O exílio caipira do anjo da morte
Josef Mengele passou 20 anos anônimo no Brasil. Hoje, sua ossada é material didático na USP
O exército alemão estava em frangalhos nos primeiros dias de 1945. A invasão da Rússia havia fracassado e, fragilizadas pelas múltiplas frentes de batalha por toda a Europa, as tropas de Adolf Hitler começaram a ceder espaço para o avanço dos soldados aliados e soviéticos. No front do Leste, o exército russo avançava sobre a Polônia e ameaçava chegar a Auschwitz, local do maior campo de concentração alemão, onde cerca de 1,1 milhão de pessoas seriam assassinadas até o final da 2ª Guerra.
O médico Josef Mengele era um dos principais responsáveis pelo extermínio. No dia 17 de janeiro de 1945, ao receber a notícia de que a artilharia soviética estava a apenas dez dias de distância do campo de concentração, ele decidiu recolher pertences e anotações. Guardou papéis importantes em duas caixas e fugiu de Auschwitz a bordo de um carro. As autoridades que permaneceram no campo queimaram os documentos deixados para trás.
A derrota era iminente. No final de abril, Hitler cometeu suicídio, e a Alemanha assinou a sua rendição em 8 de maio, pondo fim ao conflito em território europeu – japoneses e americanos seguiriam a matança até agosto de 1945. Mengele passou meses escondido. O médico tinha medo de ser capturado pelos Aliados e julgado pelas atrocidades que cometeu em Auschwitz. Em setembro, conseguiu uma identidade falsa, passou a atender pelo nome de Fritz Hollmann e foi colher batatas em fazendas do sul da Alemanha.
O destino rural foi um duro golpe para o ambicioso médico nascido em Günzburg, na Bavária, em 1911. Filho do dono de uma fábrica de equipamentos agrícolas, a terceira maior da Alemanha, Josef afastou a possibilidade de assumir os negócios da família para perseguir a carreira de cientista. Entrou para o curso de Medicina da Universidade de Munique em 1930 e foi contaminado pela cultura nazista da região – a cidade era sede do partido de Hitler. Um dos professores de Mengele, Ernst Rudin, defendia abertamente que a medicina devia ser usada para “higienizar” a humanidade. Depois que Hitler se tornou chanceler alemão, conceitos racistas se tornaram a norma, como a Lei para Prevenir Doenças Hereditárias, que previa a esterilização obrigatória de pessoas com problemas mentais, deficiências físicas, surdez ou cegueira.
Mengele mergulhou na filosofia eugenista: em 1938, filiou-se à Schutzstaffel, a SS, o grupo paramilitar de Hitler. No ano seguinte, os alemães invadiram a Polônia, dando início à 2ª Guerra. Josef tinha 28 anos e, como membro da SS, foi enviado ao front soviético como médico militar. Mengele voltou à Alemanha em janeiro de 1943 depois de sofrer um ferimento em campo de batalha e foi trabalhar no Instituto Kaiser Wilhelm de Antropologia, Genética Humana e Eugenia. Três meses depois, tornou-se capitão da SS e foi enviado para Auschwitz, quando Hitler já havia ocupado grande parte da Europa continental e fazia milhares de prisioneiros diariamente.
Experimentos macabros
Sua passagem pelo campo de concentração foi brutal. Uma das suas atividades mais rotineiras era a seleção dos prisioneiros que chegavam a Auschwitz. Alguns eram selecionados para trabalhar como escravos e outros eram enviados diretamente para a câmara de gás. Ao final de 1943, mandou matar 600 mulheres de um único prédio para extinguir um surto de tifo. Quando faltava comida para os milhares de prisioneiros jogados em Auschwitz, optava pela matança em massa: em 1944, ele ordenou o assassinato de 4 mil mulheres por dia nas câmaras de gás, ao longo de dez dias. Mengele lidava com as mortes como uma atividade administrativa. Sua verdadeira paixão ainda era a ciência e, em vez de somente matar os prisioneiros, decidiu fazer experimentos com eles antes de assassiná-los, a exemplo do que já vinha ocorrendo em outros campos de concentração. O primeiro foi logo com crianças: injetou pigmentos nos olhos dos pequenos na tentativa de reproduzir olhos azuis. É claro que não deu certo, e as crianças tiveram infecções e perderam a visão. Mais tarde, foram jogadas nas câmaras de gás.
Mengele tinha fascinação por genética. Como parte da ideologia de higienização da raça, o médico queria saber quais traços humanos eram fruto do DNA e quais eram influenciados pelo ambiente. Por isso, recrutava gêmeos idênticos enviados para Auschwitz e usava os irmãos como cobaias para experimentos macabros. Amputava membros, fazia transfusões de sangue, os infectava com doenças e depois comparava como cada gêmeo se comportava. Terminada a experiência, Mengele matava os irmãos e analisava os corpos. As anotações do médico sádico nunca foram encontradas, e tudo o que se sabe sobre as experiências vem dos relatos dos sobreviventes. A pseudociência praticada pelo Anjo da Morte, como ficou conhecido, não deixou qualquer contribuição para a medicina.
