Este homem ainda vai ganhar o Nobel
Não há hoje um brasileiro tão cotado para receber o mais prestigiado prêmio da ciência quanto Miguel Nicolelis, um dos mais revolucionários pesquisadores do mundo
Texto Ronaldo Bressane
Preste atenção no tiozinho careca das fotos. Um palmeirense típico, diria você? Daqueles que não podem ver um corintiano ameaçado de rebaixamento sem soltar um sarcasmo? Do tipo que passou anos na fila sem sentir cheiro de título? Do naipe que sabe de cor o escrete da Academia dos anos 1960/70 ou do Ataque dos 102 Gols de 1996? Um descendente de italianos, apaixonado, exagerado, que esnoba as jogadas geniais de Zidane vendo nele tão-só um Ademir da Guia em dia ruim? Mais um torcedor alviverde – ou melhor, mais um brasileiro louco por futebol? Sim, Miguel Nicolelis é isso aí, um homem simples. Mas o que faz dele também um homem extraordinário é o fato de tratar seu trabalho com as mesmas metáforas futebolísticas de um brasileiro comum: a mesma paixão que sente por seu Palmeiras impulsiona uma carreira científica entre as mais brilhantes do Brasil – e, em sua área, do mundo.
Miguel Angelo Laporta Nicolelis, paulistano de 45 anos, chefia um dos mais avançados laboratórios de neurociência do planeta, o da Universidade Duke, na Carolina do Norte, EUA. Lá, dá aulas de neurobiologia e engenharia biomédica e co-dirige o Centro de Neuroengenharia, onde estão os famosos monkey lab e rat lab em que cobaias batizadas com nomes de personagens de ópera tornam-se protagonistas de experiências que podem mudar o mundo. Seu nome figura em uma lista das 20 personalidades mais importantes para o avanço da tecnologia no mundo elaborada pela Scientific American – em sua especialidade, a neurobiologia, está em 1º lugar. Liderou o grupo de pesquisadores que registrou pioneiramente a atividade simultânea de 700 neurônios e ficou famoso por fazer com que macacos controlassem com o cérebro braços robóticos. Hoje, comanda estudos revolucionários – como os que sugerem uma ligação entre males tão diversos quanto Parkinson e esquizofrenia. Ou teorias quase abstratas, como o novo princípio da fisiologia em que nenhum neurônio é especializado o suficiente para fazer diferença sozinho. Ou estudos radicais que apontam como é a gênese do sentimento de fome e de saciedade no cérebro.
São descobertas cujos resultados podem ser tão impactantes que o nome de Nicolelis é freqüentemente sussurrado em corredores acadêmicos como possível Nobel – o primeiro a redimir uma nação em que um terço da população é de analfabetos funcionais. Nada, porém, que deixe o cientista levitando como o placar de 4 a 2 que o Verdão aplicou no Paraná na noite em que as fotos acima foram clicadas. Por outro lado, seu sonho de consumo não é o distante título mundial do Palmeiras, e sim uma meta muito mais inacessível. Tão difícil, diria ele, quanto fazer um tetraplégico jogar bola. E Nicolelis não está longe de marcar esse gol.
O inventor
Neuroprótese. O termo parece esquisito, mas é feijão-com-arroz para Nicolelis. Afinal, ele foi um dos principais desenvolvedores da coisa – nada mais que uma interface cérebro-máquina –, uma espécie de “ligação direta” entre os neurônios e os nervos, sem precisar passar pela medula. Por isso seu trabalho é um marco na ciência: no famoso monkey lab da Duke, a macaca Aurora moveu um braço robótico apenas com a “força do pensamento”. O movimento foi possível com o desenvolvimento de um chip que capta sinais cerebrais e os interpreta segundo modelos matemáticos criados pelos pesquisadores do laboratório de Nicolelis. Ou seja: a longo prazo, o chip pode ser desenvolvido para uma neuroprótese que possibilite, por exemplo, a um tetraplégico, que sofreu uma lesão severa na medula, voltar a caminhar. Entendeu o tamanho da coisa?
