Cabalistas em fuga
A expulsão dos judeus da Espanha gerou uma profunda transformação na cabala, que ergueu sua nova sede em Safed, Israel. No exílio, os cabalistas inventaram uma nova teoria para o Big Bang e passaram a aguardar o retorno do Messias
Texto Eduardo Szklarz
Poucas pessoas viajaram tanto no século 13 quanto o místico judeu Abraham Abuláfia. Nascido na cidade espanhola de Zaragoza em 1240, o mestre cabalista passou a juventude perambulando pelos países da Europa e do Oriente Médio. Voltou para casa aos 31 anos, convencido de que a Espanha era seu lugar no mundo. Tinha uma razão forte para isso: foi nas encruzilhadas do país ibérico que o sábio desenvolveu uma técnica de meditação que, segundo ele, seria capaz de libertar a alma e proporcionar um encontro único com o Criador.
Foi também na Espanha do século 13 que o rabino Moisés de León publicou o Zohar, o Livro do Esplendor, uma das obras fundamentais do misticismo judaico. Assim como eles, Joseph ben Gikatilla, Moshe ben Nahman e outros sábios integraram o restrito clube dos “eleitos” e fizeram da Espanha o berço da cabala na Idade Média. Cidades como Guadalajara e Barcelona viraram a paisagem espiritual perfeita para a busca do divino. O principal centro era Gerona, um povoado ribeirinho da Catalunha, quase na fronteira com a França.
No século 15, porém, a idade do ouro da cabala espanhola chegou ao fim de forma trágica: com a expulsão dos judeus da península Ibérica. Os cabalistas então vagaram pelo mundo até encontrar refúgio na cidade de Safed, na Alta Galileia (atual Israel). Esses acontecimentos teriam profunda repercussão no misticismo judaico, com reflexos permanentes na forma como a cabala é entendida e praticada.
Das fogueiras à expulsão
A perseguição da Igreja contra os cabalistas (e judeus em geral) não aconteceu de repente. Ela começou a se intensificar a partir do 4º Concílio de Latrão: em 1215, a Igreja Católica determinou que os judeus não poderiam se casar com cristãos nem exercer funções públicas. Também obrigou-os a usar distintivos sobre as roupas, como a estrela amarela imposta pelo rei Luís 9º na França. Em meio ao crescente antissemitismo na Europa, a Inglaterra expulsou-os de seu território em 1290. A França fez o mesmo em 1306.
Na Espanha, a situação não era melhor. “Em 1391, uma onda de violentos ataques contra as comunidades judaicas varreu o país. Judeus de Sevilha, Córdoba, Toledo, Barcelona e outras cidades foram mortos, e suas propriedades incendiadas”, diz o historiador britânico John Edwards no livro Inquisition (“Inquisição”, sem tradução no Brasil). Para escapar da morte, milhares de judeus espanhóis recorreram ao batismo. Mas, mesmo assim, continuaram sendo objeto de repúdio e suspeitas.
Judeus não eram o único alvo da Inquisição medieval. Protestantes, cátaros, bruxas e outros “hereges” também estavam entre as vítimas da caçada religiosa, que espalhou o terror pela França, pela Itália e outros países europeus. Os Tribunais do Santo Ofício entraram em decadência com o Renascimento, no século 15, mas foram revigorados na península Ibérica após a boda da rainha Isabel, de Castela, com o rei Fernando, de Aragão. Os chamados “reis católicos” se casaram em 1469 e promoveram a unificação da Espanha, mas logo viram que precisavam do apoio da Igreja para consolidar seu poder. Além disso, tinham de encher os cofres para expulsar os mouros de Granada, o último bastião muçulmano na península. A solução? Reeditar a Inquisição, tendo como alvo principal os judeus e convertidos, e usar os lucros dos confiscos das vítimas para financiar a guerra contra os mouros.
Deu certo. Em 1478, o papa Xisto 4º autorizou a criação oficial do Tribunal da Inquisição na Espanha. Segundo o historiador medieval Andrés Bernáldez, mais de 700 convertidos seriam queimados e outros 5 mil presos até 1488. A morte na fogueira era o clímax do auto de fé, a representação terrena do Dia do Juízo. Os condenados iam em procissões carregando uma cruz, usando um chapéu em forma de cone (coroza) e vestidos com o sambenito, uma túnica com desenhos do demônio. Depois ardiam vivos na fogueira, sob os aplausos da multidão alvoroçada.
