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Conheça a Língua Geral, o idioma “esquecido” que fundou o Brasil

Durante metade da história do Brasil, mal se falava português por aqui. Colonizadores, indígenas, africanos e mestiços conversavam na chamada “língua geral” – uma variedade do tupi, que, com o tempo, foi fortemente influenciada pelos europeus. Apesar de dominar o dia a dia da Colônia por quase três séculos, ela acabou esquecida – mas pesquisadores e ativistas tentam conservar a sua última descendente, ainda falada no interior da Amazônia.

Por Bruno Carbinatto
15 nov 2024, 19h00

Por quase três séculos depois do desembarque de Cabral, o português foi uma língua quase alienígena no Brasil. Ao chegarem, os colonizadores se depararam com uma babel de famílias linguísticas indígenas: tupi, aruak, macro-jê, karib, ianomâmi… 

Em minoria numérica, seria impossível impor o português logo de cara, e essa ideia nem foi considerada. O jeito foi aprender as línguas locais e adotá-las na comunicação com os nativos. Mais especificamente, o tupi, uma das várias línguas do ramo linguístico tupi-faladas ao longo do litoral brasileiro – a primeira que a tropa lusófona conheceu.

Desse encontro, nasceu a chamada “língua geral”. Inicialmente, esse era apenas mais um nome tupi – mas, ao longo dos séculos, esse falar foi muito influenciado pelo português e serviu de língua franca entre os mais diversos personagens do Brasil Colônia. 

Era com ela que se comunicavam os comerciantes de pau-brasil, os exploradores em busca de produtos exóticos, os fazendeiros de cana-de-açúcar, os mineradores atrás de prata e ouro, os jesuítas enviados pela Igreja Católica, os bandeirantes, os indígenas das mais variadas etnias, os africanos escravizados – e, claro, os filhos mestiços de toda essa gente. Português? Só mesmo entre os altos oficiais da administração da Coroa e nos documentos enviados à metrópole.

Apesar de ter dominado o dia a dia por mais da metade da história do Brasil – e, em alguns lugares, só ter sido superada pelo português há míseros 150 anos –, a língua geral acabou virando nota de rodapé. Você com certeza já ouviu falar no tupi antigo, o idioma litorâneo aprendido pelo jesuíta José de Anchieta no início da colonização. Mas talvez esteja conhecendo só agora sua descendente, mesmo que ela tenha sido falada em boa parte dos acontecimentos narrados nas suas aulas de história.

Não só: há uma versão da língua geral que ainda existe, apesar de altamente ameaçada. Nas entranhas da Amazônia, para onde foi levada pelos colonizadores, essa fala é um dos últimos resquícios de um Brasil genuinamente tupi. Vamos entendê-la.

Ilustração de pessoas conversando em línguas diferentes.
(Carol D'Avila/Superinteressante)

Nascimento

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O conceito de língua geral num contexto de colonização surgiu primeiro na América hispânica. Em seu naco do Tratado de Tordesilhas, os espanhóis dizimaram grandes impérios que exerciam influência política e cultural sobre os outros povos da região: os incas nos Andes e os astecas no México. As línguas dessas civilizações prósperas – quechua e náuatle, respectivamente – tinham grande distribuição geográfica e já eram adotadas pelo governo central como língua franca com outros povos sob sua influência, e, por isso, foram adotadas também pelos conquistadores como línguas francas nas colônias.

Os portugueses não encontraram impérios em seu quinhão da América. Mas ao longo da costa brasileira, do Sul até o Pará, povos indígenas variados – potiguaras, tupinambás, caetés, carijós, tupiniquins e outros – falavam diferentes versões e dialetos de uma mesma língua, mutuamente inteligíveis entre si. Como a colonização começou pelo litoral, era natural que os colonizadores se familiarizassem com ela. 