Apesar de já ter iniciado testes em seres humanos, Nicolelis alerta que ainda faltam tempo e estudos para chegar ao ciborgue. “Quando anunciamos nossos primeiros resultados com macacos, muitas empresas nos procuraram, mas achamos que um acordo comercial é prematuro.” Por dar um passo maior que a perna (biônica), recentemente a revista Nature cometeu uma gafe. Deu 19 páginas para um experimento da empresa americana Cyberkinetics, em que um microchip implantado no cérebro de um tetraplégico de 25 anos conectava seu cérebro a um elaborado aparato informático, possibilitando-lhe proezas como ler e-mails sem nenhum tipo de conexão externa. Nicolelis aponta problemas sérios na experiência. “Mais da metade dos eletrodos deixou de funcionar depois de 6 meses de implantação. Esses eletrodos de ponta fina e rígida tendem a destruir o tecido e a causar reações inflamatórias. Implantar chips é fazer uso de uma tecnologia inadequada e perigosa. Poderiam ter feito coisas menos invasivas, como usar a superfície do couro cabeludo, movimentos do globo ocular ou sensores na língua”, ensina. Também seria melhor, diz, se várias regiões do cérebro fossem “lidas” ao mesmo tempo, porque isso garantiria um sinal mais confiável. “A Cyberkinetics mal reproduziu coisas feitas em macacos!”, afirma. “Mas foi bom terem publicado esses dados: mostraram que, eticamente, esse não é o caminho a seguir”, explica.
“Esse experimento coloca em risco a saúde de pacientes, é oportunista, foi feito como entretenimento e não acrescenta nada ao que já sabemos. A Nature ficou exposta”, detona Nicolelis, ciente do gigantesco salto que a ciência pode dar ao transferir para o campo concreto suas descobertas, mas também sabedor de que, mais que um salto, seu estudo pode virar uma mina de ouro. “É como mandar um homem à Lua. Não adianta só chegar e pousar. O mais importante da viagem é garantir a volta.” Essa viagem pode ser feita, com sucesso, aqui no Brasil. A Duke acaba de fechar uma parceria com o Hospital Sírio-Libanês, que está montando um laboratório a ser chefiado por Nicolelis e receberá equipamentos doados. A previsão é de que a cirurgia pioneira que permitirá a conexão entre o cérebro de um paciente e um braço robótico seja feita por uma equipe comandada pelo cientista – já em 2007.
Por enquanto, nessa área, Nicolelis promete um experimento com ares de ficção científica: mover um macaco nos EUA por meio de um robô no Japão. “Você está aqui, nesta sala, e um robô na superfície de Marte recolhe sinais de textura, temperatura, umidade. Daqui, mando sinais ao robô, e ele me envia sinais de volta – assim, você poderá experimentar como é andar em Marte. Vamos demonstrar isso em um ano: um macaco na Duke vai mandar sinais elétricos para um supercomputador na Suíça, esses sinais serão reenviados para Kyoto, no Japão, e farão um robô emular os mesmos movimentos do macaco. O robô, por sua vez, poderá enviar outros sinais ao macaco, que terá a sensação de caminhar na mesma superfíce em que o robô está andando.” A realidade virtual nunca esteve tão próxima da realidade.
As descobertas
Paralelamente ao desenvolvimento da neuroprótese, Nicolelis coordena projetos e cria teorias. Uma delas, no campo da neurofisiologia, é a de que um neurônio nada significa do ponto de vista funcional. “Se você perder um neurônio, o cérebro não está nem aí”, explica. “Nem mesmo milhares de neurônios. Porque ele usa coleções de células, atuando coordenadas, para exercer comportamentos.” Outro estudo de impacto tem a ver com saciedade. “Conseguimos determinar quando um camundongo vai ficar com fome e quando vai parar de ter vontade de comer, segundos antes de isso acontecer. Há uma assinatura elétrica no cérebro para a saciedade.” Ao descobrir os mecanismos elétricos para determinar a saciedade, pode-se, por exemplo, controlar a obesidade.
