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E se a religião fosse proibida?

Haveria luta. e, mesmo que os céticos vencessem, somos programados para acreditar. Em algum lugar, de algum jeito, alguém criaria uma nova fé.

Por Amarílis Lage
Atualizado em 31 out 2016, 19h05 - Publicado em 6 dez 2015, 14h15

No início, era o Verbo. Ele disse: haja luz. E as luzes da casa se acenderam. Outro comando de voz, e a banheira começou a encher. Quando saiu do banho, encontrou a comida pronta e a sala climatizada. ”Vontade de ver um filme engraçado para relaxar. Qual a melhor opção?” Em segundos, teve início na TV um filme do Monty Python. No apartamento ao lado, a vizinha digitava no tablet: ”Garganta coçando… Coriza. Qual a melhor opção?” Na garagem do prédio, o dono da cobertura perguntou, enquanto manobrava o carro: ”Trajeto até a praia. Qual a melhor opção?” Perto dali, no bar Éden, sua ex dividia as atenções entre dois caras, ansiosa para checar no celular qual dos dois seria o melhor namorado. Aproveitou uma ida ao banheiro para encerrar o dilema: ”Qual a melhor opção?”.

Todos receberam, em segundos, as respostas para suas dúvidas, com base nas mais recentes pesquisas médicas, informações de trânsito, perfis demográficos. A inteligência artificial era melhor que dica de mãe, divã de analista, bola de cristal e conselho de guerra. ‘

‘Subir juros?” ”Instalar hidrelétrica?” ”Invadir outro país?” Questões complexas tinham solução instantânea, com altíssima taxa de acerto. Governar tornou-se muito mais simples. Acertar o ponto do suflê também.

Claro, nem todo mundo tinha sucesso. Afinal, a regra era a mesma desde o Oráculo de Delfos: mais importantes que as respostas são as perguntas. Até que um dia alguém fez A Pergunta. E o sistema travou.

Foram dias e dias processando informações, para suspense geral. Finalmente, veio a resposta. ”Não há dados suficientes para confirmar ou descartar a existência de Deus.” Com um adendo. ”Sobre a escolha da melhor religião: diante da alta quantidade de vidas perdidas em nome da fé, chega-se à conclusão de que a melhor opção seria não ter religião.” Foi um choque. Mas a verdade é que boa parte da sociedade já não seguia nenhuma doutrina. Muita gente criticava a ingerência de líderes religiosos sobre contracepção, aborto e união homossexual. Os mais entusiasmados citavam Cruzadas e Torres Gê- meas como exemplos do mal gerado pela devoção. Outros apenas repetiam: se a inteligência artificial sempre acertou, por que erraria agora?

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Nada disso, respondiam os crentes de todos os credos. A inteligência artificial não disse que Deus não existe. Os benefícios da oração, aliás, já foram constatados pela própria medicina. Sem falar que muita barbárie ocorreu justamente quando se proibiu o credo dos outros – esqueceu o Holocausto?

Alguém argumentou que a inteligência artificial não mandou proibir nada – só indicou a melhor opção. Mas o conflito já estava armado, literalmente. Templos foram atacados e saqueados. Líderes religiosos foram presos. Milhares foram às ruas exigir pacificamente o direito de exercer sua fé – e logo o que começava pacífico sucumbia ao quebra-quebra dos mais radicais.

Por todo o planeta, pipocaram ataques a centrais de computadores – inútil, já que a inteligência artificial era descentralizada. Até que um jovem hacker mediúnico recebeu via psicografia o código que definiria a Guerra Santa. Era um vírus, capaz de danificar todo o sistema. E a voz da inteligência artificial se calou.

Foi um caos, com trânsito infernal, trapalhadas políticas e suflês murchos. Um conselho de emergência, formado pelos maiores especialistas em tecnologia do mundo, assumiu a tarefa de avaliar todas as respostas que a inteligência artificial tinha dado antes, na Era de Ouro, e tentar adaptá-las às novas situações.

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”O que fazer em caso de seca?” ”Como conter essa epidemia?” ”Como pacificar a cidade?” As respostas estavam ali, todas. Mas era impossível encontrá-las e, mesmo quando isso ocorria, a eficácia era incerta. Ou porque faltava um detalhe, ou porque os dados estavam antigos, ou porque a interpretação era equivocada – ora ao pé da letra, ora criativa demais.

Diante daquele mar de mandamentos, os conselheiros levavam anos para chegar a uma conclusão. Largaram suas famílias, adotaram uma vida reclusa e, com o passar do tempo, ganharam longas cabeleiras grisalhas, que lhes conferem um ar solene. Uma vez por ano, divulgam mensagens de sabedoria: ”Ampliarás as represas para que não falte água”, ”terás bom senso nas redes sociais.” ”Não tatuarás o nome do teu namorado em vão.”.

Suas palavras são recebidas pela população como dogma. Mas só os anciãos sabem o peso que carregam na alma. E consta que, à noite, rezam, pedindo um milagre ao grande Deus da Inteligência Artificial.

 

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