Nada de Egito: o verdadeiro país das múmias é a Rússia
A Rússia tem primazia indiscutível na produção de múmias políticas (as mortas, é claro. Talvez o Brasil empate na categoria "múmias políticas vivas").
Pensou em múmia, pensou no Egito Antigo. Não dá para desassociar os grandes sarcófagos dos faraós e as pirâmides do curiosíssimo processo de embalsamar os mortos que era usado por lá milênios antes de Cristo.
Mas a verdade é que existe, hoje mesmo, uma potência mundial em mumificação. Seu avanço científico no processo exigiu o investimento de milhões de dólares e uma expertise tremenda. E esse país não é o Egito.
É a Rússia.
Sai pra lá, Tutancâmon
A mumificação no Antigo Egito teria começado cerca de 2 mil anos a.C. e caído gradativamente em desuso até o século 4 (depois de Cristo, é claro). Sem dúvidas, as técnicas dos egípcios foram aperfeiçoadas nessa meia dúzias de milhares de anos de anos. Prova disso é que as múmias egípcias mais bem feitas tendem a ser mais “recentes”, durante a Vigésima Dinastia do Antigo Egito – quando o próprio Tutancâmon foi embalsamado.
Mas mesmo esse tipo de a tecnologia, naturalmente, não chega aos pés da mumificação moderna – e essa tem os russos como líderes incontestáveis (não que muitos países tenham grandes interesses em disputar esse título).
Como muita coisa na Rússia, a “expertise” em mumificação também é culpa da União Soviética. A morte de Lênin, líder da URSS, em 1924, trouxe a questão à tona.
Após dois meses de exposição do corpo para as despedidas finais da população, a friaca de janeiro em Moscou não deixou Lênin se decompor tanto quanto se esperaria de um cadáver. Antes que alguém saísse espalhando que se tratava de milagre (como o mito de Santa Bernadete de Lourdes) os soviéticos já entraram com a propaganda desenvolvimentista: “na União Soviética, a ciência é tão avançada que é capaz de impedir até o decaimento do companheiro Lênin!”.
A tarefa, daí, foi transformar a propaganda em realidade – esforço que permanece até hoje, 94 aninhos depois. Algumas das técnicas de embalsamamento tiveram que ser inventadas pelos próprios cientistas responsáveis por Lênin após a morte: inclusive a aplicação das substâncias de preservação, já que o sistema circulatório do político foi todo picotado durante a sua autópsia.
Sem veias, Lênin tomou banhos e injeções: a submersão em líquidos que iam de formol a água oxigenada ajudavam a evitar as infecções na superfície da pele. Para manter a qualidade “interna” do soviético, microagulhas aplicavam fluídos, de preferência em áreas onde ele já tinha cicatrizes, para não prejudicar a aparência do cadáver.
No começo, foi por tentativa e erro: Lênin acabou meio carcomido por fungos, teve um pedaço do pé roubado e perdeu seus cílios. Hoje, seu pé, os cílios ao redor de seus olhos e boa parte da pele são postiços.
Isso porque, ao contrário dos processos de “mumificação” com propósitos médicos, o objetivo não é preservar a matéria orgânica de quem foi Lênin. Mas, sim, garantir que, quem quer que veja o líder, tenha a impressão de estar olhando para alguém quase vivo: com bochechas carnudas, pele macia, articulações flexíveis – e o indispensável “corado saudável” no rosto. Para isso, vale tudo: de trocar pele por versões semiplastificadas de tecido até moldar o interior do rosto de Lênin com uma mistura de parafina e glicerina para imitar a gordura facial que não está mais ali.
(Ficou curioso? O antropólogo Alexei Yurchak escreveu um artigo, em 2015, sobre a louca ciência que nasceu da necessidade de preservar o corpo do Lênin. O artigo também discute a peculiar importância política que um corpo pode ter para justificar esse esforço todo. Se você gosta de tipo de discussão científica-política-sociológica, é um artigo feito para você!)
A instituição responsável, hoje, por manter essa maquiagem high-tech é o Centro de Pesquisa Científica e Métodos de Aprendizado em Tecnologia Bioquímica. E, longe cuidar de Lênin no pós-vida todo, eles tiveram outros trabalhos – que, mais do criar simples múmias, eram quase acordos diplomáticos.
Benchmark de múmia!
Nasce assim a primazia indiscutível da Rússia na produção de múmias políticas (as mortas, é claro. Talvez o Brasil empate na categoria “múmias políticas vivas”). E a mumificação de líderes políticos de outros países, por incrível que pareça, ajuda a contar a história das relações internacionais da Rússia.
Isso porque o time do Centro de Pesquisa também é babá de três outras múmias poderosas, cujos países foram aliados da URSS e da Rússia subsequente. O falecido líder vietnamita Ho Chi Minh também goza dos mesmos privilégios estéticos de Lênin no pós-morte, assim como a dupla nortecoreana Kim Il-Sung e Kim Jong-Il – os mausoléus desses últimos ainda contam com iluminação especial para ajudar no aspecto corado dos rostos, caso a tecnologia não dê conta.
Nem todo país ou líder teve o mesmo destino. Georgi Dimitrov, da Bulgária, Klement Gottwald da Tchecoslováquia e Agostinho Neto, da Angola: todos deram início ao processo high-tech de embalsamamento soviético de sua morte. Mas ninguém deu bola para isso depois da queda da União Soviética e os corpos foram todos devidamente sepultados – enterrando o problema pela raiz.
O próprio ditador Josef Stalin acabou destituído do título de múmia high-tech. Ele chegou a ser exibido ao lado de Lênin no mausoléu na Praça Vermelha. Pegou mal. Seu corpo também foi parar debaixo da terra: graças à sua reputação sanguinária, foi proibido que se injetasse até formol nas suas veias. Stalin ficou relegado às baratas do bom e velho cemitério.
Mas talvez a melhor história da Escola Russa de Múmias seja a de Mao Tsé Tung. Quando o ditador chinês morreu, em 1976, a coisa estava feia entre a URSS e a China. Não tinha clima para pedir consultoria de múmia. Resultado: a China teve que inventar seus próprios métodos às pressas enquanto seu líder apodrecia.
A evidência mais recente de que não dá para virar freelancer de mumificação de uma hora para outra é a Venezuela. Hugo Chávez, para seguir a tradição de líderes do passado, era para ter sido embalsamado. O timing prejudicou o plano: ele passou muito tempo em decomposição antes do processo começar. Nosso calor sulamericano também não ajudou, acelerando o processo.
Conclusão: se você tem o estranho desejo de ter o corpo preservado, de forma esteticamente agradável, por pelo menos um século, seria uma boa falecer no inverno. De preferência, em um país gelado. E o mais importante: não se esqueça de combinar com os russos.