O estudo mais fascinante é o que conjuga sono, esquizofrenia e mal de Parkinson. Esse é ninado com carinho especial – o avô do cientista morreu por complicações ligadas ao mal. “Temos um camundongo transgênico que fica parkinsoniano todo dia. Mas à noite a gente trata, e ele volta ao normal…” Como é que é? “O Parkinson depende de um neurotransmissor chamado dopamina: se você o perde, começa a ficar paralisado. Nos humanos portadores do mal, esse é um problema crônico. Conseguimos fazer o camundongo ficar com zero dopamina, tornando-o imediatamente parkinsoniano, e vimos na hora um processo que leva anos. Assim, descobrimos as bases neurais da instalação do Parkinson, algo que ninguém tinha visto, o que sugere um novo tratamento: sabendo como começa, descobriremos como pará-lo. O que não haviam observado é a ligação entre Parkinson e esquizofrenia…”, diz Nicolelis, cruzando a bola na área a espera de alguém para cabecear – sua costumeira técnica de suspense para prender a atenção do ouvinte.
O próprio Nicolelis assume o papel de centroavante: “Há um estudo que demonstra: Parkinson está neste canto, esquizofrenia está nesse outro – e, no meio, está o sono. Uma doença psiquiátrica e outra, neurológica, cada uma num extremo, ligadas a um contínuo. Parkinson é perda de dopamina; esquizofrenia é seu excesso. Notamos a conexão analisando o ciclo de vigília-sono de camundongos”, conta. A explicação é simples. Quando sonha, o camundongo esquizofrênico, que tem mais dopamina no corpo do que o normal, demonstra uma atividade cerebral muito parecida com a registrada quando ele está acordado. Isso indica que o rato está alucinando: ele grita, por exemplo. É como se ele estivesse atuando durante o sono – e, na definição clássica freudiana, o esquizofrênico não consegue divisar a linha entre realidade e sonho. Já no outro extremo, o parkinsoniano não dorme, pois a ausência de dopamina o impede de dormir.
“A beleza disso é que parkinsonianos terminais se queixam de insônia. Aí achamos uma ligação absolutamente inédita. Foi um choque!”, entusiasma-se. E um choque não só para sua equipe. Afinal, a fronteira entre neurologia e psiquiatria costuma ser fechada e, embora pareçam essenciais à ciência, esses experimentos têm críticos no mundo das pesquisas. “Não ser um especialista é filosofia combatida na América. Tento, ao contrário, ser especialista em algumas coisas, mas manter uma visão global do cérebro. Porque é aí que você começa a fazer conexões inesperadas entre as coisas.” É o tipo de filosofia que Nicolelis quer implantar no Instituto Internacional de Neurociência de Natal (veja quadro na página 73), empreitada que tem um tanto de ciência e outro tanto de ativismo sociopolítico – algo, aliás, capaz de mexer tanto com os brios de Nicolelis quanto uma ópera desafinada ou uma derrota palestrina.
O Nobel
Quando se aborda o tema política com Nicolelis, sente-se que é algo ainda mais apaixonante do que o Palmeiras. Aí, sua voz se inflama e se acelera, e tem-se a impressão de que, apesar do pequeno porte, ele cresce: “Precisamos ter a decisão política de jogar dinheiro como água na educação, na pesquisa tecnológica, investir maciçamente em talento e liberdade. O que esperar de um país que destina menos de 1% de seu orçamento para a educação?”, indigna-se. Sim, política corre no sangue desse nada frio cientista. Nicolelis nunca foi filiado a partidos, mas, ligado à esquerda na USP, engajou-se em projetos como a Medsports. “O clube da faculdade era só para aquela elite da medicina da USP. E eu, com uma grande amiga, a Neiva Brandão, que também me ajuda no projeto esportivo lá de Natal, tínhamos essa idéia de criar uma escola de esportes infantil, a Medsports, que hoje tem 25 anos e é uma das melhores escolas de esportes de São Paulo.” Nicolelis chegou a participar da campanhas pelas Diretas-Já, em 1984. A ironia é que, “exilado” nos EUA desde 1988, jamais votou para presidente.
