Assine SUPER por R$2,00/semana
Continua após publicidade

Castelo sinistro

Fundada pelos portugueses para guardar ouro na África, ela virou depósito de escravos - pasme - depois de ser tomada por índios tapuias brasileiros a serviço da Holanda! A fortaleza de Elmina, em Gana, conta um pedaço da História do Brasil que pouca gente conhece.

Por André Toral
Atualizado em 31 out 2016, 18h17 - Publicado em 31 Maio 2000, 22h00
  • Seguir materia Seguindo materia
  • A pesada porta de ferro se abre com um baque. O brilho do sol ofusca os homens acorrentados que emergem, às dezenas, do calabouço escuro e fétido do castelo. São negros da tribo ashanti, capturados em guerra e vendidos aos donos da fortaleza. Atordoados pela luz, eles atravessam sem saber a chamada porta sem retorno. Dali serão embarcados nos porões do navio para uma torturante viagem de dois meses rumo a Salvador. Um quinto morrerá no caminho. Os que sobreviverem terão de trabalhar como escravos nas plantações de cana-de-açúcar da Bahia. Nunca mais verão sua África natal.

    Publicidade

    Essa cena se repetiu cotidianamente entre 1620 e 1850 na fortaleza Elmina, hoje em Gana. Erguida em 1482, foi a primeira grande construção européia na África tropical. Para várias tribos e numerosos reinos, como os ashantis e os akans, Elmina simboliza o holocausto provocado pelo tráfico negreiro. Para as nações européias que exploraram a costa africana, como Portugal, Holanda, Inglaterra, Dinamarca, Suécia e Alemanha, o lugar foi fonte de riquezas durante 400 anos. De lá saiu o ouro que financiou as navegações portuguesas no século XVI. E os escravos que fizeram prosperar as usinas de açúcar da colônia do Brasil. O nome sugestivo foi dado pelos lusos, que chegaram à costa de Gana em 1471, procurando ouro. Naquela época a riqueza de um país se media pela quantidade de metais preciosos que ele acumulasse. O ouro estava lá. E numa quantidade tão grande que o rei Afonso V (1432-1481), entusiasmado, batizou o lugar de A Mina. Como Portugal não queria concorrência, o sucessor de Afonso V, D. João II (1455-1495), construiu em 1482 o castelo de São Jorge da Mina, ou simplesmente Elmina, na foz do Rio Benya, para garantir militarmente o monopólio.

    Publicidade

    Realmente, foi uma mina. Por volta de 1550, calcula-se que os portugueses tirassem de lá 310 quilos de ouro por ano. Na época, o tráfico de escravos funcionava ao contrário: os lusos levavam quinquilharias e escravos negros de outras regiões, como a costa do Benin, para os reis locais em troca do metal. Em 1500, 10% das reservas mundiais de ouro provinham da região. Nenhum outro europeu pôs os pés ali até o começo do século XVII. O monopólio lusitano da Costa do Ouro só foi quebrado em 1637, quando uma frota holandesa tomou Elmina. A partir daí, o castelo mudou de função. De centro importador, virou pólo exportador de escravos. E, logo, a Europa inteira se engajou no comércio de gente.

     

    Publicidade

    Um negócio lucrativo e arriscado

    Continua após a publicidade

    Imagine o oeste da África no final do século XV: um grande ajuntamento de tribos primitivas numerosas, que agregavam nativos facilmente aprisionáveis por inimigos tecnologicamente muito superiores. O sonho de um escravagista europeu. Pois é. Só que os portugueses não encontraram nada disso na Costa do Ouro. O que havia ali eram reinos organizados, com grandes populações e agricultura desenvolvida, acostumados ao comércio, pois negociavam sal e ouro com árabes desde o século VII.

    Publicidade

    Esses povos, como os ashantis, os fantis e os akans, viviam em pé de guerra uns com os outros. É que, para eles, a riqueza se media principalmente pelo número de súditos do reino. A maneira mais prática de conseguir gente era atacar uma outra tribo e escravizar seus habitantes. Da noite para o dia, viajantes, nômades e populações inteiras de aldeias próximas às fronteiras de reinos e tribos viravam escravos. A pessoa era uma medida de valor.

