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Hinduísmo – 330 milhões de divindades

Os hindus acreditam numa força divina única, mas que assume incontáveis formas. O número de deuses pode ser até maior: talvez um para cada devoto

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Atualizado em 31 out 2016, 18h36 - Publicado em 18 fev 2011, 22h00

Texto Álvaro Oppermann

No sul da Índia, próximo à cidade sagrada de Tiruvannamalai, fica o templo de Bhuvaneshwari. Lá, os monges residentes têm uma única ocupação – bem insólita, por sinal: desde o século 16, ou talvez até há mais tempo, eles fazem um minucioso recenseamento de todos os deuses hindus. Em pergaminho, registram a origem, a função e as relações de parentesco. É uma tarefa gigantesca. O número oficial de deuses na Índia chega a 330 milhões. Extraoficialmente, porém, essa conta bate na casa do bilhão.

Bem-vindo à enigmática Índia. Para entendê-la, é preciso livrar-se de alguns preconceitos que se tornaram moeda corrente no mundo ocidental, como o de “religião única”. Sob o guarda-chuva do que chamamos de hinduísmo, abrigam-se centenas – ou milhares – de crenças distintas. Como dizia Sri Ramakrishna, um santo hindu do século 19, “na Índia, existem tantos deuses quanto o número de devotos”. Mas isso é colocar o carro adiante dos bois. Vamos começar pelo início da história: o povo ário (ou ariano), fundador da civilização indiana.

Os arianos (guerreiros de pele clara que viviam na Ásia Central, mais ou menos na região da atual Mongólia) invadiram o subcontinente indiano por volta de 1500 a.C. Sobrepujaram os habitantes originais – dravidianos, ou povo do rio Indo. E impuseram suas crenças. Segundo o orientalista Heinrich Zimmer, autor do clássico Filosofias da Índia, o fator inicial que moldou o hinduísmo foi diferente, por exemplo, daquele que forjou as religiões semitas – cristianismo, judaísmo e islamismo. Na tradição semítica, a pergunta inaugural do ser humano sempre foi sobre a natureza de Deus: o que e como Ele é? “O questionamento hindu foi outro”, diz Zimmer. “A pergunta ariana era: o que é um homem, uma planta, um animal ou um objeto celeste?

Darma e carma

Segundo a tradição védica (dos Vedas, escrituras sagradas), os sábios hindus – chamados rishis – descobriram que todo ser individual (fosse um homem, fosse uma pedra) estaria ordenado a um fim que lhe seria próprio. Um fim que, caso cumprido, traria a felicidade plena daquele sujeito. Ou seja: existiria uma lei da existência. E isso foi chamado de darma, enquanto a ação de fazer cumprir essa lei recebeu o nome de carma. A sintonia perfeita entre darma e carma leva à suprema iluminação, ou libertação. Já os seres que se afastam em vida da lei da existência se mantêm aprisionados no ciclo de nascimento, morte e transmigração – chamado em sânscrito de samsara.

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Os rishis concluíram também que o darma não aparece pronto e do nada para os homens. Essa “lei perene” (segundo a tradução mais correta do termo) jaz latente no Universo. Originária de um “princípio absoluto” – se você quiser chamá-lo de Deus, sinta-se à vontade -, ela assumiu no início duas formas essenciais. A primeira é bondosa; a segunda, terrível (mais ou menos como a misericórdia e a justiça divinas nas tradições semitas). Essa visão do Cosmos ganhou tempero indiano. “Na tipologia humana, o hindu é essencialmente um imaginativo, e sua religião adquiriu plasticidade”, diz Carl Ernst, professor de religiões comparadas da Universidade da Califórnia, nos EUA. A bondade ganhou a forma e a personalidade de um deus da manutenção do Universo, chamado Vishnu. O lado terrível ficou com Shiva, o deus da destruição. Por trás deles, impávido e silencioso, estaria o princípio de tudo – Brahma.

Fazendo uma comparação grosseira: se o hinduísmo fosse uma grande empresa, Brahma certamente seria o seu presidente. Logo abaixo, na vice-presidência, as cadeiras seriam ocupadas por Vishnu e Shiva. Porém, essa tríade (trimurti, em sânscrito) não “dá as ordens” diretamente aos milhões de fiéis. No sistema religioso hindu, existe um complexo organograma de “diretores”, “gerentes” e “subgerentes” – cujos cargos são ocupados pelos milhões de outros deuses. Na hierarquia sagrada, alguns estão ligados ao braço “corporativo” de Vishnu. Outros, ao de Shiva.

Entender esse jogo é essencial. Em um artigo no Jornal das Sociedades Reais Asiáticas, Ernst demostra que os detalhes assustadores ou picantes da vida no panteão hindu são até bem compreensíveis, desde que se adote o ponto de vista correto. O canibalismo de Garuda (que engole um braço de Vishnu), por exemplo, deve-se a sua filiação ao deus da criação – ele é um braço de Vishnu. Por aí também é possível entender as puladas de cerca e as relações incestuosas dos deuses hindus, ou o nascimento de animais de pais humanos, como o do deus-elefante Ganesha. Essa trama celeste tem, como finalidade última, o cumprimento do darma e a plenitude dos seres. Uma coisa é certa: na Índia, os caminhos do darma aparentemente são infinitos – assim como seus deuses.

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Para saber mais

• Filosofias da Índia
Heinrich Zimmer, Palas Athena, 2003.

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