Hoje, vê-se fazendo política de modo nada convencional. “Sinto cada vez mais que o Estado se dissocia da realidade cotidiana das pessoas. Por isso proponho o NatalNeuro como ponta-de-lança de uma nova forma de agir politicamente: ao largo do Estado.” Pela atuação como cientista e empreendedor, Nicolelis vem sendo apontado para faturar um fetiche de brasileiros, maior que a Libertadores, a Copa Toyota ou a Copa do Mundo: o Prêmio Nobel. Isso não pode fazer de Nicolelis uma espécie de salvador da pátria? Aí, finalmente irritamos o fino professor. “Não entendo essa fixação com o Nobel! Acha que, no instante em que Santos Dumont, o primeiro homem a voar, levantou o avião, ele estava preocupado em ganhar uma medalhinha dos suecos? Se eu fizer um paraplégico andar, e essa tecnologia se espalhar pelo mundo e possibilitar a milhões de pessoas voltar a andar, perto disso o que pode significar um Nobel?”
Então, a neuroprótese em si é seu Nobel? “Trazer o impossível para o plano concreto é o prêmio. Se o NatalNeuro se transformar em um pólo de ciência e educação modelo para o país e por meio dele eu demostrar que a ciência pode gerar empregos e diminuir a taxa de mortalidade infantil, aí vou deixar algo para filhos e netos maior que qualquer Nobel… Isso, sim, seria um golaço!” Nicolelis sorri, e, discreto, olha o relógio. Três horas de papo, o cientista precisa ir: mal chegou a São Paulo, já tem outro vôo, no dia seguinte cedinho. E ele tem pressa de voar.
O sonho
Saber como funciona o cérebro durante os sonhos. Controlar funções do corpo via web. Ou, ainda, decodificar a língua falada pelos macacos. Esses são alguns estudos que serão desenvolvidos no NatalNeuro, instituto criado na periferia de Natal (RN). Nicolelis é fundador, coordenador e maior responsável por atrair a verba para o instituto – que prevê um aporte inicial de US$ 35 milhões. A pretensão, vista com desdém por muita gente nos meios acadêmicos brasileiros, é articular os principais neurocientistas do mundo para criar projetos de ponta em uma das áreas mais atrasadas do país. “Não me interessa criar um instituto em São Paulo. Imagino o NatalNeuro como um transformador da comunidade. Há crianças ali com cicatrizes causadas por mordidas de rato. Como vamos lidar com camundongos em testes ultra-sofisticados sabendo de fatos assim?” A idéia é educar as crianças para que possam, em alguns anos, trabalhar no instituto. Para iniciar os trabalhos, foram obtidos R$ 12 milhões – metade, de fontes públicas. A lista de colaboradores inclui parceiros estrangeiros, como a Universidade Duke e a Sociedade Max-Planck, da Alemanha. Mas a maioria dos recursos que chegam é privada. No terreno de 100 hectares onde será instalado o campus do cérebro as atividades piloto já começaram – após uma kafkiana epopéia burocrática para conseguir isenção de impostos a equipamentos doados. “Dizem que cientista tem de ter casca grossa para enfrentar as frustrações naturais das pesquisas. Mas, para autenticar 63 firmas em um dia, coisa que precisei fazer para liberar equipamentos doados – veja bem, doados! –, tem de ter muito mais que isso. Minha próxima batalha será contra os cartórios brasileiros!”, brinca Nicolelis. O projeto completo prevê a construção de 25 laboratórios. E esses seriam só os primeiros: Nicolelis guarda projetos para 12 institutos, todos em áreas pobres. “No Piauí quero pesquisar tecnologia alimentar, em Marajó quero criar o Instituto do Mar…”, sonha.
Para saber mais
https://www.nicolelislab.net – Site de Miguel Nicolelis
Palmeiras, a Eterna Academia – Alberto Helena Jr., DBA, 120 págs., R$ 110.