    Os lusos não tinham concorrentes europeus, mas, em compensação, dependiam de humores políticos instáveis para poder negociar o ouro com sossego – além de abastecer seus fortes. Diplomáticos, em 1480 conseguiram aliar-se a um desses reinos, o dos akans, da bacia do Rio Volta, que lhes cedeu o terrreno para a construção de Elmina.

    Publicidade

     

    Publicidade

    Mas a população recebeu-os com um pé atrás. Era a primeira vez que estrangeiros se instalavam na terra. Os akans temiam que os forasteiros se intrometessem em seus assuntos internos. Por isso deixaram bem claro que a cabeça-de-praia era alugada, não vendida. Nos anos seguintes, muitas vezes os europeus foram ameaçados e tiveram que pagar tributos extras quando um reino do interior conquistava um da costa.

    Publicidade

    A perda da confiança dos reis poderia representar o fim de um forte e quilos de ouro a menos para a Coroa. A necessidade de preservar a política de boa vizinhança era tanta que fazia parte do regulamento de Elmina “manter a paz com os negros”. O que, é claro, incluía distribuir presentes. Em 1520, por exemplo, o monarca do reino de Wassa recebeu dos portugueses uma túnica árabe, um gorro vermelho e um… penico.

    Apesar do esforço, motins e ataques aconteceram várias vezes. Em 1693, os dinamarqueses do castelo de Accra foram postos para correr pelos belicosos akwamus. Em 1727, a feitoria portuguesa da Ajuda, hoje no Benin (o antigo Daomé), foi tomada pela tribo dos daomeanos. No ataque, comerciantes europeus foram seqüestrados e roubados. O diretor da feitoria teve de fugir carregado em uma rede. Escapou por pouco de ser pisoteado.

     

    Publicidade

    O castelo vira uma senzala

    A tranqüilidade dos portugueses na Costa do Ouro acabou no final do século XVI. De olho nos lucros fabulosos com o ouro africano, holandeses, ingleses e dinamarqueses começaram a construir seus próprios fortes. Para piorar, a descoberta do metal precioso pelos espanhóis no México e no Peru fez seu preço despencar na Europa.

    Além disso, por volta de 1620, a Mina portuguesa começou a secar. Sem ouro, os europeus mudaram o rumo do negócio. Em vez de levar escravos negros do Benin para trocar por metal com os chefes locais, passam a exportá-los para as cada vez mais lucrativas plantações de cana-de-açúcar, algodão e tabaco das colônias americanas, como o Brasil. Em poucos anos, todo o litoral africano pontilhou-se de feitorias européias.

    Os lucros eram tantos que até a Holanda – cuja religião protestante condenava o comércio de gente – resolveu aderir. “Para o escravismo não há diferenças religiosas”, conta à SUPER o jornalista e historiador paulista Jorge Caldeira. Inimigos de longa data dos portugueses, os holandeses tomaram o castelo de Elmina em 1637. Suas tropas eram formadas por mercenários europeus e tapuias, índios brasileiros de língua jê que haviam se aliado ao conde Maurício de Nassau durante a invasão holandesa de Pernambuco.

    Continua após a publicidade

    Para garantir o controle do tráfico de escravos, Nassau também tomou o forte português de Shama, em 1638, e outros entrepostos portugueses na África, São Tomé, Benguela e Luanda, em 1641. Sempre ajudado pelos índios. Era o fim de 160 anos de dominação portuguesa. Para negociar escravos em Elmina, traficantes brasileiros e lusos passaram a pagar imposto aos holandeses. Entre os séculos XVII e XVIII, o comércio de gente atingiu o pico: a média anual de escravos embarcados na Costa do Ouro variava entre 10 000 e 35 000 indivíduos, segundo o historiador ganês Kwesi Anquandah. Só no século XVIII, a região exportou cerca de 677 000 negros para as Américas, boa parte por Elmina. Para quem era contrário à escravidão por motivos religiosos, os holandeses estavam se saindo muito bem.