Em seu primeiro livro sobre a gramática indígena, escrito por volta de 1560 e publicado em 1595, o padre José de Anchieta chamou-a apenas de “a língua mais usada na Costa do Brasil”. Depois, ela foi apelidada de “língua brasílica”. Hoje, usamos nomes como tupi antigo, tupi clássico ou tupi, simplesmente. 

O tupi foi amplamente registrado graças aos jesuítas, os católicos que vinham da Europa para catequizar os nativos. Por causa do trabalho deles, essa ainda é uma das línguas indígenas brasileiras mais conhecidas. Embora não exista mais fora do contexto acadêmico, sabemos mais sobre o tupi de 1500 do que sobre outros idiomas indígenas que têm falantes fluentes no Brasil até hoje (dá até para aprendê-lo na faculdade, tal qual o latim). 

Esse tupi “puro” não duraria muito tempo. Já no século 16 a língua começou a sofrer uma profunda metamorfose – porque a própria população mudava. A colonização brasileira foi um processo essencialmente masculino, pelo menos no começo: as poucas mulheres europeias que aqui chegavam vinham com seus maridos. A maioria dos homens solteiros, então, relacionava-se com as mulheres nativas.

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Seus filhos caboclos falavam a língua da mãe, e alguns  aprendiam o português em aulas ministradas pelos jesuítas, como se fosse um cursinho de inglês moderno.

Ilustração de um homem conversando com uma mulher com um bebê no colo.
(Carol D'Avila/Superinteressante)

Dessa mistura, nasceu o que os linguistas chamam hoje de língua geral paulista (LGP) na província de São Vicente. Por mais de dois séculos, ela foi a mais falada no que hoje é o estado de São Paulo e suas adjacências. 

A LGP ganhou alcunha de “língua dos bandeirantes”, e não à toa. Esses exploradores – eles próprios mestiços em sua maioria – falavam o idioma e foram os responsáveis por levá-lo ao interior quando iam em busca de ouro e prata e indígenas para escravizar. Com isso, a língua se espalhou por Minas Gerais, Paraná, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. É por causa dos bandeirantes que a região tem vários topônimos de origem tupi, mesmo em locais que os povos dessa etnia jamais habitaram.

Décadas depois, no século 17, uma outra língua surgiria de maneira semelhante no Norte do Brasil. Após expulsar os franceses que tentavam estabelecer sua própria colônia na ilha de São Luís, os portugueses começaram a explorar a região. Lá, nos atuais litorais do Maranhão e do Pará, eles tiveram contato com os tupinambás, que falavam sua própria variação do tupi. Desse encontro surgiu a segunda língua geral do Brasil, a amazônica (LGA), que também foi interiorizada e ensinada a outros povos nativos de famílias linguísticas distintas. (A distinção entre LGA e LGP são contemporâneas: na época, ambas eram chamadas apenas de “língua geral” por seus falantes).

Os primeiros africanos escravizados e alguns nativos de famílias linguísticas totalmente distintas do tupi-guarani, que eram chamados coletivamente de “tapuias”, também precisaram abandonar seus idiomas e aprender a língua geral, que era a única maneira de se comunicarem.

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Com exceção de Salvador, onde se concentrava a administração colonial, as línguas correntes do Brasil Colônia eram as línguas gerais. Em 1689, a Coroa chegou a oficializar a LGA como idioma do então estado do Maranhão e Grão-Pará, e a orientar que os padres ensinassem-no aos filhos dos colonos.

Ilustração de um homem conversando com uma mulher.
(Carol D'Avila/Superinteressante)

Transformação

Yepéwasú aῖtá papéra pitasúkasá upé.

Entendeu a frase acima? Esse é o começo do artigo 5º da Constituição Federal em Língua Geral Amazônica: “Todos são iguais perante a lei” (um pouco adaptado, já que a tradução literal seria algo como“iguais são eles na Constituição”). Como você deve ter notado, esse idioma não se parece nadinha com o português. 

De fato, com exceção de conceitos alheios à cultura local – como os santos católicos, por exemplo –, o vocabulário das línguas gerais é, basicamente, tupi. As influências europeias são mais discretas. Em linhas gerais, a língua geral é um tupi sem algumas peculiaridades que os portugueses não deram conta de aprender. 

