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Como Galileu inventou a ciência moderna

Ele decifrou as luas de Júpiter. As fases de Vênus. O movimento dos pêndulos. Morreu perseguido – e a história provou que ele estava certo.

Por Pedro Cavalcante, com comentário de Milton Vargas (1914 - 2011)
Atualizado em 7 jan 2019, 19h05 - Publicado em 30 abr 1989, 22h00

[Este é um texto das antigas: foi publicado na SUPER em 30 de abril de 1989, e tem um comentário do engenheiro Milton Vargas, que lecionou na Escola Politécnica da USP e morreu em 2011. Divirta-se com o flashback.]

Por ter afirmado que a Terra se move em tono do Sol, Galileu Galilei, um dos gênios da grande revolução científica do século XVII, foi preso e, sob ameaça de tortura, obrigado a uma retratação humilhante. Seu julgamento pelos tribunais da Inquisição é um dos grandes marcos negativos da história do pensamento. Diante da Inquisição, Galileu representa a eterna luta entre a rebeldia e o conformismo intelectual, entre a liberdade de pensamento e a censura. É também a demonstração de que uma verdade pode ser sufocada de modo brutal – e mesmo assim, emergir intacta depois.

No entanto, a importância de Galileu vai muito além do seu histórico confronto com a Inquisição. Em torno de sua figura criaram-se lendas e equívocos. Muitos o admiram por coisas que não fez. Ele não inventou sozinho o telescópio, nem o termômetro, nem o relógio de pêndulo – embora sua participação tenha sido essencial nos três casos. Também nunca atirou pesos do alto da torre de Pisa, para demonstrar que corpos de massas diferentes caem com a mesma velocidade. Chegou a essa conclusão realizando experimentos um pouco mais tediosas (como rolar bolas de ferro em um plano inclinado).

Seu maior legado, porém, não foi uma descoberta científica específica, e sim um jeito de pensar. Galileu insistiu que a linguagem adequada para a filosofia natural (o nome que se dava, na época, às ciências exatas e biológicas) era a matemática, e não a palavra. Que qualquer afirmação sobre a natureza deveria partir da observação da própria natureza. Que é preciso acumular dados e fazer experimentos. Em resumo: sem Galileu, não haveria

Origens

Galileu Galilei nasceu na cidade de Pisa em 1564, mesmo ano da morte do pintor e escultor Michelangelo e do nascimento do dramaturgo inglês William Shakespeare. Exatos 31 anos antes, o matemático e astrônomo polonês Nicolau Copérnico publicou sua obra maior – Das revoluções dos corpos celestes –, defendendo a teoria de que a Terra se move em torno do Sol, e não o contrário.

Essa teoria seria defendida e desenvolvida por Galileu e seu contemporâneo Johannes Kepler, que primeiro descreveu a trajetória elíptica dos planetas. A síntese final desses trabalhos foi a Teoria da Gravitação Universal, formulada pelo físico e matemático inglês Isaac Newton que, por coincidência, nasceu em 1642, o mesmo ano em que Galileu morreu.

Filho de Vincenzo Galilei, músico, o futuro cientista começou seus estudos superiores na Escola de Medicina de Pisa, em 1581. Quatro anos depois, foi obrigado a abandonar o curso – embora houvesse quarenta bolsas disponíveis, ele não conseguiu nenhuma. Mas sua verdadeira vocação não era ser médico, e sim físico (não que exsitisse o conceito de físico na época, é claro). Aos 17 anos, assistindo a uma cerimônia na catedral de Pisa, observou um lustre que oscilava no teto. Controlando o tempo pelos seus próprios batimentos cardíacos, verificou que o intervalo entre cada oscilação era sempre o mesmo – não importava se o lustra oscilava 10 centímetros ou 10 metros.

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Ele simulou o movimento pendular do lustre em um experimento controlado, e sugeriu que essa característica do pêndulo poderia tornar os relógios mais precisos. A idéia foi logo aproveitada por outros inventores e, apenas três décadas após a morte de Galileu, o erro médio dos melhores relógios havia caído de 15 minutos por dia para apenas 10 segundos.

Ao abandonar a Faculdade de Medicina, Galileu foi lecionar em Florença. Durante os quatro anos em que trabalhou ali, publicou um trabalho em que descrevia a balança hidrostática – essa, sim, uma invenção sua – utilizada para medir o peso específico dos sólidos ou a densidade dos líquidos. Graças a esse trabalho, tornou-se, aos 25 anos, professor de Matemática, e foi lecionar na Universidade de Pisa, que quatro anos antes lhe recusara uma bolsa como estudante.

