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O casal Curie

Uma breve história da dupla que revolucionou a física atômica, mexeu com radiação sem luvas, passou o rodo no Nobel e renegou a vida de celebridade.

Por Suzana Veríssimo
Atualizado em 26 set 2018, 12h56 - Publicado em 31 jul 1988, 22h00

Quando se fala em átomo, urânio ou radioatividade, a primeira idéia que vem à cabeça é a de uma imensa usina recheada de aparelhos sofisticados. Mas foi num laboratório improvisado, mais parecido com um celeiro ou uma estrebaria, que, em dezembro de 1898, o casal de franceses Pierre e Marie Curie fez uma descoberta que revolucionaria a ciência: um elemento químico que chamaram de radium – ou, em bom português, rádio.

Eles trabalhavam com duas panelas em um fogão que mal esquentava, e escreviam suas anotações sobre mesas ordinárias de madeira. O lugar, nos fundos da modesta Escola Municipal de Física e Química, em Paris, onde Pierre era professor, tinha sido emprestado pela diretoria. Foi desse trabalho quase primitivo que brotaram dois prêmios Nobel, atribuídos, um, ao casal e, outro, a Marie Curie, já viúva.

Não que França fosse um país pobre. Mas os Curie eram. Marie Skłodowska, imigrante polonesa, chegou a Paris em 1891 sem diploma. Voluntariosa, calada, forte, dona de uma rara curiosidade científica e uma memória prodigiosa, ela entrou para a Sorbonne. Em quatro anos, formou-se em Física e em Matemática. Estudante, vivia com os parcos recursos de uma bolsa e o pouco dinheiro que a sua irmã Bronia lhe enviava da Polônia. Essa renda mínima permitia a Marie apenas alugar um quartinho minúsculo e comer o estritamente necessário para sobreviver – durante um bom tempo, viveu praticamente de pão, manteiga e chá, a ponto de os colegas temerem por sua saúde.

Em abril de 1894, aos 26 anos, ela se dedicava a uma pesquisa sobre as propriedades de certos metais e, para tanto, procurava um lugar onde pudesse fazer suas experiências. Foi quando um amigo polonês fez, para ajudá-la, algo que mudaria o curso da vida de Marie e da própria ciência. Ele a apresentou a um conhecido, chefe de pesquisa na Escola de Física, chamado Pierre Curie.

Como ela, Pierre era tímido e introvertido. Filho de médico, aos 35 anos ainda morava na casa dos pais, na periferia de Paris. Anos antes de conhecer Marie, em 1880, Pierre e seu irmão Jacques tinham feito uma descoberta importante: a piezeletricidade, ou seja, a produção de corrente elétrica em conseqüência da compressão ou dilatação de cristais cuja estrutura molecular não é simétrica. As antigas cápsulas de cerâmica dos toca-discos, o acendedor elétrico de fogão e o relógio a quartzo só foram possíveis graças a esse trabalho.

Na época, Pierre já era conhecido na comunidade científica francesa e preparava sua tese de doutorado. Não tinha como o cara não se apaixonar pela moça que lhe pediu ajuda – era um amor nerd na época em que nerds eram raridade. Pouco mais de um ano depois do primeiro encontro, em setembro de 1895, os dois se casaram. Ao voltarem da lua-de-mel (uma viagem de bicicleta pelo interior da França), foram morar num pequeno apartamento perto da escola. Nessa altura, Pierre tinha sido promovido a professor e ganhava um pouco mais. Marie, por seu lado, se preparava para começar o mestrado e procurava um trabalho de pesquisa remunerado.

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A dissertação de mestrado de Pierre. (Leiden University Library/Domínio Público)

Os dois primeiros anos do casamento, conforme ela escreveu em sua autobiografia, foram “os melhores de minha vida”. Enquanto Pierre se dedicava às aulas e pesquisas sobre cristais, ela mergulhava num trabalho sobre variações das propriedades magnéticas de diversos tipos de aço em função de suas propriedades químicas (proporção de ferro na composição). “Nossa vida é sempre a mesma”, escreveu ela numa carta ao irmão, na Polônia. A rotina só mudou quando Marie engravidou. Ela teve uma gravidez difícil, a ponto de muitas vezes nem conseguir trabalhar.

Em setembro de 1896, Irène nasceu. Marie não permitiu que a condição de mãe a afastasse da Física. Assim, ao mesmo tempo que preparava sua monografia sobre os aços, ela procurava uma tese para seu doutorado—um ato surpreendente, já que havia, em toda a Europa, uma única mulher com o título de doutora: a alemã Elsa Neumann, autora de uma tese sobre eletroquímica. Marie seria a segunda.

