Existe terrorismo bom?
Violência contra civis é uma tática horrível. Mas será que, no fundo, você não simpatiza com ela?
Denis Russo Burgierman
Rolihlahla criou uma milícia em seu país, apesar da oposição dos companheiros, que condenavam a violência. Ele vestiu-se com trajes militares, escondeu-se com seus homens na mata e distribuiu armas. Seu grupo começou a explodir bombas, sabotar fábricas, atirar em guardas desprevenidos e espalhar o pavor entre a população civil. Rolihlahla incitava a violência contra membros da elite e muita gente acabou sendo assassinada na onda de atentados que se seguiu. Até que prenderam Rolihlahla.
Sujeito horrível esse Rolihlahla, não é? Terrorista da pior espécie, não há dúvida. Por sorte, ele foi condenado à prisão perpétua. Aliás, talvez você já tenha ouvido falar dele. Ele é mais conhecido pelo nome inglês que adotou depois do batismo cristão: Nelson. Nelson Mandela. Depois de mais de um quarto de século cumprindo pena, Mandela foi solto em 1990, elegeu-se presidente em 1991 e hoje, já aposentado, é talvez a personalidade política mais admirada do planeta. Aposto que você gosta dele.
Em 1993, Mandela pendurou no pescoço a medalha dourada do Prêmio Nobel da Paz. Mas espera aí, um Nobel da Paz para um terrorista? Pode? Claro que pode. Mandela não foi nem o primeiro nem o único terrorista agraciado com o prêmio mais importante do mundo. Também há diplomas da Fundação Nobel nas salas de estar de Menachem Begin e de Yasser Arafat.
Begin e Arafat têm trajetórias bastante parecidas – ambos dedicaram a juventude à luta pela criação de um Estado para o seu povo. Ambos explodiram bombas, mataram uma porção de civis e espalharam pânico. Ambos conseguiram chamar a atenção da comunidade internacional para suas causas graças à violência e acabaram escolhidos líderes de seus povos depois de abandonarem o terrorismo.
Por fim, ambos foram agraciados com o Nobel da Paz por conseguirem uma trégua no conflito que ajudaram a começar. Mas Begin e Arafat têm uma diferença significativa: estão em lados opostos. (Begin liderava o Irgun, grupo terrorista judaico dos anos 40 que pretendia expulsar os ingleses da Palestina e criar o Estado de Israel. Acabou se tornando primeiro-ministro do país e ganhou o Nobel de 1978, pelo acordo de paz com o Egito. Arafat criou a Al Fatah, a primeira das organizações islâmicas a explodir bombas na Israel de Begin. Terminou como chefe da Autoridade Palestina e ganhou o Nobel de 1994, pela paz – breve – obtida com Israel.)
Begin, Arafat e Mandela não demonstram nenhum arrependimento pelos atos violentos cometidos no passado. Os três garantem que foram forçados a chegar a esses extremos por uma boa causa. Muito bem. Poucas causas são tão “justas” quanto a defesa da natureza. Ninguém que não seja muito inconseqüente ou politicamente incorreto é a favor da extinção de animais, por exemplo. Isso quer dizer que todo tipo de atentado pode ser cometido em nome dessa causa?
A ONG Sea Shepherd, por exemplo, costuma arremessar sua traineira contra baleeiros em alto-mar. Já afundou oito deles e não pretende parar. Sua tática é terrorista – espalha pânico entre os caçadores de baleias para fazê-los desistir da atividade. A Sea Shepherd nunca machucou ninguém durante os ataques, mas Paul Watson, seu fundador, em entrevista à Super, publicada em novembro de 2000, disse com todas as letras que não hesitaria em matar alguém se fosse absolutamente necessário para salvar uma baleia. “A sobrevivência da espécie é anterior aos direitos do indivíduo”, afirmou.
A Frente de Libertação da Terra (ELF) e a Frente de Libertação dos Animais (ALF) são ainda mais radicais. Ambas adotam expedientes como incendiar casas em bairros onde haja vida silvestre ou depredar lojas do McDonald’s porque defendem a idéia de que todos devemos ser vegetarianos. Este ano, militantes da ALF espancaram o diretor de um laboratório científico que fazia testes com animais. O incêndio de lojas do McDonald’s virou moda e foi adotado por ativistas antiglobalização, como o francês José Bové, aquele que, em janeiro, comandou, no Brasil, destruição de uma lavoura da Monsanto sob a alegação de que eram plantas transgênicas. Outra “causa justa”.
“Sou totalmente a favor das causas ecológicas”, afirma o sociólogo Gabriel Cohn, da Universidade de São Paulo. “Mas seja qual for a causa, ela não será vencida com violência. Se o McDonald’s tem um valor simbólico para os manifestantes ecológicos ou antiglobalização, é justo que alguém faça um protesto simbólico, com faixas ou pixações, por exemplo. No momento em que se fazem ataques reais, ameaçando vidas humanas, os manifestantes se colocam no mesmo nível dos celerados que derrubaram o World Trade Center”, diz.
O historiador das religiões Philip Jenkins, da Universidade da Pensilvânia, Estados Unidos, outro estudioso da violência, tem opinião parecida. “Nenhuma causa é boa o suficiente para justificar a morte de inocentes”, diz. Jenkins estabelece um limite claro para separar as lutas legítimas do terrorismo condenável. Se civis têm suas vidas ou sua propriedade ameaçada, então o ato foi longe demais. Pelo mesmo critério, a Resistência Francesa, que atacava apenas alvos militares com táticas de guerrilha na Segunda Guerra Mundial, se justifica. Mas a luta de Mandela não.
Pelo mesmo critério, também, a atuação dos Estados Unidos durante a Guerra Fria – apoiando o terrorismo de Estado na América Latina, financiando grupos terroristas de oposição em países comunistas como Camboja e Angola, e fortalecendo extremistas que viriam a se tornar terroristas, como o próprio bin Laden, no Afeganistão – é completamente condenável. Tal política foi conduzida pelo secretário de Estado Henry Kissinger (que, dias após o atentado de Nova York, afirmou que “tão culpados quanto os terroristas são aqueles que os apóiam, financiam e inspiram”). “Kissinger é o terrorista-mor”, diz Cohn. Pois bem. O terrorista-mor, assim como Mandela, Begin e Arafat, também ganhou seu Nobel da Paz – em 1973, pelo fim da Guerra do Vietnã.
Será que isso quer dizer que, no mundo real, por mais condenável que seja, a violência é muitas vezes o único caminho contra um inimigo mais forte? Com certeza não. A história tem alguns exemplos de pessoas que se recusaram a matar inocentes em nome de uma causa. É o caso de Mahatma Gandhi, herói da independência indiana, que pregava a resistência pacífica aos colonizadores ingleses. Ah, sim. Ao contrário dos terroristas Arafat, Begin, Kissinger e Mandela, Gandhi jamais ganhou o Nobel da Paz.
Para saber mais
Na livraria
Turbocapitalismo: Perdedores e Ganhadores na Economia Globalizada, Edward Luttwak, Nova Alexandria, São Paulo, 2001
A Civilização Americana, Jean-Pierre Fichou, Papirus, São Paulo, 1990
Dicionário de Política, Bobbio, Matteucci e Pasquino, Editora UnB, Brasília, 1994
Uma História dos Povos Árabes, Albert Hourani, Companhia das Letras, São Paulo, 1994
Na internet
drusso@abril.com.br