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Mito: “na época da Ditadura Militar, não tinha corrupção”

A verdade: Os militares prometeram limpar o País. O que conseguiram fazer foi censurar notícias sobre a roubalheira

Por Maurício Horta
Atualizado em 28 set 2018, 11h05 - Publicado em 27 set 2018, 17h53

Os únicos patrimônios de Castelo Branco eram um Aero Willis preto e um imóvel em Ipanema. Médici desviou o traçado de uma estrada para que ela não valorizasse suas terras. Quando Geisel assumiu a presidência da Petrobras, sua mulher quis um apartamento novo. O general disse não. “Se comprar esse apartamento, vão logo dizer que estou roubando.”

As figuras de primeiro escalão buscaram manter uma aura de probidade. Mas uma coisa eram as contas do presidente; outra era o Estado. “Demonstrações de decência pessoal apresentaram parcos resultados para a vida pública do País”, afirma a historiadora Heloísa Starling em Corrupção: ensaios e críticas.

O combate à corrupção foi uma das bandeiras do golpe de 1964. Assim que assumiu a presidência, Castelo prometeu uma grande devassa. Não conseguiu. “O problema mais grave do Brasil não é a subversão; é a corrupção, muito mais difícil de caracterizar, punir e erradicar”, disse meses depois de criar a Comissão Geral de Investigações (CGI), que investigava acusados de subversão e de corrupção. Opositores perderam direitos políticos; corruptos se adaptaram.

21 mitos sobre a ditadura militar
Os presidentes não deixaram sinais de enriquecimento ilícito – Castelo só tinha um carro e um apartamento. Mas a corrupção no Estado foi encoberta pela censura e a falta de transparência. (Divulgação/Montagem sobre reprodução)

Em 1968, o AI-5 deu à CGI os dentes que faltavam. Agora, o presidente podia confiscar bens de quem enriquecesse ilicitamente. O resultado foi pífio. De 1968 a 1973, a CGI produziu 1.153 processos. Desses, mais de mil foram arquivados. Das 58 propostas de confisco, 41 foram alvo de decreto presidencial.

O problema não era apenas a falta de eficiência da CGI, mas também sua seletividade. Aos amigos, o silêncio. Foram arquivadas sem investigação denúncias contra os então governadores José Sarney (MA) e Antônio Carlos Magalhães (BA). Já aos inimigos, a lei. No processo contra Brizola, a CGI escrutinou suas declarações de bens desde 1959, quebrou seu sigilo bancário, verificou seus imóveis – e não encontrou nada de errado. Ou seja, quanto menos democrático um regime, mais o combate à corrupção se confunde com perseguição.

Porão bichado

Agentes da repressão corromperam juízes e médicos, formaram grupos de extermínio e entraram para a elite do jogo do bicho

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A tortura não atingiu apenas presos políticos. Ela também corrompeu uma rede de colaboradores da repressão. Juízes aceitaram processos absurdos, confissões desmentidas e perícias mentirosas. Médicos dispuseram-se a fraudar autópsias e autos de corpo de delito e fizeram vista grossa às marcas de tortura em pacientes. Empresários financiaram a Oban.

E no centro de todos havia o torturador. “Quando tortura e corrupção se juntaram, o regime militar elevou o torturador à condição de intocável”, afirma Heloísa Starling. O delegado paulista Sérgio Fleury não se limitava a torturar e matar no DOI-Codi. Liderava impunemente um esquadrão da morte, comandava uma máfia de proteção para empresários e criminosos e ainda roubava dos esquerdistas que prendia. Conforme disse Golbery, “Esse é um bandido. Mas prestou serviços e sabe muita coisa.” Foi condecorado com a Medalha do Pacificador e se livrou de investigações.

O DOI-Codi do Rio também produziu seus intocáveis, e nenhum deles foi tão notório quanto o capitão Ailton Guimarães Jorge. No auge da repressão, foi reconhecido por caçar guerrilheiros. Em 1969, matou um da VPR – e, com isso, ganhou a Medalha do Pacificador. Mas não demorou para diversificar sua atuação.

No fim do governo Médici, não havia mais esquerda armada. Então, os antigos agentes da repressão precisavam de uma razão de ser. Uns criaram novos inimigos imaginários. Outros foram para a segurança particular. Já o capitão Guimarães partiu com colegas para o contrabando de mercadorias. No fim de 1973, autoridades cariocas descobriram o esquema. Foram acusados 14 militares, 8 policiais civis e alguns comerciantes. Os réus chegaram a ser presos, mas o processo foi anulado. O motivo: os acusados alegaram ter sido torturados.

Então o capitão Guimarães entrou para o jogo do bicho. Em 1981, quando se desligou do Exército, já dominava Niterói e São Gonçalo. Usando seus conhecimentos de repressão, espionagem e organização militar, transformou o bicho numa verdadeira organização. Deixou os pequenos e médios bicheiros se canibalizarem e dividiu o butim com os grandes, com os quais delimitou territórios e verticalizou o poder. No topo, ele mesmo. E, para ostentar seu domínio, seguiu o hábito dos bicheiros: adotou uma escola de samba – a Unidos de Vila Isabel.

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Cimento e chumbo

Militares barraram construtoras estrangeiras das obras do “milagre econômico”. Com isso, celebraram o casamento entre o estado e as grandes empreiteiras

Denúncias contra empreiteiras pipocaram nos anos 1950, principalmente com os planos de JK de fazer o Brasil crescer 50 anos em 5. Depois, voltaram com a redemocratização. Já na ditadura, o silêncio. Sinal de limpeza? Não para o historiador Pedro Henrique Pedreira Campos, autor de Estranhas Catedrais. “Isso evidencia obviamente não o menor número de casos, mas o amordaçamento dos mecanismos de fiscalização e divulgação.”