“Durante a Inquisição espanhola, os judeus tinham duas alternativas. Uma era praticar sua fé nos porões das casas, com as cortinas fechadas, arriscando a vida. A outra era emigrar”, diz o escritor americano-português Richard Zimler, autor do best seller O Último Cabalista de Lisboa. “Assim, a maioria dos judeus, incluindo os cabalistas, emigrou para lugares como Marrocos, Itália, Istambul, Salônica, norte da Europa e Palestina.”
O golpe final contra a cabala veio em 1492, quando os reis católicos expulsaram os judeus da Espanha. “Em Portugal, os judeus foram primeiro convertidos à força pelo rei dom Manuel, em 1497. E a partir daí emigraram”, diz Zimler. Para os poucos que ficaram na península Ibérica, escondidos como judeus secretos, era impossível praticar a cabala, já que os livros em hebraico haviam sido confiscados.
A nova capital da cabala
Cerca de 40 anos após a expulsão da Espanha, os cabalistas se reuniram para formar um novo núcleo, a 3 mil quilômetros de distância dali. Assim como a cabala antiga havia florescido em Gerona, a nova cabala também encontrou sua máxima expressão numa pequena cidade: Safed, em Israel. Foi nesse vilarejo encravado no cume de uma montanha, ao norte do lago Tiberíades, que as novas doutrinas místicas foram formuladas pela primeira vez.
Um dos expoentes da nova cabala foi Yossef Caro, autor do Schulchan Aruch (Código da Lei Judaica). Sua família foi expulsa da Espanha quando ele tinha 4 anos e se refugiou em Istambul, na Turquia, onde Caro começou os estudos rabínicos. Depois de vagar por Bulgária, Grécia e Egito, apontou sua bússola para Safed – uma antiga fortaleza do Reino Cruzado na Terra Santa. Diversos sábios tiveram histórias de vida semelhantes. E imprimiram suas experiências no novo misticismo.
“O êxodo da Espanha gerou uma profunda transformação na cabala. Uma catástrofe de tal dimensão, que desarraigou um dos principais ramos do povo judeu, não podia deixar de afetar quase toda a esfera de vida judaica”, diz o historiador Gershom Scholem no livro As Principais Correntes do Misticismo Judaico. Segundo o estudioso, a primeira transformação foi o ínicio da popularização do misticismo judeu. Na Espanha, a cabala havia sido praticada por uma elite de judeus mais estudiosos, os “eleitos”, que não faziam questão de divulgar seus conhecimentos. Esse hermetismo diminuiu em Safed. Diversas referências cabalísticas começaram a aparecer em contos e livros sobre ética, por exemplo. As lendas judaicas passaram a falar de reencarnação, outro provável fruto das noções cabalísticas.
Além de mais popular, a nova cabala também incorporou a ideia de exílio. “Não se tratava apenas do exílio da Espanha mas de Deus”, afirma Zimler: era como se os cabalistas tivessem sido obrigados a se “separar” da divindade. “Essa noção estava intimamente ligada a outra: a de que o exílio acabaria quando o Messias viesse à Terra.” Isso significava um baita cisma em relação à velha cabala. Afinal, Abuláfia e os antigos mestres recusavam qualquer tendência messiânica. “Eles concentravam seus esforços mentais não no fim messiânico do mundo, e sim no começo. Estavam mais interessados na Criação que na Redenção”, diz Scholem. Por meio da cabala, tinham a esperança de retornar à estrutura primordial do Universo. Ou seja: o propósito era voltar ao ponto de partida.
A expulsão da Espanha mudou esse pensamento. Em lugar de tentar retornar ao preâmbulo do mundo, os novos cabalistas tentaram apressar os capítulos finais. Afinal, eles acreditavam que, caso todos se comprometessem a viver em santidade, a recompensa seria a volta do Messias à Terra, e o retorno dos seres humanos à divindade. “Assim, se esforçavam para que a comunidade fosse a mais unida e forte possível”, diz o professor de espiritualidade judaica Daniel C. Matt, no livro O Essencial da Cabala.
