Assine SUPER por R$2,00/semana
Continua após publicidade

Mito: “O golpe de 1964 foi idealizado pelos EUA”

A verdade: americanos ajudaram os conspiradores, mas os autores e atores do golpe foram brasileiros.

Por Maurício Horta
Atualizado em 7 mar 2023, 16h58 - Publicado em 4 out 2018, 21h18

Em junho de 1962, o embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon, reuniu-se com o presidente John Kennedy para discutir a situação política brasileira. A Casa Branca tinha acabado de instalar um sistema de gravação clandestina no Salão Oval, e a primeira conversa interceptada colocava Jango na berlinda. “Creio que uma de nossas tarefas mais importantes consiste em fortalecer a espinha militar. Ele está entregando o país aos…”, disse Gordon, ao que Kennedy completou: “aos comunistas”.

Essa era uma virada na relação dos EUA com o Brasil. Até a década de 1950, as grandes preocupações dos EUA estavam longe da América Latina. A URSS desenvolvia a largos passos seu programa balístico e espacial; a CIA orquestrava um golpe no Irã (1953); o exército americano entrava na Guerra da Coreia (1950-53); o Egito nacionalizava o Canal de Suez (1956), e o Vietnã do Norte ameaçava expandir o comunismo no Sudeste Asiático.

Mas o ano de 1961 trouxe as atenções dos EUA para cá. Em 1959, Fidel Castro venceu a Revolução Cubana. O movimento causava preocupação por causa de investimentos americanos na ilha, mas não chegava a ser uma grande ameaça geopolítica. Fidel ainda não tinha se convertido ao comunismo. Era apenas um líder nacionalista que derrubara o ditador Fulgêncio Batista (1952-1959). Chegou mesmo a posar para foto com o então vice-presidente Richard Nixon, numa viagem aos EUA, quatro meses depois da revolução.

Apesar de todo o poderio militar mobilizado pelos EUA, nenhum brasileiro, civil ou militar, participou da deposição porque os EUA a desejavam.

Elio Gaspari, jornalista

Isso mudou quando Fidel nacionalizou propriedades americanas em Cuba. Em reação, os EUA recrutaram cubanos em Miami para invadir Cuba pela Baía dos Porcos. A invasão fracassou, e levou Cuba a buscar proteção do único rival militar dos EUA. Foi assim que Cuba se tornou um satélite soviético a pouco mais de 100 km da Flórida.

A partir da guinada comunista de Cuba, qualquer movimentação de esquerda na América Latina passou a soar o alarme em Washington. Isso incluía Jango, que, segundo os temores dos EUA, perigava de instaurar “ditadura pessoal e populista”. Os sinais pareciam claros. Já em 1959, Brizola encampara as companhias americanas ITT e Bond and Share no Rio Grande do Sul. Agora, Jango defendia o controle de remessas de lucros ao exterior e a nacionalização de refinarias estrangeiras. No topo disso, tinha o apoio de movimentos sociais camponês, operário e estudantil e de militares rebeldes de baixa patente.

Continua após a publicidade

Por tudo isso, é tentador afirmar que o golpe foi orquestrado pelo governo americano. Mas quem geriu a conspiração contra Jango não foram os EUA. Foram civis e militares brasileiros que desde os tempos de Getúlio combatiam o que chamavam “populismo”. “Nem as direitas eram manipuladas pelo imperialismo norte-americano, nem as esquerdas, pelo ouro ou pelo dedo de Moscou”, escreve o historiador e ex-guerrilheiro Daniel Aarão Reis, da UFF. “Jargões de época, de considerável eficácia propagandística, não dão conta da autonomia política de que dispunham as forças antagônicas.”

O professor de história americana da USP Sean Purdy tem uma avaliação semelhante. “Nenhum golpe apoiado pelos americanos teria acontecido sem que o País tivesse forças internas para articulá-lo. Os EUA têm a sua culpa, mas, também no caso do Brasil, havia parte da sociedade que apoiava a derrubada do governo.”

