em 2014.

Entre 2008 e 2009, um guarani-kaiowá se matou a cada dez dias. A pressão sobre a terra deles é tão grande que líderes da etnia enviaram uma carta ao governo: “Pedimos, de uma vez por todas, para decretar nossa extinção/dizimação total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar nossos corpos”. O índio, longe da terra de seus ancestrais, é um morto-vivo. Não existe. Isso não é frescura, é cultura.

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A Terra Indígena Yanomami está ameaçada pelo retorno do garimpo na área. Apesar de ilegal, a extração de ouro é tão importante na economia de Roraima, onde fica parte da reserva indígena, que existe até uma estátua em homenagem a um garimpeiro no centro da capital, Boa Vista. A Fundação Nacional do Índio (Funai) teme que malocas inteiras possam ter sido dizimadas pela recente volta da caça ao ouro.

Mas esse massacre silencioso no Brasil não se restringe aos povos indígenas. Natal, Belém, Aracaju, Feira de Santana, Vitória da Conquista, Campos dos Goytacazes, Salvador, Maceió, Recife, João Pessoa, São Luís, Fortaleza, Teresina, Cuiabá, Goiânia, Macapá, Manaus, Vitória e Curitiba ficaram entre as 50 cidades mais violentas do mundo em 2016 (o ranking não engloba zonas de guerra).

A taxa de assassinatos no Brasil, que acompanhava os índices da Europa Ocidental em meados do século XX, disparou nos anos 1980 graças ao tráfico de drogas e à consequente guerra a elas. A cada dia, dez mulheres e um homossexual são mortos. O Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo. Sob o nosso formoso céu, risonho e límpido, houve 650 mil homicídios entre 2000 e 2012. É quase o dobro do número de mortos no Iraque de 1990 a 2003.

A polícia brasileira matou, em cinco anos, mais do que a hostil polícia americana matou em 30. Essas mortes têm alvo certo. Em São Paulo, por exemplo, mais da metade das pessoas executadas é negra. O Brasil vive um massacre, que não precisa ser silencioso. A negação de um assassinato em massa é o megafone na mão de quem sempre falou mais alto.

Este conteúdo foi originalmente publicado no livro 3 mil anos de guerra: como 30 séculos de sangue, suor e bala criaram o mundo em que você vive, do jornalista Felipe Van Deursen.

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