O leão de Safed
Três palavras sintetizam a essência da nova cabala: morte, arrependimento e renascimento. Era preciso saborear o amargor do exílio ao máximo e se arrepender junto com toda a humanidade para reencontrar a luz divina. Assim, ao tentar acabar com o exílio por meio do misticismo, os cabalistas de Safed assumiram um papel quase político. Eles mesmos se encarregaram de conquistar a comunidade e prepará-la para a vinda do Messias no teatro da Redenção, Israel.
No século 16, um grande sábio se destacou na transmissão dessas ideias a cada lar judeu: Moisés Cordovero, fundador da Academia de Cabala de Safed. Ele descreveu e reinterpretou todo o legado da velha cabala, em particular o Zohar. Sua capacidade para escrever era enorme, comparável à de Tomás de Aquino. Quando o sábio morreu, em 1570, seus seguidores tinham uma obra imensa para basear seus estudos.
Mas o maior expoente da cabala de Safed foi o rabino Isaac Luria. Ao contrário de Cordovero, Luria não deixou quase nada escrito. Sua sabedoria, que ficaria conhecida como “cabala luriânica”, foi registrada pelos discípulos, sobretudo pelo rabino Chaim Vital. Embora tenha vivido pouco mais de dois anos em Safed, Luria exerceu tanto fascínio entre os colegas que foi adorado como um santo após sua morte, aos 38 anos. Não é à toa que ficou conhecido como Ha-Ari (“O Leão”), acrônimo de “o divino rabi Isaac”.
Luria trouxe uma ideia inovadora para explicar a criação do mundo: o tzimtzum, ou “contração” de Deus (veja quadro). E relacionou-a com o tikun, ou seja, a reparação do mundo por meio dos atos diários das pessoas. Mesmo que o povo de Safed não entendesse exatamente o que esses conceitos queriam dizer, de alguma forma eles passaram a fazer parte da vida de todos. Muitos se referiam ao tikun como um simples ato de generosidade. Somados, vários atos assim tornariam mais fácil o retorno do Messias.
Em meados do século 17, essas ideias haviam se disseminado por grande parte do mundo judaico. “A cabala luriânica também exerceu forte influência sobre o hassidismo, o movimento de renascimento da fé judaica que ocorreu durante o século 18 no Leste Europeu”, diz Matt. De lá para cá, rastros do misticismo de Safed têm sido encontrados na obra de diversos escritores, entre eles o checo Franz Kafka, o alemão Walter Benjamin e o argentino Jorge Luis Borges. Não fosse a expulsão dos judeus da Espanha, provavelmente nada disso teria acontecido. E hoje, quem diria, Luria não seria considerado o pai da cabala contemporânea.
O exílio de Deus
Os antigos cabalistas espanhóis diziam que o Universo havia começado quando Deus decidiu liberar seu poder criativo – e a partir daí emanou tudo o que existe. O rabino Isaac Luria, porém, ofereceu uma resposta diferente, criando o conceito de tzimtzum (“contração”).
Grosso modo, Deus foi compelido a dar espaço ao mundo, abandonando uma região dentro de sua infinidade. Ao se contrair, Ele deixou um lugar primordial para o mundo se desenvolver.
Portanto, segundo Luria, o primeiro ato de Deus não foi um passo para fora, mas para dentro. Ok, essa é uma ideia complexa, mas o ponto é: o tzimtzum foi como um exílio de Deus dentro dele mesmo. “No vácuo criado, Deus lançou um raio de luz que foi canalizado por vasos. Mas, à medida que a emanação progredia, alguns vasos não resistiram à força da luz e se estilhaçaram”, diz Daniel C. Matt. “A maior parte da luz voltou para sua fonte infinita, mas a restante caiu como centelhas – que ficaram presas na existência material. Portanto, a tarefa humana é libertar as centelhas para restituí-las à divindade. Esse processo de tikun (“reparo”) é cumprido por meio de uma vida de santidade.”
Na visão luriânica, as ações humanas favorecem ou impedem o tikun, apressando ou adiando a vinda do Messias. De certo modo, o Messias é moldado por nossa atividade ética e espiritual – o que não deixa de ser um paradoxo. Como disse o escritor Franz Kafka, “o Messias só virá quando não for mais necessário”.