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Guerra nuclear no espaço

No ponto mais tenso da Guerra Fria, os EUA e a União Soviética detonaram várias bombas atômicas na órbita terrestre. E elas eram até 100 vezes mais potentes que as de Hiroshima e Nagasaki

Por Bruno Garattoni e Tiago Cordeiro
Atualizado em 24 nov 2021, 07h29 - Publicado em 28 mar 2018, 13h39

O céu estava profundamente escuro. Eram 23h no Atol Johnston, um conjunto de ilhas bem no meio do Oceano Pacífico, a 1.500 km do Havaí. O mundo não tinha a menor ideia do que estava prestes a acontecer naquela noite de 9 de julho de 1962. Mas um grupo de militares americanos, reunidos no Atol, aguardava ansiosamente o momento exato. Até que, nove segundos depois, aconteceu. Primeiro veio o clarão, brilhante a ponto de transformar a noite em dia. Depois, uma espécie de Sol: uma bola gigantesca e vermelha, que cresceu sem parar por seis minutos. Os Estados Unidos tinham acabado de detonar uma bomba atômica no espaço.

Ela se chamava Starfish Prime, e liberou 1,44 megaton de energia: o equivalente à explosão de 1,4 milhão de toneladas de TNT, cem vezes mais do que a bomba de Hiroshima. A radiação liberada pela explosão afetou o campo magnético da Terra e ionizou (carregou eletricamente) as partículas da atmosfera. Isso provocou o surgimento de uma aurora: conjunto de feixes de luz dançando no céu, que só costuma ocorrer nos polos terrestres. A aurora artificial durou meia hora e pôde ser vista a milhares de quilômetros dali.

Por incrível que pareça, o acontecimento não atraiu muita atenção na época. A imprensa estava em choque com a detonação, três dias antes, de outro artefato nuclear, no deserto de Nevada. Ele foi disparado no subsolo, e só precisou de meio segundo para criar uma cratera de 98 metros de profundidade. Ao todo, 13 milhões de cidadãos americanos foram expostos à radiação. Poucos dias depois, em 26 de julho, a União Soviética começou a instalar mísseis nucleares em Cuba – movimento que, em outubro, quase deflagraria a Terceira Guerra Mundial.

Enquanto tudo isso acontecia, a Starfish Prime continuava a fazer estragos a 400 km de altitude, onde foi detonada – e hoje fica a Estação Espacial Internacional. Ela liberou um pulso eletromagnético que queimou satélites e criou uma zona altamente radioativa, que deixou a Nasa preocupada e atrapalhou bastante o projeto Apollo.

A Starfish Prime foi o mais bem-sucedido dos testes atômicos realizados no espaço, e o que alcançou a maior altitude em relação à superfície da Terra. Mas não foi o único. Entre 1958 e 1962, os americanos realizaram 14 tentativas; a União Soviética, sete. Todos eles tinham o mesmo propósito: alcançar o domínio militar do espaço. Mas, como as superpotências acabariam descobrindo, no espaço as coisas são diferentes.

A explosão no vácuo

A detonação de uma bomba atômica tem quatro efeitos – todos altamente destrutivos. A onda de choque, ou seja, o deslocamento de ar causado pela explosão, que arrebenta o que encontra pela frente. A emissão de radiação, que pode matar em poucas horas ou provocar câncer. O disparo de um pulso eletromagnético, que inutiliza aparelhos eletrônicos. E a mais visível de todas: a onda térmica, que se propaga por longas distâncias queimando tudo. “A atmosfera da Terra possui grande quantidade de oxigênio, que é um gás comburente, ou seja, que alimenta o fogo durante uma explosão”, explica o físico Ítalo Curcio, da Universidade Mackenzie.

Mas no espaço não existe ar, e isso muda as coisas. “No espaço sideral, uma explosão nuclear não produz esse fogo, pois praticamente não existe matéria”, diz Curcio. “Pelo mesmo motivo, não ocorrem as ondas de choque e de calor.” Sem ar para empurrar ou queimar, a bomba atômica faz muito menos efeito no espaço do que na Terra.

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Já a radiação, por outro lado, se torna um problema muito maior. Isso porque, sem a presença da atmosfera (cujas partículas vão absorvendo a radiação), ela chega muito mais longe, e com mais força: segundo um estudo da Nasa, a radiação gerada por uma explosão nuclear no espaço se espalha por uma área 17 vezes maior do que na Terra. Mas a radiação emitida pela Starfish Prime, e pelas outras bombas detonadas no espaço, não chegou à Terra. Ao penetrar na atmosfera, ela foi absorvida pelas moléculas de oxigênio e hidrogênio – que por isso ficaram eletricamente carregadas, produzindo a aurora artificial.