Fuga latina
Mengele não completou dois anos em Auschwitz até a fuga. No interior da Alemanha, o médico ficou quatro anos colhendo batatas. Em 1949, conseguiu um passaporte falso da Cruz Vermelha sob o nome de Helmut Gregor e fugiu para Buenos Aires com ajuda da sua família, que continuava abastada no pós-guerra – a mulher e o filho ficaram na Alemanha. A América do Sul se tornou um destino comum de nazistas. Cerca de 9 mil seguidores de Hitler desembarcaram na Argentina, Chile e Brasil a partir de 1945. O principal destino foi Buenos Aires, onde 5 mil encontraram refúgio, de acordo com documentos secretos recuperados por investigadores alemães em 2012. No Brasil, chegaram entre 1.500 e 2 mil nazistas.
Durante a guerra, os militares que governavam a Argentina desde o golpe de 1943 mantiveram a neutralidade. Quando Juan Perón assumiu, em 1946, o presidente teria facilitado a fuga dos nazistas ao fornecer passaportes argentinos com carimbos da Cruz Vermelha de acordo com o livro A Verdadeira Odessa, de Uki Goñi, jornalista argentino especializado no exílio dos aliados de Hitler na América do Sul. As comunidades italiana e alemã na Argentina eram fortes e ajudavam a sustentar o governo de Perón, presidente populista que admirava a forte liderança de Hitler e Mussolini. Não se sabe as razões que levaram Perón a facilitar a fuga dos nazistas, mas suspeita-se que ele tivesse interesse na presença de alemães com alto grau de educação na Argentina, como era comum entre os oficiais da SS. Os cientistas germânicos poderiam ajudar as indústrias e os militares platinos.
Em Buenos Aires, Mengele encontrou amparo na ampla rede de proteção nazista e montou uma carpintaria para produzir brinquedos. Tinha dinheiro de família e vivia com conforto – a ponto de voltar a usar o nome de batismo. Em 1956, divorciou-se da mulher, e a mudança no estado civil foi o suficiente para que o governo alemão, pressionado pelos Aliados para entregar criminosos de guerra, descobrisse seu paradeiro. As autoridades germânicas não estavam com pressa: levaram três anos para pedir a extradição de Mengele. Além do governo alemão, o serviço secreto de Israel, o Mossad, também estava à caça de nazistas. O médico sentiu que a vida portenha estava com os dias contados e fugiu para o Paraguai, onde ganhou guarida do ditador Alfredo Stroessner. Mas a barra não estava limpa: em 1960, o Mossad sequestrou Adolf Eichmann, considerado o arquiteto do Holocausto, em Buenos Aires, e levou o oficial nazista para julgamento em Jerusalém. Mengele percebeu que os israelenses estavam no seu encalço e fugiu para o Brasil.
Nome: Josef Mengele.
Nascimento: Gunzburg, 1911.
Onde viveu: São Paulo.
Que fim levou: Morto provavelmente por um AVC, sofrido em um banho de mar.
O médico desembarcou em São Paulo usando um novo nome, Peter Hochbichler – um camponês suíço. Logo encontrou uma ocupação. Em Nova Europa, cidade a 300 km da capital paulista, o nazista passou a administrar a propriedade rural do casal húngaro Geza e Gitta Stammer, que ele conheceu por intermédio do amigo Wolfgang Gerhard, um austríaco simpatizante de Hitler que morava no Brasil desde 1948. A família estranhou o comportamento do camponês suíço. Ele ouvia música clássica e discutia filosofia e história, temas pouco comuns entre os trabalhadores rurais. Além disso, tinha receio de sair de casa e só deixava a propriedade vestindo capa e chapéu, cercado de cachorros.
Em 1962, os Stammer e Mengele compraram juntos uma fazenda maior em Serra Negra, também em São Paulo. O clima serrano agradou o alemão, mas ele continuava com medo de ser descoberto. Para observar quem se aproximava na propriedade, construiu uma torre de cinco metros na fazenda – Mengele dizia que usava a construção para observar pássaros. Um dia, um visitante foi à propriedade para comprar frutas e, na saída, deixou um jornal com a foto de Mengele estampada, devidamente identificado como nazista. A família encontrou o jornal e confrontou “Peter” sobre sua verdadeira identidade. O falso camponês suíço admitiu que havia sido oficial da SS, e a relação com os Stammer nunca mais foi a mesma.
Sozinho e paranoico
A família se mudou mais uma vez em 1969, dessa vez para um sítio em Caieiras, na grande São Paulo, e, apesar dos atritos, Mengele foi junto. Próximo da metrópole, o médico passou a conviver com mais frequência com o amigo Wolfgang e reduziu o nível de paranoia. Mas o austríaco voltou para a Europa em 1971 e, como presente, deixou para Mengele a sua carteira de identidade. Os Stammer também abandonaram o médico nazista. Em 1974, venderam a propriedade de Caieiras, e Mengele passou a viver num casebre ao lado da represa Billings. Sozinho, o alemão sentiu o peso da idade. Tinha insônia, próstata inflamada, pressão alta, enxaquecas e dormia ao lado de uma pistola, com medo de ser descoberto por caçadores de nazistas. Sua cabeça estava a prêmio. Governos e organizações ofereciam uma recompensa de US$ 3,4 milhões para quem fornecesse informações sobre o paradeiro de Mengele (uma bolada de R$ 22 milhões em valores atualizados).