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Na sintaxe, por exemplo, houve uma mudança radical: o tupi antigo usava a ordem sujeito+objeto+verbo, como “o menino o gato viu”. Na língua geral, adotou-se o modelo do português: “o menino viu o gato”.

Na fonética, por sua vez, a vogal do tupi antigo que hoje é retratada por um “y” sumiu. Esse som não existe em português: para reproduzi-lo, fale a vogal “i”, com em “irmão”; agora, sem mexer os lábios, tente fazer o som de “u”, como em “urso”. 

Essa vogal é típica das línguas tupi-guarani e existe também em outras línguas, mas gradualmente se perdeu porque os portugueses e indígenas não-tupis a substituíram por “i” ou “u”. Ypanema (“água ruim”) virou apenas Ipanema. Sy, que significava “mãe” em tupi antigo, é grafada como su na língua geral paulista. A letra “y” ainda é usada na escrita, mas não tem mais seu som original. 

Te’ô (Morte)

Costuma-se elencar um único culpado por você não aprender tupi na escola: Marquês de Pombal. Esse poderoso ministro de Portugal, inspirado nas ideias iluministas, promoveu uma série de reformas para aumentar a força do Estado português em detrimento da Igreja Católica. Um jeito de fazer isso era diminuir a influência dos jesuítas catequizadores na colônia, que usavam as línguas gerais no cotidiano.

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Em 1758, um decreto de Pombal proibiu as línguas gerais no Brasil e estabeleceu o português como única língua permitida. Isso é fato, mas não é a razão central pela qual idioma sumiu. “Em nenhum lugar no mundo uma lei muda a língua que as pessoas falam”, diz Wilmar D’Angelis, linguista e indigenista da Unicamp. O poder de fiscalização da Coroa era limitado a alguns aldeamentos e no ensino formal; no dia a dia das cidades e dos vilarejos, era impossível obrigar as pessoas a mudar a forma de falar.

Na verdade, quando o tal decreto foi publicado, o número de falantes da versão paulista da língua geral já estava em plena retração. Isso aconteceu por causa de mudanças demográficas avassaladoras: com a descoberta do ouro em Minas Gerais, em 1695, milhares e milhares de europeus, especialmente portugueses, migraram para cá em busca de riquezas – e eles não tinham interesse nenhum em aprender a língua local. Foi nessa época também que o tráfico de escravizados africanos se intensificou na Colônia.

Ilustração, em fundo vermelho, com um homem, representando Marquês de Pombal, cortando balões de fala com uma tesoura gigante.
(Carol D'Avila/Superinteressante)

Em 1700, a população do Brasil era de cerca de 300 mil pessoas. Em 1800, eram mais de 3 milhões – um aumento de dez vezes em só um século, abastecido basicamente por europeus e africanos escravizados. 

O português invadiu o sudeste do Brasil como uma tsunami, e a língua geral foi se afogando –  primeiro na costa e depois no interior, onde seus últimos falantes morreram na primeira metade do século 19. Hoje, há pouquíssimos registros escritos da língua geral paulista. O dialeto dito caipira, com seu “r” típico do interior paulista e região, foi influenciado pela LGP, mas carrega pouco dela na atualidade. 

No norte, porém, a Língua Geral Amazônica não só sobreviveu ao decreto como estava em plena expansão na era pombalina. Foi só um século mais tarde que essa fala também começou a rarear. Mas ela sobrevive até hoje.

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Tekobé (Viver)

Em 1831, Dom Pedro I renunciou ao cargo de imperador e voltou a Portugal. Seu filho, Dom Pedro II, tinha só cinco anos, e uma coalizão de políticos precisou assumir o país até que a criança tivesse idade suficiente para ocupar o cargo. 

