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A grande extinção das línguas isoladas

Quando uma língua morre, culturas inteiras somem somem com ela. E estamos em meio a uma morte em massa de idiomas.

Por Luiz Romero
Atualizado em 17 fev 2020, 20h16 - Publicado em 16 dez 2015, 12h00

Pergunte aos tofas como o mundo surgiu e eles não saberão a resposta. Essa pequena tribo siberiana, situada entre a Rússia e a Mongólia, está esquecendo a mitologia que explica seu próprio nascimento. Esse torpor coletivo é resultado de uma perda ainda maior: os tofas estão esquecendo sua própria língua. “A morte de um idioma começa com um trauma”, explica Leanne Hinton, especialista em revitalização linguística da Universidade da Califórnia. “Pode acontecer pela perda de território ou por mudanças forçadas à cultura tradicional.”

No caso dos tofas, foram as duas coisas. Eles sempre foram nômades: vagavam pelas planícies da Sibéria com rebanhos de centenas de renas. Depois da revolução comunista, foram obrigados pelo regime a escolher apenas uma região para habitar. Nas décadas seguintes, os adultos tiveram que abandonar o xamanismo e roupas tradicionais, enquanto as crianças passaram a frequentar escolas soviéticas. O tofalar, idioma do grupo há séculos, começava a morrer.

“Línguas minoritárias são sufocadas por idiomas maiores”, explica o linguista americano David Harrison, que descreveu o grupo em When Languages Die (“Quando Línguas Morrem”, sem edição no Brasil). No caso dos tofas, foi o russo, mas exemplos não faltam. Afinal, num mundo cada vez mais urbano e conectado, fica mais fácil sobreviver falando japonês, francês ou português em vez de ainu, bretão ou kanoê. Segundo uma estimativa da Unesco, como resultado dessa mudança de idiomas pequenos para grandes, metade das 7 mil línguas que existem hoje no planeta devem silenciar no decorrer deste século.

Na verdade, uma língua pode sumir em apenas algumas décadas. No caso dos tofas, idosos ainda lembram algumas palavras em tofalar, mas não passam esse conhecimento para frente. Logo, a morte do último ancião deve representar a morte do próprio idioma. Apenas uma centena das línguas do planeta são gigantes, numa lista encabeçada por chinês, espanhol, inglês, hindu e árabe. Contados em conjunto, esses cinco idiomas são falados por 2,5 bilhões de pessoas. Algumas outras dezenas são igualmente grandes (incluindo o português, a sexta maior), mas a maioria dos idiomas são nanicos – alvos fáceis para os gigantes.

A morte de línguas é normal: ninguém mais no Egito escreve usando os hieróglifos das tumbas faraônicas. Mas a rapidez com que essas mortes vêm acontecendo em tempos recentes é preocupante: enquanto, entre todas as línguas conhecidas, 630 desapareceram no decorrer da história da humanidade, cerca de 140 deixaram de existir nas últimas quatro décadas. A velocidade é tanta que especialistas chamam o fenômeno de “extinções linguísticas”. Mas qual o prejuízo quando elas morrem?

É ruim para o mundo

“Pode não ser imediato, mas o sumiço de línguas representa um nivelamento cultural”, explica Nicholas Ostler, linguista britânico e autor de Empires of the Word (“Impérios da Palavra”, sem edição no Brasil). Assim, somem idiomas únicos (como o silbo, das Ilhas Canárias cujas palavras são assoviadas), alfabetos gigantes (como do ubykh, falado na Turquia e hoje extinto, que possuía 84 consoantes e duas vogais) e sistemas complexos (como os verbos da língua archi, da Rússia, que podem ser conjugados em 1,5 milhão de formas diferentes).

Desaparecem músicas, ditados e piadas, que dependem das particularidades de cada língua para existir. Também morrem mitologias inteiras, enfraquecidas em povos que muitas vezes dependem da transmissão oral. “Essas narrativas até poderiam ser traduzidas, mas traduções não carregariam a função social original dessas histórias”, diz Ostler.

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Além disso, perdemos palavras que funcionam como ferramentas de sobrevivência. Para entender, basta lembrar a palavra “pelada”, que usamos para definir “partida amadora de futebol jogada entre amigos em um campo improvisado”. Do mesmo jeito, pessoas ao redor do mundo criam apelidos para resumir conceitos complexos.