Em 1969, o presidente Costa e Silva barrou empresas estrangeiras de participar das obras públicas no País. Com essa reserva de mercado e as obras faraônicas da ditadura – como Transamazônica, Itaipu, Tucuruí, Angra, Ferrovia do Aço e Ponte Rio-Niterói -, as construtoras se tornaram grandes grupos monopolistas ligados intimamente com o Estado e com poucos mecanismos de controle.

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Odebrecht constrói o edifício-sede da Petrobras, sua primeira grande obra fora da Bahia. Depois dela, subiu para as 10 maiores empreiteiras. (Divulgação/Reprodução)

Até a década de 1960, as obras da Odebrecht mal ultrapassavam os limites da Bahia. Com o protecionismo de Costa e Silva, começou a dar saltos. Primeiro, construiu o prédio-sede da Petrobras, no Rio. Os contatos governamentais na estatal abriram portas para novos projetos, como o aeroporto do Galeão e a usina nuclear de Angra. Assim, de 19ª empreiteira de maior faturamento, em 1971, pulou para a 3ª em 1973, e nunca mais deixou o top 10. Outra beneficiada foi a Andrade Gutierrez, que saltou do 11º para o 4º lugar de 1971 para 1972.

Empreiteiras menos amigas da ditadura tinham futuro menos brilhante – como a mineira Rabello. Desde a década de 1940, seu proprietário Marco Paulo Rabello foi próximo a JK. Na prefeitura de Belo Horizonte, passou-lhe o Complexo da Pampulha. No governo de Minas, foram rodovias estaduais. Finalmente, como presidente, JK deu-lhe o filé mignon de Brasília: o Eixo Monumental, incluindo a Catedral, o Alvorada e o Planalto. Mas JK era um dos grandes desafetos dos conspiradores de 1964. Com o golpe, a Rabello ficou de escanteio. Foi perdendo licitações até ir à falência nos anos 1970.

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Foi assim que, ao fim da ditadura, dez irmãs detinham 68,7% do faturamento das cem maiores empreiteiras – para Campos, não necessariamente por sua excelência técnica e administrativa, mas por suas conexões políticas.

As irregularidades no setor de construção pesada não são um desvio. Trata-se de uma característica estrutural desse ramo de atividades. os desvios são os casos denunciados.

Pedro Campos, historiador

Como viviam nossos super-funcionários

Bastou a ditadura começar a suspender a censura prévia para que o jornalismo denunciasse a vida nababesca do alto escalão burocrático

A censura prévia começou a ser levantada em 1976. E, conforme as colunas políticas ressuscitavam, os jornais se infestavam com denúncias de uso de dinheiro público para benefício particular. O jornalista Ricardo Kotscho reuniu os relatos de vários correspondentes do Estado de S.Paulo e publicou, em agosto daquele ano, a série de matérias Assim vivem os nossos superfuncionários. Estava provado: a lisura do governo militar não passava de uma ilusão sustentada pela censura.

Supersalário
Os servidores brasileiros de elite ganhavam 5% mais do que os americanos. O presidente do Banco do Brasil recebia Cr$ 1 milhão por ano, o que hoje equivaleria a cerca de US$ 4,2 milhões anuais – mais benefícios. Estatais distribuíam participação nos “lucros” mesmo quando tinham prejuízos. Diretores da Eletrobrás receberiam até 17º salário.

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(Gil Tokio/Pingado/Reprodução)

Mercadão
Compras de mercado ficavam por conta do governo. Isso levou a abusos como o do governador Elmo Serejo Farias (DF). Num só dia, comprou 17 kg de melão, 23 kg de uva, 14 kg de ameixa, 11,3 kg de mamão, 21 caixas de pêssego e 16 dúzias de bananas. Outro dia, foram 6.825 pães franceses, 280 litros de leite e 7 pacotes de pão de forma.

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(Gil Tokio/Pingado/Reprodução)

Jatinhos
Órgãos públicos mantinham jatinhos, que eram frequentemente usados de forma abusiva. Ministros usavam jatos da FAB de forma tão indiscriminada que o Planalto precisou explicar numa circular: seu uso era de caráter excepcional.

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(Gil Tokio/Pingado/Reprodução)

Cine proibidão
Funcionários promoviam sessões privadas de cinema disputadíssimas, que traziam ao País filmes proibidos pela censura, como O Último Tango em Paris, Decameron e Laranja Mecânica.

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(Gil Tokio/Pingado/Reprodução)

Criadagem
Ter empregados pagos pelo governo era de praxe na elite funcionalista. Mas nada se comparava à casa do ministro do Trabalho Arnaldo da Costa Prieto, que ostentava 28 funcionários fixos.

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(Gil Tokio/Pingado/Reprodução)

Impunidade
Não havia legislação específica que permitisse ao Congresso e aos Tribunais de Contas fiscalizar os gastos dos superfuncionários. Abusos podiam ser encobertos sob o manto da “segurança nacional”.

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(Gil Tokio/Pingado/Reprodução)

Clube de vantagens
Os altos funcionários não precisavam pagar aluguel da mansão no Lago Sul, contas de água, luz e telefone, conservação de piscina, criadagem, IPTU, vigilância nem despesas com o cartão corporativo.

21 mitos sobre a ditadura militar
(Gil Tokio/Pingado/Reprodução)

Este post é parte do dossiê “21 mitos sobre a Ditadura Militar”, que pode lido na íntegra aqui.

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