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Meninos-soldados

Sem crianças, não se fazem guerras. São elas que limpam campos minados, entregam mensagens sob fogo, prestam favores sexuais. Se você estava preocupado com a violência dos videogames, bem, a realidade é muito pior

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h20 - Publicado em 31 ago 2007, 22h00

Texto Pedro Dória

Em janeiro, o Tribunal Criminal Internacional (ICC, na sigla em inglês) anunciou que dará início ainda neste ano a seu primeiro julgamento. Na cadeira dos réus estará Thomas Lubanga Dyilo, 46 anos, líder da União de Patriotas Congoleses, que tomou parte na guerra civil de seu país. Seu maior crime: recrutar meninos como soldados.

Na estimativa da ong britânica Human Rights Watch, algo entre 200 000 e 300 000 crianças participam atualmente de guerras em 21 países em todo o mundo. Estão concentradas na África, onde lutam mais de 100 000 crianças, mas escapam a qualquer estereótipo. Podem ser encontradas tão longe quanto no Nepal, nas guerrilhas maoístas, e tão perto quanto na Colômbia, onde estão em guerrilhas de esquerda e grupos paramilitares de direita. Um menino palestino armado com bombas – em março de 2004 a Força de Defesa de Israel prendeu um suicida de 12 anos a caminho de uma missão – é considerado combatente infantil. O Exército russo pôs rapazes de 14 anos para lutar na Chechênia.

O soldado mirim

Embora ongs batam na tecla dos meninos-soldados faz anos, o movimento internacional para terminar com a prática só começou recentemente. Em junho, o Tribunal Especial para Serra Leoa, ligado à ONU, considerou culpados 3 líderes militares. Foi a primeira vez que uma corte internacional condenou alguém pelo crime de recrutamento infantil. As penas, ainda não anunciadas, devem ser de prisão perpétua. Os julgamentos de Lubanga – que está para começar – e de Charles Taylor, ex-ditador da Libéria, são outros indícios de que há uma mudança de postura. Ainda este ano, o Congresso dos EUA deverá votar uma lei que proíbe o país de vender armas para nações que tenham crianças no campo de batalha.

Parte da mudança de postura tem nome: Ishmael Beah. Seu livro Muito Longe de Casa, lançado neste ano, é o primeiro testemunho para o público geral de como é ser um menino-soldado. Capturado pelo Exército de Serra Leoa aos 13 anos, Beah lutou até os 16. Por causa de sua capacidade de expressão, foi escolhido porta-voz das crianças levadas para a guerra. Falou à Assembléia Geral da ONU, a chefes de Estado, a grupos de diplomatas com condições de interferir. Deu visibilidade ao problema. O testemunho pessoal impacta.

Na primeira vez que saiu em batalha, apavorado com um AK-47 nas mãos, Beah viu o amigo Josiah, de 11 anos, levar um tiro no rosto. Daí Beah matou sua primeira vítima, um soldado ligado às tropas antigoverno que recebeu um tiro certeiro. Os meninos de Serra Leoa, durante a guerra civil que dividiu o país entre governo e rebeldes estimulados pela ditadura de Charles Taylor, na vizinha Libéria, viviam de fugir, famintos e apavorados, do Exército ou de seus oponentes. Para Beah, como para tantos outros, o recrutamento forçado ao menos representou o fim dessa fuga – e a possibilidade de comida todos os dias.

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Não é difícil transformar crianças em máquinas de guerra. Guerras são confusas. Aldeias são invadidas repentinamente, há pânico, as pessoas fogem. Crianças se perdem de seus pais quase sempre. Ou então os vêem ser assassinados. Quando o número de civis mortos é muito alto, isso é um indício de que há mais órfãos prontos para o recrutamento. As guerras contemporâneas são particularmente especializadas nesse quesito. Na 1ª Grande Guerra, civis representavam perto de 5% das vítimas. Na 2ª, foram 48%, inclua-se na conta vítimas do Holocausto. Atualmente, civis representam cerca de 90% das vítimas, segundo a revista The Economist. Na prática, há cada vez mais crianças disponíveis para recrutamento.