Carreira

Foi em Pádua, onde viveu dezoito anos – de 1592 a 1610 –, lecionando Matemática, que Galileu desenvolveu a parte mais consistente de suas pesquisas, sobretudo as relativas à resistência dos materiais, que lhe foram sugeridas pela observação dos trabalhos nos estaleiros navais do Arsenal de Veneza, que visitou várias vezes. O problema era descobrir por que estruturas geometricamente semelhantes, de máquinas ou edifícios, tendo desempenho satisfatório quando construídas em determinada escala, fracassam ao serem construídas em escala maior. Galileu encontrou a explicação e estabeleceu sistemas de cálculo que permitiram obter o dimensionamento seguro das estruturas.

Já então estava, também, convencido do acerto das teorias de Copérnico sobre a movimentação dos astros, mas em suas aulas continuava a ensinar que a Terra era o centro do Universo e em torno dela giravam planetas e estrelas. Não tinha medo da Inquisição, ainda, pois nessa época a própria Igreja não dava importância ao assunto. Conforme confessou numa carta escrita a Kepler, datada de 1597, temia o ridículo. E tinha razão. A imobilidade da Terra não era apenas uma teoria defendida pela tradição da escola de Aristóteles, mas sobretudo parecia perfeitamente de acordo com o senso comum.

Qualquer pessoa pode observar, diariamente, que o Sol, a Lua e as estrelas se movimentam; no entanto, nada havia, na época, que pudesse mostrar o movimento da Terra, sugerido teoricamente apenas em complicados cálculos matemáticos. Assim, era fácil imaginar: se a Terra estivesse em movimento, as pessoas sobre ela perderiam o equilíbrio e as nuvens e a Lua ficariam irremediavelmente para trás.

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O debate teria permanecido nesse nível, se não ocorresse a invenção do telescópio, não se sabe ao certo por quem nem onde. Os primeiros telescópios surgiram na Holanda, por volta de 1600 e logo se espalharam por toda a Europa. Galileu construiu seu próprio telescópio sem nunca ter visto um. Bastou-lhe a descrição do instrumento que aparecera em Veneza. O primeiro aumentava nove vezes; o segundo, trinta vezes, e era superior a qualquer outro já fabricado.

O grande mérito de Galileu foi apontar seu telescópio para o céu. Descobriu, assim, tantas coisas novas que em poucos meses escreveu e publicou o Sidereus Nuncius (em português, “O mensageiro das estrelas”), um opúsculo de apenas 24 páginas extraordinariamente rico em revelações. A Lua, relatou ele, não tem uma superfície lisa, mas está cheia de irregularidades, como a Terra. Voltando-se para as estrelas, que então se supunha fixas, surpreendeu-se ao descobrir miríades de outras jamais vistas, “que em número superam mais de dez vezes as anteriormente conhecidas”. Percebeu que a Via Láctea não era constituída, como pretendia Aristóteles, por “exalações celestiais”, mas era um aglomerado de estrelas. E descobriu quatro planetas – hoje dizemos satélites – girando em torno de Júpiter.

Não havia, ainda, nenhuma prova conclusiva do acerto do sistema heliocêntrico proposto por Copérnico. Mas já ficava difícil admitir que a Terra era o centro do Universo, se havia corpos girando em torno de Júpiter. E como continuar acreditando no dogma de que as estrelas haviam sido criadas apenas para deleite dos homens, se a maior parte delas era invisível a olho nu? As resistências ao uso do telescópio, sobretudo na Astronomia, foram tão grandes que o próprio Galileu considerou necessário conferir com rigor a exatidão dos seus instrumentos.

Focalizava a distância os mais variados objetos e em seguida ia observá-los de perto, para ver se a olho nu se confirmavam as imagens observadas de longe pelo instrumento. Ainda assim, as duas primeiras demonstrações públicas não foram um sucesso. Em 24 de abril de 1610, em Bolonha, pretendeu mostrar os satélites de Júpiter a um grupo de convidados ilustres. Ninguém saiu convencido de nada. Não que fossem todos mal-intencionados – apenas, embora o telescópio de Galileu fosse o melhor já construído, era ainda muito precário. Seu campo visual era tão pequeno que o milagre não seria conseguir enxergar os satélites, mas localizar no céu o próprio planeta Júpiter.