    O tráfico rendeu à Europa e suas colônias lucros gordos e mão-de-obra farta até 1850, quando a Inglaterra passou a adotar medidas duras para reprimi-lo – entre elas, capturar navios negreiros. Em 1872 o castelo de Elmina foi cedido pela Holanda aos britânicos. Em 1957, quando a República de Gana tornou-se independente, seu controle passou para os africanos. Em vez de escravos, o velho castelo hoje recebe estudantes barulhentos e meia dúzia de turistas. Bom descanso, Elmina.

    Algo mais

    Apesar de desconhecida pelos europeus até o século XV, a Costa do Ouro figura em textos árabes desde o século VII. A descrição mais detalhada do local foi feita em 1068, por um geógrafo cordobês chamado Abu Ubaid Abdala ibn Abd el-Aziz ibn Mohammed ibn Ayyub al-Bakri. Nome fácil de decorar. Os árabes negociavam com os africanos muito antes dos portugueses.

    Ontem a Serra Leoa, a guerra, a caça ao leão, o sono dormido à toa sob as tendas d·amplidão! Hoje… o porão negro, fundo, infecto, apertado, imundo, tendo a peste por jaguar…

    Continua após a publicidade

    (Castro Alves, O Navio Negreiro)

    Como na Idade Média

    O castelo foi projetado para defender os portugueses de ataques por terra e por mar.

    As muralhas fortificadas abrigavam até 100 canhões

     

    Publicidade

    A ilustração holandesa, de 1665, mostra fortaleza instalada entre o rio e o mar. Só um de seus lados podia ser atacado por terra

    Continua após a publicidade

    Ouro a preço de penico

    Comprar barato e vender caro. Essa era a cartada dos europeus para obter ouro, a única mercadoria que lhes interessava na África até o século XVI. Em 1480, um mercador comprou uma mulher e sua filha em Serra Leoa por uma bacia de barbeiro e três braceletes de cobre. Na vila de Shama vendeu-as por 13 pesos de ouro. Como cada peso equivalia a 6,2 gramas do metal, a mulher e a menina renderam algo em torno de 1 380 reais em ouro, pela cotação brasileira atual.

    Um negócio da China – quer dizer, da África. Cientes dos gostos dos nativos, os portugueses levavam ouro e davam escravos, roupas árabes e artigos de cobre e latão, como colares, panelas e “bacias de urinar”. Os penicos eram um sucesso absoluto no escambo. Só em Elmina mais de 270 000 foram trocados por ouro entre 1504 e 1582.

    Guerreiros inconformados

    Os escravos vindos da Costa do Ouro chegaram ao Brasil em maior número entre 1700 e 1775. Apesar de pertencerem a diversas etnias, receberam todos o nome genérico de “negros da mina” ou “minas” – como a mulher ao lado, retratada pelo pintor alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858) –, por terem sido embarcados no porto de Elmina. Eram prisioneiros de guerra, bem pouco dispostos a suportar calados a escravidão. Os minas participaram de todas as revoltas de escravos do século XVIII e da formação de inúmeros quilombos. Eram destemidos e pouco obedientes. Também tinham aversão a trabalhos pouco higiênicos. Um povo mina, os akans – em cujo território foi construído o castelo de Elmina –, protagonizou um caso raro de final feliz. Desembarcados no Suriname, fugiram para o interior da selva, onde reconstruíram sua antiga sociedade. Hoje são chamados de maroons e ainda vivem na Amazônia surinamesa.

    Publicidade
    Publicidade

    Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

    Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

    Domine o fato. Confie na fonte.

    10 grandes marcas em uma única assinatura digital

    MELHOR
    OFERTA

    Digital Completo
    Digital Completo

    Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

    a partir de R$ 2,00/semana*

    ou
    Impressa + Digital
    Impressa + Digital

    Receba Super impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

    a partir de R$ 12,90/mês

    *Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
    *Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

    PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
    Fechar

    Não vá embora sem ler essa matéria!
    Assista um anúncio e leia grátis
    CLIQUE AQUI.