Os tofas, por exemplo, vivem cercados de renas há séculos e dependem delas para se movimentar, alimentar e vestir. São tão importantes que inventaram uma série de palavras para descrever os bichos. Como döngür, que significa “rena macho domesticada com 2 ou 3 anos na primeira temporada de acasalamento” ou chary, “macho de cinco anos, castrado e montável”. Esses termos facilitam a comunicação dos tofas na hora de pastorear as renas. “Permitem aos pastores destacar um animal no rebanho por meio de uma `etiqueta” única, que representa uma combinação de suas características”, explica Harrison.

Mas gerações mais novas da tribo não aprendem mais esses termos e, por isso, precisam repetir frases enormes em russo quando querem descrever algum animal. Segundo Harrison, estão perdendo a eficiência do tofalar em resumir informações. “Essas palavras são adaptações únicas ao ambiente. Tomadas em conjunto no decorrer da história, elas ajudaram a humanidade a sobreviver.”

Línguas também guardam os segredos de remédios desconhecidos para a medicina tradicional. Os kallawayas, membros de uma comunidade tradicional da Bolívia, possuem uma tradição médica centenária. Com repetidos testes de plantas em pacientes nas andanças pelas montanhas dos Andes, eles construíram uma farmácia composta por 980 plantas. Espécies que permitiram a produção de remédios para doenças como herpes, leishmaniose e malária.

Acontece que muitas informações sobre essas plantas são transmitidas numa língua secreta, transmitida apenas para membros da comunidade. Como os jovens pararam de aprender o idioma, informações sobre muitos desses remédios botânicos podem desaparecer. Segundo o Ethnologue, o maior catálogo de línguas do planeta, o kallawaya está dormente – categoria de outros 2,5 mil idiomas do mundo. Caso ninguém apareça para tentar reverter esse esquecimento, o próximo passo é a extinção.

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Línguas-zumbi

São raros os casos de línguas que voltaram dos mortos. “Existe apenas uma revitalizada com sucesso”, diz Hinton. É o hebraico. Falado na região da Palestina e usado para escrever os livros mais antigos da Bíblia, o hebraico passou a aparecer apenas em livros e rezas. Voltou a ser falado pelo povo apenas no século 19, ainda que bem diferente do original, na região que viraria o Estado de Israel. “O hebraico é o único caso de língua que renasceu e possui falantes que usam apenas essa língua, sem ameaças de nenhum idioma maior”, diz Hinton.

O hebraico é hoje língua nativa de milhões de israelenses, diferentemente de outras línguas ressuscitadas, como o maori, falado na Nova Zelândia, o córnico, da região britânica da Cornualha, ou o havaiano. Isso porque essas três línguas também voltaram depois de um período de hibernação, mas ainda disputam espaço (e costumam sair perdendo) com os idiomas oficiais desses lugares (em todos os casos, o inglês). O hebraico, não.

Muitos desses lugares possuem um número pequeno de idiomas minoritários. A situação em países com muitas línguas é mais complicada. “A diversidade cria um obstáculo para a revitalização”, diz Hinton. “Enquanto a Nova Zelândia pode focar apenas no maori, países maiores precisam dividir recursos entre inúmeras línguas.” Como nas pequenas ilhas de Papua Nova Guiné e Indonésia e nas gigantes Nigéria e Índia, hóspedes de 35% dos idiomas do mundo. Imagine decidir quais recebem verba para construir escolas, treinar professores ou produzir apostilas e dicionários.

O Brasil aparece na 12ª posição em número de idiomas, ainda alto no ranking, com 229 línguas. Nessa conta, 13 foram trazidas por imigrantes, incluindo japonês, espanhol e árabe, mas também versões nacionais de dialetos europeus. No sul do País, é possível ouvir um descendente de italiano chamando chimarrão de “simaron”, no dialeto talian, ou uma criança sendo chamada de “gurien”, a versão de “guri” (que vem do tupi) num dialeto alemão. Mas a grande maioria das nossas línguas é falada por uma pequena minoria do Brasil. São 216 idiomas indígenas, segundo o Ethnologue, ou 274, segundo o Censo.

A história das línguas indígenas no Brasil é a história da devastação cultural causada pela colonização portuguesa. 1,3 mil línguas eram faladas antes da chegada dos portugueses. Nos primeiros séculos de colonização, nativos e europeus ainda utilizavam o tupinambá para conversar (e que sobrevive em palavras como jacaré e Ipiranga). Mas a maioria das línguas indígenas foram mortas junto dos índios, principalmente nas regiões próximas ao oceano.

