Ricardo Arnt
Esta mão sóbria, retinta de resina negra, com dedos rugosos e unhas amareladas pelo pó do deserto, tem 2 000 anos. Não pertence a nenhum rei ou faraó. Serviu a um lavrador anônimo, em um instante quase perdido da História. Arqueólogos descobriram, no Egito, a maior população homogênea de múmias já encontrada. Elas revelam uma rica história plebéia, sem pompa ou eloqüência. O dia-a-dia da aldeia de Ain Labakha, há dois milênios.
O flagrante despojado de uma história monumental
Olhe bem estes rostos. A historiadora Françoise Dunanc, da Universidade de Strasbourg, na França, acha que é possível até “captar um pouco da personalidade das pessoas olhando suas expressões mortuárias” – 2 000 anos depois. Será possível?
“O Egito”, salienta, “é a única civilização que oferece esse tipo de evidência, graças às suas múmias.”
Não são uma nem duas evidências, mas 450. Em 1994, arqueólogos da Inspetoria de Antiguidades do Egito descobriram, no oásis de Kharga, a oeste do rio Nilo, escavada em grutas na montanha e repleta de múmias, a necrópole de Ain Labakha.
A aldeia chegou a ter 1 000 habitantes entre os séculos I antes de Cristo e III da nossa era, habitada por lavradores, pastores, soldados a serviço dos romanos, mulheres, crianças e sacerdotes. Foram contemporâneos de Jesus Cristo.
Não foi a primeira descoberta do gênero – outro cemitério popular foi encontrado em 1982, na localidade de Douch, 120 quilômetros mais ao sul – mas o de Ain Labakha é o maior e, de longe, o mais fascinante.
Em 1997, uma equipe francesa – Françoise Dunanc, o antropólogo Jean-Louis Heim, do Museu de História Natural de Paris, e o casal de radiologistas Roger e Martine Lichtenberg – foi convidada a estudar as grutas. Os exames com raio X revelaram a idade com que cada múmia morreu, a causa da morte, o estado de saúde do morto, seu provável ofício, sua dieta e até as “doenças ocupacionais” da época (veja página 36).
As pirâmides e os monumentos egípcios atraem os historiadores como ímãs. São as maiores expressões materiais do poder dos faraós. Mas as múmias plebléias contam uma história igualmente rica, tão banal quanto verdadeira: a crônica do homem comum.
O último baluarte da fronteira romana
Era o fim de uma era. O império dos faraós, que vivera o auge entre 1 500 aC. e 1 000 aC., desmoronara. Alexandre Magno (356 aC.- 323 aC.) invadira o Egito em 331 aC. e proclamara-se faraó. Depois da sua morte, o país ficou com um de seus generais gregos, Ptolomeu, fundador de uma dinastia de 300 anos. Em 30 aC. os romanos invadiram e converteram o território em província. Com a fundação de Constantinopla, em 324, o Egito ficou sob órbita bizantina até a conquista árabe, em 641.
Ain Labakha era um posto da fronteira sul do império romano. Era o fim do mundo. Além da necrópole na encosta da montanha, restaram as ruínas do forte romano, dois templos e um poço seco. “Não conhecemos nem o nome antigo da aldeia”, disse Françoise Dunanc à SUPER. “Encontramos inscrições em potes de cerâmica, em egípcio e grego demótico, mas ainda não deciframos. Na parede dos templos havia grafites gregos. Mas não temos um documento sobre a vila ou sua população.” No século IV aC., acredita Dunanc, o lençol d’água que alimentava a agricultura irrigada esgotou-se, as terras secaram e Ain Labakha foi abandonada.
Entre os século I aC. e III, as técnicas de mumificação estavam enraizadas na cultura há milênios. Os egípcios acreditavam que a morte era uma passagem para a segunda vida, eterna. O deus Osíris governava o mundo dos mortos junto com sua esposa, Ísis. Para entrar nesse reino, o corpo deveria manter-se intacto para a alma retornar a ele depois de uma jornada de iniciação em que prestava conta de seus atos aos deuses. Portanto, todos deveriam ser mumificados.
No século V, Teodósio I, o imperador cristão da seita copta, que prosperou no Egito, proibiu as práticas ditas pagãs, inclusive a mumificação. Mas elas continuaram até a dominação árabe, no século VII.