Logo, no entanto, Galileu recebeu o apoio entusiasmado de Kepler, então no auge do prestígio como matemático imperial na corte de Praga. Em seguida, converteram-se algumas das mais destacadas figuras da ordem dos jesuítas, que chegaram a homenageá-lo em Roma, onde o próprio papa Paulo V o recebeu numa audiência amistosa. Para coroar tudo, foi convidado a morar em Florença, como “primeiro matemático e filósofo dos Medicis”. Tudo isso aconteceu em 1610, quando ele tinha 46 anos. Como se explica que 23 anos mais tarde estivesse em desgraça submetido aos juízes da Inquisição?

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Perseguição

Dois motivos contribuíram para isso. Primeiro, a mudança política da Igreja Católica, causada pela pregação protestante que, tomando ao pé da letra as palavras da Bíblia, multiplicava seus adeptos por toda a Europa. Roma decidiu fortalecer sua própria ortodoxia e começou a vigiar teorias suspeitas, como as defendidas por Galileu. Mas seu pior inimigo foi seu próprio temperamento. Ou melhor, uma das facetas de seu temperamento contraditório. Conforme a hora e as circunstâncias, Galileu sabia mostrar-se alegre e comunicativo, amigo das boas coisas da vida.

Mas a personalidade de Galileu tinha um lado sombrio: quando entrava em polêmicas científicas, era sarcástico, brutal, de um orgulho desmedido. Gastou muita energia atacando supostos rivais. Em 1616, finalmente, deu-se seu primeiro confronto com a Igreja. Representava o Vaticano o cardeal Roberto Belarmino, autor do catecismo em sua forma moderna, e que seria beatificado em 1923 e santificado em 1930. Ele, pessoalmente, parecia inclinar-se pela teoria do heliocentrismo, mas estava em minoria entre os teólogos da Inquisição. Ainda assim, concedeu a Galileu autorização para continuar a estudá-la, como hipótese matemática, mas não para defendê-la publicamente.

Galileu afastou-se da polêmica durante sete anos. Voltou com força redobrada em 1623, quando seu grande amigo, o cardeal Maffeo Barberini, foi eleito papa com o nome de Urbano VIII. Já com a saúde abalada, foi recebido pelo pontífice em seis longas audiências. Foram-lhe conferidas honras e favores, e permissão para descrever abertamente as teses de Copérnico, desde que descrevesse simultaneamente e de forma imparcial as teorias tradicionais. Deveria concluir afirmando a impossibilidade de decidir qual era a mais correta, visto que Deus, sendo onipotente, poderia atingir os fins observados pelo homem da maneira que melhor entendesse.

Oito anos mais tarde, em 1632, Galileu publicou os Diálogos sobre os dois maiores sistemas do mundo – Ptolomeu e Copérnico, heliocentrismo e geocentrismo. À primeira vista, seguia a orientação papal, tanto que o livro foi autorizado. A obra reproduz uma conversa entre três personagens: Salviati que defende as teses de Copérnico; Sagredo, um observador neutro; e Simplicius, defensor de Aristóteles e Ptolomeu.

O problema foi a caracterização: Salviati é sempre brilhante, Sagredo logo abandona a imparcialidade e passa a apoiá-lo com entusiasmo, e Simplicius é pouco mais que um idiota, ridicularizado do princípio ao fim.

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Publicada a obra, Urbano VIII percebeu que fora enganado e pôs a máquina da Inquisição em marcha. A acusação principal contra Galileu era desobediência às ordens recebidas do cardeal Belarmino para não defender as idéias de Copérnico. No primeiro interrogatório, abril de 1633, o réu alegou que tudo não passara de um mal-entendido:

“Nem mantive nem defendi no meu livro a opinião de a Terra se mover e o Sol permanecer estacionário demonstrando antes o oposto, e mostrando serem fracos e não conclusivos os argumentos de Copérnico”. Ninguém poderia acreditar nisso, pois no livro incriminado o autor chamava os adversários de Copérnico de “anões mentais”, idiotas” e “indignos do nome de seres humanos”.

Aconselhado por um cardeal amigo, o sábio mudou de tática no segundo interrogatório. Admitiu que um leitor desprevenido, diante de alguns trechos do livros, poderia imaginar tratar-se de uma defesa de Copérnico, mas garantia não ter sido essa sua intenção. E se propunha escrever uma continuação do diálogo, em que deixaria claro seu modo de pensar. No terceiro interrogatório, sob ameaça de tortura que afinal não se concretizou, os inquisidores tentaram fazê-lo confessar que acreditava mesmo no que dizia Copérnico – o que, aliás, estava evidente no livro.

