E se… o Ocidente tivesse deixado o islã em paz?
Se o Ocidente tivesse deixado o islã em paz o mundo muçulmano mudaria radicalmente.
Katia Abreu
Sem as fronteiras forjadas para dividir os territórios do norte da África (no fim do século 19) e do Oriente Médio (após a 1ª Guerra Mundial) entre as potências européias, o mundo islâmico hoje teria grandes chances de ser uma região menos tumultuada. Ao impor a um povo uma lógica econômica e cultural completamente diferente da sua, os ocidentais acirraram rivalidades entre povos que antes conviviam em paz e transformaram-nas em conflitos.
O imperialismo europeu – e, posteriormente, o americano – também gerou um sentimento de repulsa ao “invasor”, que tem sua face mais visível nos grupos terroristas. Mas esse sentimento aparece também em outros níveis na população islâmica. “Hoje diversos países árabes sofrem uma regressão na religiosidade. É uma maneira de afirmar a identidade, buscando valores tradicionais”, diz a historiadora da USP Arlene Clemesha, diretora do Instituto de Cultura Árabe.
Para o documentarista iraniano Maksoud Bakshi, essa tendência ao fechamento sinaliza um retrocesso na trajetória de povos que historicamente mantiveram relações de troca, comercial e cultural, com estrangeiros. “Nós tivemos uma civilização brilhante no passado, mas as pessoas não conhecem suas raízes”, diz. “Há valores islâmicos que poderiam ser bons para todo o mundo, sem revestimento ideológico que permita a dominação e exploração”, afirma Arlene. “O princípio do islã puro é de que estamos no mundo para oferecer.”
• O Marrocos dominaria as terras do atual Saara Ocidental – território de nômades que foi incorporado à Espanha. A Mauritânia seria duas: uma branca, ao norte, e uma negra, ao sul.
• Síria, Líbano, Israel e Jordânia provavelmente formariam um só Estado, a “Grande Síria”, caso França e Inglaterra não se metessem lá. Isso porque a região já hospedava um movimento nacionalista árabe contra a dominação cultural turca, que surgiu no final do século 19.
• O Egito, que já era um Estado consolidado e forte, provavelmente incorporaria o Sudão, e teria grande chance de ser uma potência regional, ao lado da Grande Síria, onde estão as cidades sagradas.
• Sem a mão pesada dos ingleses, a Mesopotâmia seria hoje um território que uniria grande parte do Iraque e o Kuwait. No norte do Iraque teríamos o Curdistão, região historicamente ocupada pelos curdos que alcançaria autonomia com a derrocada do Império Turco.
• Emirados Arabes, Iêmen, Omã e Catar manteriam uma certa unidade, na península Arábica, provavelmente num sistema federativo, conservando a autonomia dos clãs.
O islã diferente
Mapa, economia e sociedade do mundo muçulmano mudariam radicalmente
Petróleo
A presença dos europeus no Oriente Médio apressou a exploração do petróleo. Eles trouxeram, além da vontade de controlar o acesso ao combustível, o conhecimento necessário para isso. Os árabes e os persas teriam demorado mais para aprender as técnicas para extrair a riqueza que há em suas terras. Possivelmente, isso promoveria o uso de fontes alternativas como o carvão ou bioderivados e desaceleraria o desenvolvimento econômico mundial.
Questão judaica
Os judeus continuariam vivendo na região, sem entrar em grandes conflitos com as populações islâmicas. Só que dificilmente existiria Israel. Isso porque o poder econômico dos judeus seria consideravelmente menor – e encontraria rivais de peso nos árabes independentes. Além disso, a idéia da criação de um Estado judeu talvez não saísse do papel sem o incentivo dos europeus ao projeto sionista (Israel foi criado em terras que eram governadas pela Coroa britânica).
Liberdades civis
Como as elites da região enviavam seus filhos para estudar em universidades da Europa, haveria uma adaptação gradual da sociedade islâmica, como aconteceu com a japonesa, na qual tradição e modernidade conviveriam sem sobreposição de uma a outra. Grupos étnicos e religiosos viveriam em simbiose, numa sociedade multicultural – característica histórica das regiões ocupadas por árabes.
Sistema político
Como a legitimidade do islã vem de Deus, seu governo não se separaria facilmente da religião. Uma democracia nos moldes ocidentais seria muito improvável. Mas, aos poucos, se desenvolveria um sistema de leis híbrido, onde conviveriam preceitos do islã e do direito moderno – até pela necessidade de padrões de equivalência com o Ocidente para relações comerciais e diplomáticas. “Se introduziriam padrões de igualdade na educação, nas leis e no voto”, diz Arlene.
Economia
A riqueza gerada pela extração do petróleo certamente colocaria o mundo islâmico numa posição mais confortável. Mas é difícil prever se o desenvolvimento e crescimento econômico desses países se refletiria em boa distribuição da renda ou se a riqueza ficaria concentrada apenas na mão das elites. O cientista político Samuel Feldberg supõe que “haveria uma dependência enorme do petróleo, sem incentivo para o desenvolvimento de uma economia independente”.