Crianças órfãs ou que se perderam dos pais são como bichos acuados. Integradas a um grupo armado, sentem-se protegidas. Além de comida, há um ambiente de camaradagem e fidelidade. Uma nova família – daí a crueldade do processo. Crianças envolvem-se emocionalmente. No caso de Beah, os meninos eram contemplados com uma dieta de pólvora misturada com cocaína para animá-los ao combate e cigarros de maconha para esfriar depois. O tempo de entretenimento era gasto assistindo a projeções de Rambo e filmes do gênero. As crianças gostavam de imitar o herói.

Há outro motivo para haver tantas crianças envolvidas em combates armados. Conflitos internos, com o tempo, tendem a exterminar jovens. É preciso substituí-los. Graças ao parco controle de nata­lidade, crianças são muitas em países pobres. Homens mais velhos, poucos. Crianças tendem a obedecer a adultos sem questioná-los com facilidade. E crianças não se preocupam. Não têm mulheres ou filhos para quem voltar. Portanto, são inconseqüentes em batalha. Em guerras civis sanguinárias, nas quais exércitos regulares não lutam, são exatamente soldados inconseqüentes o que se busca.

Muito além da África

A imagem tipicamente africana do menino com um AK-47 nas mãos não representa todas as crianças combatentes. Nem sempre elas estão em batalha. É comum que sirvam para testar campos minados – ou para plantar minas. Também fazem o trabalho doméstico: cozinham, lavam, passam. São mensageiros – daí, têm a missão de atravessar distâncias pequenas sob fogo cerrado. E prestam serviços sexuais, tanto meninos quanto meninas. Em lugares como o Afeganistão ou certas regiões da África é comum encontrar comandantes militares que iniciaram a carreira na infância. É tudo o que sabem fazer.

Desde 1987, de acordo com números da ONU, 2 milhões de crianças morreram em guerras. O número não inclui, por exemplo, o período final da guerra entre Irã e Iraque, quando praticamente todos os soldados envolvidos eram adolescentes. Mas, se hoje esses são números que causam repulsa, o emprego de menores é caso corriqueiro na história. A Berlim na qual o Exército Vermelho entrou em 1945 era defendida por rapazes da juventude hitlerista. No levante do Gueto de Varsóvia, em 1943, meninos estavam envolvidos – como estiveram em quase todos os movimentos de resistência aos nazistas.

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Mas isso não vem daí. Os escoteiros nasceram quando o coronel britânico Robert Baden-Powell recrutou meninos para servirem de sentinelas durante a 2ª Guerra dos Bôeres, na África do Sul, no fim do século 19. Crianças lutaram na Guerra Civil dos EUA. Nas Cruzadas – uma delas, a de 1212, foi chamada de Cruzada das Crianças. Em Esparta, o recrutamento se dava na infância. Davi – aquele, o que venceu Golias –, quando aparece pela primeira vez na Bíblia, é um menino-soldado. A convicção de que o recrutamento infantil deve ser interrompido é bastante recente.

A readaptação de Ishmael Beah à sociedade durou 7 meses. Ele não sabia mais dormir numa cama e era dependente químico. A sua turma foi uma das primeiras de meninos-soldados com a qual o Unicef lidou. Os garotos, viciados em violência, espancavam os funcionários do centro. Mas Beah ao menos tem uma história com final feliz. Hoje, aos 27 anos, ele vive no bairrro do Village, em Nova York, na casa de Laura Simms, uma contadora de histórias que perdeu a família entre perseguições anti-semitas e o Holocausto. Os dois se conheceram porque Laura presta serviços para a ONU ajudando crianças a contar a história da vida delas para lidarem com traumas.

Mas nem sempre é assim. Sabe-se tão pouco a respeito do número de crianças no campo de batalha que mesmo uma organização como a Human Rights Watch não consegue precisar o número entre 200 000 e 300 000. Enquanto isso, em Mianmar, na Ásia, o recrutamento é legal a partir dos 12 anos.

Para saber mais

Muito Longe de Casa

Ishmael Beah, Ediouro, 2007.

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