Dizer que os atores do golpe foram nacionais, claro, não significa ignorar a simpatia com que os americanos viam os conspiradores [leia abaixo]. Eles bancaram projetos de desenvolvimento em Estados governados por opositores de Jango, acenaram apoio a qualquer golpe que derrubasse esquerdistas, financiaram o complexo Ipês-Ibad, mantiveram um intercâmbio militar e prepararam uma megaoperação de apoio ao golpe – que acabou não sendo posta em prática porque os generais brasileiros derrubaram Jango antes mesmo do previsto.

Assim, a ajuda americana acabou não sendo decisiva para o golpe. Mas, se os quartéis não tivessem conseguido derrubar Jango por conta própria, já tinham um irmão com quem contar. Dificilmente o falcão do Norte apreciaria que a crise do governo Goulart continuasse a se agravar. Afinal, como o presidente americano Nixon diria mais tarde para o general Médici, numa visita oficial aos EUA em 1971, “para onde o Brasil for, o resto da América Latina irá”.

O falcão, a onça e as vivandeiras

Os EUA não derrubaram Jango, mas foram generosos com os conspiradores civis e militares

Continua após a publicidade

Aliança para o Progresso

Nesse programa de ajuda externa, Kennedy presenteava governos latino-americanos anticomunistas com hospitais, escolas e conjuntos habitacionais. Assim, esperava neutralizar o apelo revolucionário de Cuba na região. A Aliança para o Progresso beneficiou governadores estaduais oposicionistas, como Carlos Lacerda (Guanabara), Luís Magalhães Pinto (MG) e Ademar de Barros (SP). Já o governo de Jango ficou de fora.

alianca-para-progresso
(Gil Tokio/Pingado/Reprodução)

Apoio automático

Em março de 1964, o coordenador da Aliança para o Progresso, Thomas C. Mann, reuniu-se com todas as autoridades do governo americano envolvidas com América Latina. Do encontro saiu a Doutrina Mann: os EUA apoiariam qualquer governo, desde que fosse anticomunista. O New York Times questionou se a doutrina não seria carta branca para militares golpistas. Mann respondeu: “cada caso é um caso”.

apoio-automatico
(Gil Tokio/Pingado/Reprodução)

Operação Brother Sam

Os EUA nunca intervieram militarmente no Brasil, mas chegaram a preparar uma operação de apoio, caso os golpistas tivessem dificuldades. Mobilizaram no Caribe um porta-aviões, um porta-helicópteros, tropas de paraquedistas, seis contratorpedeiros com cerca de 100 toneladas de armas e quatro petroleiros. A estrutura chegaria à costa sudeste brasileira entre 8 e 13 de abril. Só que os militares anteciparam o golpe em uma semana, e a operação foi abortada.

brother-sam
(Gil Tokio/Pingado/Reprodução)

Financiamento à oposição

Em 1962, o embaixador Lincoln Gordon e o presidente Kennedy concordaram em não derrubar Jango – mas, por via das dúvidas, mantiveram a carta golpista no baralho. O ano era de eleições legislativas, e os americanos liberaram uma enxurrada de dólares para políticos brasileiros de oposição. A verba teria ajudado mais de 200 candidatos ao Senado, Câmara Federal e Assembleias Estaduais.

financiamento-a-oposicao
(Gil Tokio/Pingado/Reprodução)

Intercâmbio militar

Militares brasileiros e americanos iniciaram um convívio próximo ainda em 1944, quando o Brasil enviou a Força Expedicionária à Itália. Centenas foram estudar na Escola das Américas, centro de treinamento dos EUA no Panamá, e no National War College. Em 1962, os EUA enviaram ao Rio como adido militar Vernon Walters, veterano da 2ª Guerra, que chegou a dividir quarto com o futuro presidente Castelo Branco.

Continua após a publicidade
intercambio-militar
(Gil Tokio/Pingado/Reprodução)

Propaganda

Os EUA foram financiadores de primeira ordem do complexo oposicionista Ipês-Ibad, que produzia propaganda anticomunista e contra Jango no rádio, na TV, no cinema e na imprensa. Também distribuía livros para oficiais e projetava filmes doutrinadores em quartéis, bases, escolas e navios. Só em 1963, foram realizadas 1.706 projeções.

propaganda
(Gil Tokio/Pingado/Reprodução)

Este post é parte do dossiê “21 mitos sobre a Ditadura Militar”, que pode ser lido na íntegra aqui.

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Super impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 12,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.