Eram tempos prodigiosos aqueles. No mundo científico pontificavam figuras gigantescas como Sigmund Freud e Louis Pasteur. Pesquisadores ousados subiam em balões a 10 mil metros para fazer a previsão do tempo, enquanto nos Estados Unidos cartões perfurados ajudavam a coletar e interpretar os dados do recenseamento. Foi no ano em que Irène nasceu que o francês Antoine-Henri Becquerel (1852- 1908) descobriu que os sais de urânio emitiam raios que, como os raios X, penetram a matéria.

Interessada, Marie resolveu tirar daí sua tese: medir esses raios e verificar se, além do urânio, havia outros elementos capazes de produzir radiações. Logo nas primeiras semanas fez uma descoberta animadora: o tório e seus compostos tinham as mesmas propriedades do urânio. Marie passou a outra série de experiências. Com um aparelho inventado por Pierre, mediu a intensidade da corrente provocada pelos compostos de urânio e tório. O primeiro resultado foi a descoberta de que a atividade dos compostos de urânio dependia apenas da quantidade de urânio neles presente — e de nada mais.

Do ponto de vista estritamente científico, foi essa sua grande descoberta. Ela provou que a radiação não era conseqüência nem da interação entre as moléculas, nem da formação de novas moléculas, nem ainda da reorganização de moléculas — como ocorre numa reação química normal. Essa energia só podia estar saindo de um lugar: dos átomos propriamente ditos. Certos elementos químicos são assim, e ponto.

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Entre as substâncias manipuladas por Marie Curie estavam dois minerais que continham grandes proporções de urânio: a pechblenda e a chalcolita. Ela intuía que esses minerais continham, na verdade, pequenas quantidades de outra substância — até então desconhecida, e consideravelmente mais ativa que o próprio urânio. Ao ser colocado diante da hipótese, Pierre ficou intrigado e resolveu interromper seus trabalhos com os cristais para dedicar-se aos átomos. Era 14 de abril de 1898.

Dois meses depois, algo extraordinário aconteceu. Marie pegou uma solução de nitrato de bismuto e misturou-a a sulfato de hidrogênio. Depois, recolheu o sólido precipitado (como o Nescau que se acumula no fundo do copo em vez de se diluir no leite) e mediu sua atividade. O resultado está sublinhado: “150 vezes mais ativo que o urânio”. No mesmo dia, depois de colocar sulfato de bismuto numa proveta e aquecê-lo a 300 graus, Pierre percebeu que um fino pó negro se depositara no vidro. Em dado momento, a proveta estourou, mas a atividade do pó negro foi medida: 330 vezes superior à do urânio. Quanto mais purificavam a substâmcia, mais ela se revelava radioativa.

Casal 20. (Desconhecido/Domínio Público)

Eles estavam diante de um novo elemento – que, em homenagem ao país natal de Curie, foi chamado de polonium (polônio, em português). De julho a novembro de 1898, o casal se afastou do laboratório para cuidar da saúde. Ambos sentiam um cansaço inexplicável e dores leves. Estavam frágeis e ficavam doentes continuamente. Pierre achava que estava com reumatismo. As pontas dos dedos de Marie doíam muito e rachavam à medida que ela manipulava as soluções purificadas. Eram as consequências da radioatividade — cujos perigos, hoje tão conhecidos, eram ignorados pelos dois.

De volta à pesquisa, obtiveram uma substância novecentas vezes mais radioativa que o urânio. Ao novo elemento deram o nome de radium (rádio). A 26 de dezembro, a descoberta é comunicada à Academia de Ciências numa nota assinada por Pierre, Marie e o químico Georges Bémont—chefe da equipe de pesquisas da escola. Só faltava provar que o rádio era um elemento presente na natureza, e não uma substância produzida em laboratório. Foi a isso que, entre 1899 a 1902, o casal se dedicou. Pierre mergulhou no estudo das propriedades da radiação, enquanto Marie tentava isolar a substância e obter um frasco de sal de rádio. Para consegui-lo, ela se debruçou sobre toneladas de resíduos de pechblenda.

“Eu passava às vezes o dia inteiro a mexer uma massa em ebulição com um bastão de ferro quase tão grande quanto eu. A noite, estava quebrada de cansaço”, escreveu Marie. Apesar disso, esse trabalho era sua paixão. À noite, depois de passar em casa e cuidar da filha, eles retornavam ao laboratório. “Para dar uma olhada”, dizia Marie. “Nossos preciosos produtos, para os quais não tínhamos abrigo, estavam colocados sobre mesas e prateleiras; de todos os lados víamos suas silhuetas fracamente luminosas, e essas luzes que pareciam suspensas na escuridão eram um motivo sempre novo de emoção e encantamento.” O rádio purificado é uma substância luminosa e fluorescente.