Galileu não confessou e recebeu a sentença: os Diálogos foram proibidos, o autor obrigado a abjurar da opinião copernicana segundo uma fórmula que lhe passaram. De quebra, condenaram-no à prisão domiciliar, enquanto aprouvesse ao Santo Ofício. Não se pode dizer que, materialmente, tenha sido maltratado. Sua prisão era um apartamento de cinco aposentos, com janelas dando para os jardins do Vaticano, criado particular e mordomo para cuidar das refeições e do vinho. Seus últimos anos de vida, na companhia dos discípulos Torricelli e Vincenzo Viviani, foram dos mais produtivos.

Em 1636 terminou Diálogos relativos a duas novas ciências, obra na qual retoma, de forma ordenada, observações sobre dinâmica que fora acumulando durante toda a vida. Lança, igualmente, as bases do estudo racional da resistência dos materiais. A igreja demorou alguns séculos, mas acabou reconhecendo o erro cometido. Em 1983, frente a uma platéia de mais de trinta ganhadores do Prêmio Nobel, o papa João Paulo II admitiu: “A experiência da Igreja durante o caso Galileu e depois dele levou a uma atitude mais madura e a uma compreensão mais acurada de sua própria autoridade”.

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O método científico de Galileu

por Milton Vargas (1914 – 2011)

É no próprio centro do movimento renascentista, em que pintores e arquitetos confiam no que seus próprios olhos percebem, que Galileu Galilei propõe seu método experimental. Pois é nos Discursos sobre duas novas ciências, escritos nos anos de reclusão, após ter sido condenado pela Inquisição, que surge mais nitidamente o método galileano, sob o qual se constrói a ciência moderna.

É o seguinte: premido pela necessidade de resolver um problema, quando ainda não tenho condições de chegar a uma solução analítica, baseio-me numa conjectura. Isto é, em algo ainda não necessariamente verdadeiro. Algo ideal, pois não necessariamente induzido de observação empírica e também não necessariamente evidente por si mesmo. Mas algo plausível, diante de tudo o que já se conhece, na época, sobre o fenômeno.

Por exemplo: é plausível, mas não evidente, que na ausência de resistências de atrito ou do ar, os corpos caiam com velocidade uniformemente crescente com o tempo, independentemente de seu peso, tamanho e forma. A partir dessa conjectura deduzo – preferencialmente com o emprego da Matemática – conclusões particulares. Por exemplo: posso demonstrar matematicamente que, se os corpos caírem com velocidade uniformemente acelerada, sem sofrer resistência, os espaços percorridos em intervalos iguais de tempo estarão entre si como os números ímpares: 1, 3, 5, 7… Isto é, no primeiro segundo caem de uma certa altura h; no segundo, 3h; no terceiro, 5h etc.

Para verificar essa conclusão, faço uma experiência. Mas não é uma qualquer; não é uma observação ocasional do fenômeno. É um experimento organizado e interpretado de acordo com a conjectura. Por exemplo: armo um plano inclinado e sobre ele deixo rolar uma bola, em vez de deixá-la cair livremente. Com isso elimino a resistência do ar. Por outro lado, a canaleta do plano inclinado é bem polida e a bola é dura e lisa para eliminar o atrito. Divido as alturas do plano inclinado segundo os números primos: 1,3,5,… Deixo rolar a bola e, se os tempos para percorrer essas alturas são iguais, então a conjectura será verdadeira.

No experimento de Galileu, repetido várias vezes, assim se deu. Portanto, a conjectura é verdadeira: os corpos caem com velocidade uniformemente acelerada. É esse o método galileano: o da verificação experimental de um conjectura – a qual pode ser, inclusive, contrária a toda evidência e não precisa ser necessariamente induzida de fenômenos observados. Torna-se verdadeira se o experimento com ela concordar. O método foi tão revolucionário que transformou a ciência em algo radicalmente novo. Antes dele, era evidente que a Terra estava parada e que ocupava um lugar privilegiado no Cosmo. Tudo que ele tentou demostrar contrariava a evidência. Deveria, portanto, ser falso. No entanto, ele tinha razão. Era uma razão nova que se instituíra no mundo fazendo surgir uma nova verdade e, com essa, o mundo moderno.

O engenheiro Milton Vargas foi professor da Escola Politécnica da USP.

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