Numa tarde de fevereiro de 1979, o médico foi convidado para dar um passeio na praia de Bertioga com um casal de amigos, os austríacos Wolfram e Liselotte Bossert. Passou dois dias trancado no quarto, mas decidiu caminhar na areia na tarde do dia 7 de fevereiro. Às 16h30, entrou no mar. E não voltou mais. Entre as ondas, provavelmente sofreu um AVC e morreu aos 67 anos. O soldado que atendeu à ocorrência revistou o cadáver e encontrou uma carteira de identidade: segundo o documento, o morto se chamava Wolfgang Gerhard e tinha 54 anos – Mengele havia adotado a identidade do amigo como se fosse a sua. O casal Bossert ficou em silêncio.
O nazista tinha o desejo de ser cremado, mas a legislação brasileira exigia que um parente direto autorizasse a operação. E não havia nenhum familiar de Gerhard para assinar a papelada. O corpo de Mengele foi enterrado no cemitério Nossa Senhora do Rosário, em Embu das Artes, sob o nome de Wolfgang Gerhard.
Em fevereiro de 1979, o Anjo da Morte foi tomar um banho de mar e morreu vítima de um AVC. Tinha 67 anos. Mas as autoridades só descobriram seu destino anos depois. Sua ossada mora na USP.
O mundo não sabia da morte do médico alemão, e caçadores de nazistas do mundo todo seguiam no seu encalço, na esperança de julgá-lo por crimes de guerra. Em 1985, quarenta anos depois do fim da 2ª Guerra, autoridades americanas, israelenses e alemãs ocidentais anunciaram um esforço conjunto para capturar Mengele. O grupo de investigadores encontrou cartas dos Bossert para o ex-secretário da família Mengele, nas quais lamentava a morte do “amigo em comum”. Era a pista que faltava.
A solução do caso ficou a cargo da Polícia Federal brasileira, que monitorou os passos dos Bossert e encontrou objetos pessoais de Mengele com a família. O casal austríaco confirmou ter protegido o nazista e levou os policiais até o cemitério de Embu das Artes. O corpo de Mengele foi exumado e levado para o Instituto Médico Legal de São Paulo, onde foi examinado por uma equipe liderada pelo médico Daniel Romero Muñoz. Mais tarde, o material genético foi comparado com o DNA do único filho de Mengele, Rolf. Deu positivo, e a busca pelo Anjo da Morte foi oficialmente encerrada.
A jornada da ossada, no entanto, teve um último capítulo. Por 30 anos, os restos mortais de Mengele ficaram armazenados dentro de um saco plástico no IML. Rolf, o filho, não pediu seu envio para a Alemanha, e as autoridades brasileiras decidiram deixar o saco guardado em um local seguro para evitar que caçadores de relíquias nazistas atacassem o novo túmulo ou que a sepultura se tornasse um ponto turístico para fãs de Hitler. Em 2016, Muñoz, agora professor de Medicina da USP, conseguiu a transferência do saco de Mengele para a universidade. Em aula, usa os ossos do médico para ensinar para os alunos da pós-graduação como identificar uma pessoa pelos restos mortais. O médico que praticou algumas das experiências mais horripilantes da história, no fim, se tornou material didático.
Josef Mengele: objeto de estudo
Antes do exame de DNA, feito em 1992, a identidade de Josef Mengele foi verificada pelas marcas que a vida deixou em seu esqueleto. Quando Mengele se afiliou à SS, teve todos os membros medidos, o histórico médico vasculhado e as obturações anotadas. Foi o que o entregaria.
1. SINUSITE
O buraco na face provavelmente decorreu de uma sinusite crônica, alimentada por abscessos dentários.
2. FORAME INCISIVO
Quando jovem, Mengele tinha uma grande distância entre os dentes incisivos superiores, que desapareceu quando passou a usar um implante. Ainda assim, o enorme forame incisivo indica que os dentes originais eram separados.
3. FICHA DENTÁRIA
Foram analisados três molares superiores obturados, o suficiente para checar com a ficha dentária da SS.
4. BACIA
A borda posterior do acetábulo – onde o fêmur se encaixa com a bacia – apresentava uma anormalidade: um esporão formado provavelmente numa fratura. A posição do esporão indicava que a fratura ocorrera com as pernas dobradas. De fato, conforme o arquivo da SS, Mengele sofreu um acidente de moto em Auschwitz.
5. COXO
O nazista tinha a perna esquerda mais comprida. Para não mancar, usava uma palmilha de alumínio no sapato direito.