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Em 1900, Pierre foi finalmente convidado para ser professor na Sorbonne, enquanto Marie assumia o posto de professora de Ciências Físicas na Escola Normal Superior da cidade de Sèvres, perto de Paris, só para moças. Os novos empregos roubaram tempo das pesquisas. Mas, em março de 1902, Marie escreve: “Ra = 225,92”. Ou seja, ela havia chegado ao peso de um átomo de rádio. As experiências sobre as propriedades do rádio pareciam indicar que ele poderia ser útil no combate ao câncer.

A notícia correu mundo e o casal virou lenda. Pierre foi convidado a pronunciar uma conferência na respeitadíssima Royal Society de Londres, o templo supremo da ciência europeia. Marie recebeu menção honrosa ao apresentar sua tese de doutorado em Física, na Sorbonne. Em dezembro de 1903, enfim, a Academia Sueca concedeu o Prêmio Nobel de Física ao casal Curie e a Antoine-Henri Becquerel. Acostumados a uma vida quieta, os dois não conseguiram se livrar dos inúmeros convites para entrevistas, recepções, jantares ou espetáculos ao lado dos grandes nomes da sociedade. Um ano depois, nasceu mais uma filha, Eve – o que complicou ainda mais as coisas.

Amostras de rádio brilhando devido à exposição à luz ultravioleta. (Mauswiesel/CC BY-SA 3.0/Wikimedia Commons)

Pierre se incomodou com a vida de celebridade. Numa carta enviada a um amigo de infância, em julho de 1905, desabafa: “Há mais de um ano não faço nenhum trabalho e não tenho um minuto para mim. Esta é uma questão de vida ou de morte do ponto de vista intelectual”. Mesmo assim, pressionado pelo reitor da Universidade de Paris, no mesmo ano Pierre aceita disputar uma cadeira na Academia de Ciências—na primeira tentativa, anos antes, ele fora derrotado e sofrera com isso. Desta vez, ganha.

Em abril de 1906, Pierre abandonou os trabalhos com a radioatividade e se preparava para voltar a seus velhos cristais. Na tarde do dia 5, depois do almoço dos professores da Faculdade de Ciências, foi a pé até a editora que publicava seus artigos. A porta estava fechada: gráficos em greve. Decidiu, então, caminhar até o cais do Sena, em direção à Academia.

No meio do caminho, foi atropelado: a roda de uma charrete passou por cima de sua cabeça. Tinha apenas 47 anos. Arrasada com a notícia, Marie se abandonou a uma dor profunda. Sete meses mais tarde, depois de muita insistência, aceitou ocupar a cadeira que pertencera ao marido na Sorbonne. Sua aula inaugural reuniu mais de uma centena de pessoas dos mais diferentes meios. Ela não fez por menos: começou o curso retomando a última aula de Pierre, exatamente onde ele havia terminado. Nos quatro anos seguintes, além de lecionar, dedicou-se a extrair rádio puro, numa tarefa penosa.

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Taciturna, reservada, preocupada em preservar sua privacidade, Marie viu-se em 1911 no centro de um escândalo. A mulher do físico Paul Langevin —que freqüentou a roda dos Curie por longos anos—tornou pública a correspondência amorosa entre Marie e seu marido. O escândalo foi tal que, por alguns meses, com a saúde abalada, ela viveu escondida fora de Paris, com o nome de solteira. No meio desse furacão, a Academia Sueca Ihe concede seu segundo Prêmio Nobel—desta vez de Química, pela descoberta do rádio e do polônio.

Em 1914, a Primeira Guerra Mundial mobiliza as energias da cientista. Ela cria uma rede de máquinas de raios X em todo o front francês para melhorar o atendimento médico. No fim da guerra, retoma suas pesquisas: passa os dias trabalhando 12 ou 14 horas no laboratório. Em 1921, um giro de conferências a leva a vários países, entre eles o Brasil. Nos Estados Unidos teve uma acolhida triunfal—as mulheres se cotizaram para doar-lhe um grama de rádio, que ela utilizaria nas pesquisas sobre aplicações da radioatividade em Medicina.

Marie Curie em visita ao Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Ela está sentada, de chapéu. (Museu Nacional/Divulgação)

A essa altura, Marie era amiga de todos os grandes nomes da ciência. Albert Einstein, por exemplo, chegou a passar férias com ela, em sua casa no sul da França. O “curie” tornou-se a unidade de medida da radioatividade. Com a saúde minada e quase cega, Marie morreria aos 66 anos, em 1934, vítima de leucemia – provável conseqüência de anos de manipulação de substâncias radioativas. Um ano a mais de vida e ela teria tido a alegria de ver a filha Irène e o genro Frédéric Joliot—ambos físicos e formados à sombra da velha dama—receberem o terceiro Prêmio Nobel da família Curie.

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