Guerra nuclear no espaço

1. Às 22h47, o míssil foi disparado do Atol Johnston, no Oceano Pacífico. Ele subiu até alcançar 1.100 km de altitude, fazendo uma parábola na direção Sul, e então começou a descer.

2. Quando o míssil chegou a 400 km de altitude, 13 minutos após o lançamento, a ogiva foi detonada – a apenas 31 km do Atol.

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3. A explosão começou com um clarão branco e evoluiu para uma bola vermelha, que projetou riscos brancos no céu. Ela também eletrificou as partículas da atmosfera, provocando uma aurora artificial.

4. A bomba liberou um pulso eletromagnético que queimou semáforos, linhas telefônicas e equipamentos eletrônicos a 1.500 km de distância.

Já o pulso eletromagnético gerado pela Starfish Prime criou um problemão. Ele foi muito mais intenso do que o previsto (tanto que várias das 27 sondas enviadas pelos EUA para medir a radiação pifaram) e inutilizou pelo menos seis satélites, incluindo um da URSS. No Havaí, que estava a mais de mil quilômetros do ponto de detonação, o sistema de telefonia queimou.

O fornecimento de energia elétrica caiu. Lâmpadas dos postes de luz pifaram. Demorou dias para que os serviços fossem restabelecidos. E essa é a utilidade de detonar uma bomba atômica no espaço. Se ela tiver a potência adequada, e for acionada no local correto, permite aniquilar os sistemas de comunicações do inimigo, tanto em terra quanto no espaço – o que ajudaria muito a vencer uma guerra.

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A radiação emitida pela bomba não seguiu apenas em direção à atmosfera. Ela também encontrou o cinturão Van Allen: uma enorme faixa de partículas eletricamente carregadas, que envolvem o nosso planeta e ficam entre 640 km e 57 mil km da superfície terrestre. As partículas desse cinturão, que foi descoberto em 1958 pelo físico James Van Allen, da Universidade de Iowa, foram atraídas até ali pelo campo magnético da Terra, e têm uma função importantíssima: absorvem a radiação cósmica, impedindo que ela chegue até nós.

Mas o cinturão Van Allen era pouco compreendido, e os cientistas dos EUA ainda não sabiam disso. Eles achavam que o cinturão poderia ser um obstáculo para viagens espaciais, prejudicando os astronautas ou as naves, e talvez fosse necessário abrir uma brecha nele – com uma explosão nuclear.

Outra hipótese da época era que, alterando o cinturão, seria possível criar um escudo protetor sobre os EUA, que impedisse a passagem de mísseis soviéticos. Com o tempo, a ciência descobriu que era tudo bobagem.

Mas a explosão da Starfish Prime teve um efeito concreto, e profundo, sobre o cinturão: parte dele se tornou altamente radioativa. Pior ainda, a radiação não parecia diminuir com o passar dos anos. O teste obrigou a Nasa a monitorar de perto a situação até 1968, quando o programa Apollo começaria a lançar astronautas ao espaço. Temia-se que eles fossem expostos a doses acima de 200 milisieverts (mSv), o que já é suficiente para afetar a medula óssea, reduzir a produção de glóbulos brancos e vermelhos e elevar o risco de câncer. A preocupação era tanta que a Nasa chegou a pensar em lançar os foguetes, e os astronautas, pelos polos da Terra, onde o cinturão Van Allen é mais rarefeito. Isso exigiria muito mais combustível, dificultando bastante a ida do homem à Lua. No fim das contas, a agência espacial optou por não fazer nada. Deu sorte, e a radiação acabou diminuindo.

Os EUA chegaram a cogitar uma ação ainda mais impressionante: o inacreditável Projeto A119, que previa detonar uma bomba atômica em plena Lua. A ideia era usar uma ogiva relativamente pequena, com “apenas” 1,7 kiloton (quase dez vezes menos que a bomba de Hiroshima), para testar as consequências de uma explosão atômica no solo lunar. Essa era a justificativa oficial, mas não é difícil perceber que a detonação também teria uma dimensão política – pois enviaria uma mensagem e tanto aos soviéticos. O plano foi desenvolvido em 1958 pela Aeronáutica, com a ajuda de um cientista de 25 anos chamado Carl Sagan. A ideia acabou engavetada, e Sagan se tornou um crítico das armas nucleares. Alguns meses após a explosão da Starfish Prime, os americanos desistiram de testar bombas atômicas no espaço. Mas os russos fizeram exatamente o contrário.