Os nove anos que se seguiram foram marcados por grande instabilidade. Elites locais, facções políticas rivais e o povo pobre viram na regência um sinal de fraqueza política, e aproveitaram para organizar várias revoltas Brasil afora. Em 1837, por exemplo, estourou a Sabinada, uma rebelião que queria separar a Bahia do resto do país. No Rio Grande do Sul houve a Farroupilha; no Maranhão, a Balaiada. 

A província do Grão-Pará não ficou de fora: entre 1835 e 1840 ocorreu a Cabanagem, uma revolta sobretudo popular, contra a pobreza e a falta de autonomia da região. Seus líderes eram principalmente indígenas, negros e mestiços – e falavam a Língua Geral Amazônica.

A rebelião foi duramente reprimida; calcula-se que 40 mil foram mortos, um quinto da população da província. Esse foi o primeiro golpe do século 19 contra a LGA.

Até os anos 1870, porém, ela permaneceu a mais usada no Amazonas. Isso só mudou quando mais de 120 mil nordestinos falantes de português migraram para a floresta. Eles fugiam da Grande Seca, uma crise climática que zerou as chuvas no Nordeste por três anos, por consequência de um El Niño atipicamente forte. Calcula-se que até 500 mil pessoas possam ter morrido em decorrência dessa catástrofe – a maior da história do Brasil até os 700 mil mortos da pandemia de Covid-19. Nessa mesma época, começou o ciclo da extração de látex das seringueiras na Amazônia, que aumentou ainda mais a população de trabalhadores oriundos de outras regiões.

Houve só um pedacinho da Amazônia em que a língua geral resistiu às mudanças econômicas: o alto do Rio Negro, onde havia pouca borracha de qualidade, explica Thomas Finbow, pesquisador de história linguística da USP. Além disso, o trecho do rio entre Santa Izabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira é cheio de pedras, difícil de se navegar com grandes barcos – e, portanto, inadequado para escoar mercadoria. Nessa região do extremo Norte do Amazonas, o ciclo da borracha não pegou, e o português demorou a se fincar de vez.

Lá, a língua geral existe até hoje, mas com outro nome: nheengatu, “língua boa”, alcunha que ganhou no século 19. Ela é falada por cerca de sete mil pessoas no Brasil atual, e também tem falantes na Venezuela e Colômbia. É alguma coisa, mas é pouco: o “tupi moderno”, como também é conhecido, está em risco de extinção.

Gráfico, em fundo preto, com a linha do tempo das línguas faladas no Brasil de 1500 até 2000.
(Arte/Superinteressante)

A maioria de seus últimos falantes são dos povos Baré, Baniwa e Warekena. Com o detalhe de que nenhum desses povos é originalmente falante de tupi – eles são da família linguística aruaque, totalmente distinta. A LGA foi levada até eles pelos colonizadores, e, em alguns casos, essas etnias abandonaram e esqueceram suas próprias linguagens em prol da comunicação imposta. Os últimos falantes de tupi, então, não são tupis.

Por isso mesmo, a identificação do nheengatu como língua indígena é um pouco controversa: ela foi uma língua da colonização, imposta à força em muitos locais. Antes da chegada dos europeus, nunca houve um povo nheengatu. Nos últimos anos, porém, houve uma “re-indigenização” da língua do ponto de vista identitário, nas palavras de Finbow, e hoje ela é considerada uma marca cultural importante dos povos originários.

Há vários esforços de conservação do nheengatu – você consegue aprendê-lo pela internet, inclusive. Em São Gabriel da Cachoeira, município mais indígena do Brasil, a língua geral amazônica é uma das oficiais desde 2002. Em 2021, a Motorola adicionou o nheengatu como uma das opções de língua em seus smartphones.

Mesmo assim, é pouco para o que essa língua merece. Muito mais que o português, foi ela quem construiu o que chamamos de Brasil. Hoje, é um mero resquício de um passado conturbado, marcado pelo genocídio de povos nativos e do apagamento de culturas e línguas, mas que ainda assim precisa ser preservado.

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