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Algumas delas eram tão complexas quanto as europeias que chegariam mais tarde. Os xetás, do Paraná, por exemplo, possuem quatro verbos diferentes para “comer”, que variam dependendo da comida: “pawâwa” (comer carne de tamanduá), “jurúri” (comer carne de animal violento, como onça ou cobra), “pókai” (comer carne de peixes ou animais que vivem próximos de água) e “u” (que vale para todo o resto, de larvas a macacos).

Também são preciosas do ponto de vista da gramática: o Brasil abriga o jeito mais estranho do mundo de organizar frases. Para entender, lembre que empregamos a ordem sujeito-verbo-objeto em português. Línguas como o xavante ou o caiabi, por exemplo, utilizam a ordem objeto-sujeito-verbo. Ou seja, a frase “Gato persegue rato” vira “Rato gato persegue”. Essa quebra de uma propriedade que se pensava universal ajuda a melhorar o entendimento de cientistas sobre como o cérebro produz e processa linguagem. “Não fosse por essas línguas, cientistas poderiam nem suspeitar que idiomas assim fossem possíveis. Especulariam, falsamente, que essas ordenações não seriam nem entendidas pelo cérebro humano”, escreve Harrison.

Mas, dos 216 idiomas contados pelo Ethnologue, 57 pararam de ser transmitidos entre gerações, 99 são falados apenas por anciões e estão morrendo, enquanto 22 foram extintos nas últimas décadas e são irrecuperáveis. Em resumo, mais da metade dos idiomas falados no Brasil morreram ou estão prestes a silenciar.

E a lenda tofa?

Hoje sabemos como o mundo dos tofas surgiu graças a registros antigos da história. Envolvia um pato que voava pelo Universo. A casca de um ovo colocado por ele deu origem à Terra, enquanto a gema deu origem a um lago. “Todas as narrativas míticas são tentativas de entender o Universo”, escreve Harrison. “Sem o mito de criação dos tofas, um pedaço desse entendimento está faltando.”

Tofa

Esses nômades siberianos dependem de renas para sobreviver e, assim, criaram palavras muito específicas para chamar cada tipo de animal, como chary, por exemplo, que define “rena macho de 5 anos, castrada e montável”. Hoje, além de terem esquecido lendas e mitologias, os tofa usam imensas frases em russo para chamar os animais.

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Kallawayas

Incrustados no alto dos Andes, os Kallawayas catalogaram uma imensa farmácia de 980 plantas nativas, que tratavam de malária a herpes. Mas os jovens da tribo não aprendem mais o idioma dos seus antepassados – e o conhecimento médico está morrendo.

Hebraico

Por milênios, o hebraico sobreviveu apenas em livros e escritos – até ser ressuscitado no século 19. É o único caso de idioma-zumbi, que voltou dos mortos e que tem falantes que usam apenas ela para se comunicar.

Diga adeus

Milhares de línguas devem sumir este século, algumas com características únicas.

Tuyuca

País: Colômbia
Nível: Ameaçada

Em português, adicionamos -o e -a para substantivos masculinos e femininos. Em tuyuca, gêneros são mais específicos. Há terminações especiais para objetos esféricos (-póro) e flexíveis (-ro), por exemplo.

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Pawnee

País: Estados Unidos
Nível: Quase extinta

Falado por apenas dez índios em Oklahoma, possui apenas oito vogais e nove consoantes – mas produz palavras gigantes. Há algumas com até 30 sílabas por lá (”paralelepípedo” tem sete).

Apurinã

País: Brasil
Nível: Ameaçada

No mundo, o jeito mais comum de escrever uma frase é na ordem sujeito-objeto-verbo (“João gripe pegou”), popular na Ásia. Nós usamos sujeito-verbo-objeto (”João pegou gripe”). Por muito tempo, linguistas pensavam que isso não variava muito, mas existem línguas que respeitam ordens únicas, como a apurinã, na Amazônia. Ela usa objeto-sujeito-verbo: ou seja, ”Gripe João pegou”.

Yupik

País: Rússia e Turquia
Nível: Quase extinta

O alemão tem palavras grandes porque junta morfemas (os menores elementos que possuem significado numa palavra, como ”re”- e ”-ção”) para criar palavras com significados bem específicos. Línguas assim são chamadas de aglutinativas. O yupik naukan, que possui 60 falantes na Rússia, próximo do Alasca, é um caso extremo. Suas palavras são tão longas e carregadas de significados que parecem com frases: ”tuntussuqatarniksaitengqiggtuq”, por exemplo, significa ”ele que não havia dito de novo que iria caçar renas”.

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