Fila de Espera
Rígidas e negras, cobertas de resina de betume, múmias de várias idades esperam a vez de ser examinadas pelo raio X. Durante 2 000 anos elas descansaram esquecidas. Note o vulto etéreo de um pesquisador andando pela sala. Talvez seja uma ironia do outro mundo: nesta foto, o único que parece fantasma é quem está vivo
Vida austera e trabalho duro
Roger e Martine Lichtenberg examinaram com o raio X 130 múmias de Ain Labakha e de Douch, o outro cemitério do oásis de Kharga descoberto em 1982. “Nosso objetivo”, disse Roger à SUPER, “é perceber o modo de vida de uma população egípcia antiga por meio do estudo das múmias. Você pode chamar isso de paleoetnologia.”
A radiologia revelou à História detalhes preciosos. Os ossos de certos indivíduos em Ain Labakha mostram sinais de crescimento raquítico, marcas de má nutrição e doenças recorrentes durante a juventude. “São uma indicação da vida social nada rósea dos camponeses. Pode ter certeza de que eles às vezes passavam fome.”
Morria-se cedo, aos 50 anos. A mortalidade infantil era alta e as mulheres morriam de parto. Para os pesquisadores, uma patologia reveladora, descoberta nas múmias, é a esquistossomose, infecção provocada por um parasita no intestino, típica de quem ganha a vida com os pés dentro d’água, em lavouras irrigadas. Várias múmias apresentaram sinais de reumatismo na coluna, evidência de trabalho físico intenso e do transporte de cargas pesadas. Quatro corpos de uma mesma gruta mostravam sinais de tuberculose. “Podemos imaginar que pertenciam à mesma família”, diz Lichtenberg.
Os radiologistas encontraram mais múmias sem dentes em Ain Labakha do que em Douch. “Isso mostra que tinham mais açúcar na dieta.” A base da alimentação era cereais, uvas e azeitonas. Havia carência de proteína (carne). Mas se as colheitas fossem boas, passavam bem.
Apesar da proximidade do Sudão e das populações negras da antiga Núbia, nenhuma múmia era negra. “Todos eram brancos de cabelos pretos. A constituição, as medidas e a altura média de 1,65 metro são claramente mediterrâneas.” Algumas eram circuncidadas, provavelmente sacerdotes dos templos.
Eram homens, mulheres e crianças camponesas, lavradores, fazendeiros e soldados que trabalhavam duro e penavam. Todos se preparavam para a vida eterna. “As múmias dos ricos estão em melhor estado, evisceradas e desidratadas por um tratamento de primeira classe”, explica Roger Lichtenberg. “Mas um grande número, talvez a maioria, teve só o cérebro removido e o corpo enchido de betume. E também há casos piores, que nem chegam a isso. Você tira os trapos de linho e os ossos desandam, podres, sinal de que quase não houve mumificação. Esses, sim, eram os pobres.”
Ain Labakha não tem futuro como atração turística. Está longe do circuito badalado de viagens nas margens do Nilo e sua necrópole não tem atrativo, comparada com o esplendor dos túmulos do Vale dos Reis. É uma sorte. Depois de terem sido despertados para revelar seus segredos, os cientistas devolveram os corpos às tumbas e fecharam as grutas, em novembro de 1997. Agora, as múmias já podem voltar à vida eterna.
Uma tecnologia de desidratação
O processo de mumificação exigia 70 dias de trabalho e oferecia tratamentos diferenciados. Veja o que foi feito na múmia desta menina de 8 anos.
Uma incisão atrás da cabeça iniciava a remoção do cérebro. O crânio vazio era enchido de resina quente, à base de betume Uma incisão atrás da cabeça iniciava a remoção do cérebro. O crânio vazio era enchido de resina quente, à base de betume
Abrindo-se o peito, abaixo do pescoço, e o abdômen, retiravam-se as entranhas e órgãos: coração, pulmões, fígado e intestinos. Sem vísceras, o corpo resistia à putrefação
Os órgãos retirados eram desidradatados. Primeiro, recebiam uma aplicação de sal de natrão (sódio natural). Depois, secavam. O natrão vinha de lagos salgados do oásis de Kharga
Uma vez secas, as vísceras eram envoltas em linho e recolocadas dentro do abdômen e do peito. Depressões e cavidades eram “emassadas” com ungüentos e betume
Das múmias da gente mais pobre, extraía-se só o cérebro. O corpo era “salgado” com natrão para desidratar, coberto com uma camada espessa de betume e enfaixado em linho. Quanto mais rudimentar o tratamento, menos resistência ao tempo tinham os corpos embalsamados