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Guerra nuclear no espaço

1. Os mísseis intercontinentais (ICBMs) sobem até 1.200 km de altitude e depois reentram na atmosfera para acertar o alvo. Isso limita o alcance do míssil, e o deixa vulnerável à interceptação.

2. O sistema FOBS é diferente. O míssil é disparado num ângulo mais raso, dificultando sua interceptação, e a ogiva entra em órbita: fica a 150 km de altitude, e dá uma volta na Terra a cada 90 minutos.

3. Ao se aproximar do alvo, a ogiva reentra na atmosfera e detona sobre o alvo em poucos minutos. O sis- tema permite acertar qualquer ponto do planeta, e com mais velocidade do que os ICBMs.

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Ogivas em órbita

A União Soviética prestou muita atenção à Starfish Prime. Em outubro de 1962, bem no meio da crise diplomática provocada pela instalação dos mísseis em Cuba, explodiu três bombas na órbita da Terra. Elas tinham 300 kilotons cada, e foram detonadas sobre o Cazaquistão: uma área muito mais povoada do que o Atol Johnston, e com campo magnético mais forte (porque nessa região o cinturão Van Allen é mais denso).

O resultado foi impressionante, com pulsos eletromagnéticos tão violentos que provocaram um incêndio na usina de energia elétrica da cidade de Karaganda. Mais de 500 quilômetros de linhas telefônicas e mil quilômetros de cabos de transmissão de energia foram inutilizados.

Depois disso, EUA e URSS perceberam que estavam indo longe demais, e assinaram dois tratados para conter a corrida nuclear espacial. Produzido pela ONU, o Tratado de Interdição Parcial de Testes foi assinado em 1963 e proíbe qualquer tipo de explosão atômica na atmosfera e no espaço. Já o Tratado do Espaço, de 1967, baniu o transporte e o armazenamento de ogivas nucleares fora da Terra. Os russos assinaram os dois tratados, mas não desistiram do espaço.

Em 1968, a URSS fez demonstrações de seu “sistema orbital de bombardeamento fracionário”. A ideia era colocar ogivas nucleares na órbita terrestre – e depois, mediante um comando, fazê-las reentrar na atmosfera e cair sobre os alvos inimigos. Essa tecnologia superava algumas limitações dos mísseis convencionais, como o alcance e a velocidade. Os russos haviam testado esse tipo de arma em 1960 e 1964, sem sucesso. Mas, quatro anos depois, finalmente tinham em mãos um míssil orbital promissor: o R-36ORB. Em tese, ele poderia ser disparado a partir do Polo Sul, e atingir o território dos Estados Unidos de surpresa – pois os radares e sistemas de defesa antimísseis da época estavam todos apontados para a Europa e o Polo Norte.

Os russos alegaram que essa arma não infringia os tratados, porque as ogivas não chegariam a completar uma volta inteira ao redor da Terra. Eles continuaram desenvolvendo a tecnologia até 1979, e realizaram 24 testes do seu sistema de bombas orbitais. A União Soviética também manteve, até 1982, um míssil R-36ORB operacional, pronto para ser disparado, numa base em Tyuratam, no Cazaquistão.

Oficialmente, hoje nem os americanos nem os russos possuem artefatos nucleares espaciais. Mas isso não significa que tenham abandonado a disputa militar do espaço. “Nós estamos vivendo uma tensão crescente entre EUA, China e Rússia, e eles desenvolvem armas que podem ser usadas no espaço”, diz o engenheiro Gilles Doucet, ex-pesquisador do Departamento de Defesa do Canadá e dono da empresa de consultoria Spectrum Space Security. As três potências têm feito testes e demonstrações de poder espacial. No ano passado, a Rússia barrou o sinal dos satélites GPS na Ucrânia. A China hackeou satélites americanos e desenvolveu mísseis especializados em atacar alvos no espaço (o primeiro deles foi testado com sucesso em 2007; o mais recente, em fevereiro deste ano).

A Rússia possui uma arma similar, e os americanos não ficaram para trás: já estão testando lasers capazes de eliminar satélites inimigos e possuem até um drone espacial, o X-37, que chegou a ficar mais de 700 dias em órbita. Em março, a Câmara dos Deputados dos EUA votou pela criação da Força Espacial (Space Corps), uma divisão da Força Aérea especializada em guerra fora da Terra – com o apoio do presidente Donald Trump.

No frio do espaço, a Guerra Fria continua pegando fogo.

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