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O pensamento selvagem de Lèvi-Strauss

O pensador francês levou a antropologia além do estudo das sociedades na tentativa de desvendar as leis da própria condição humana

Por Sérgio P. de Amaral, Celso Miranda
Atualizado em 7 nov 2016, 15h47 - Publicado em 31 ago 2003, 22h00

Pense na cena: o rei da França e um cacique tupinambá, frente a frente, perante damas e cavalheiros da corte, em Paris. A cena inusitada se deu no século 16, quando os franceses haviam estabelecido no Brasil a sua efêmera França Antártica e o rei Carlos IX, desejoso de conhecer os hábitos estranhos de seus novos súditos, levou um chefe e dois guerreiros indígenas para a Europa.

Foi uma sorte que entre cortesãos e servidores de Sua Alteza estivesse presente o filósofo Michel de Montaigne, que descreveu os acontecimentos no livro Ensaios. Graças a ele ficamos sabendo que os chamados “selvagens” ficaram tão espantados quanto os franceses. “Eles notaram”, escreveu, “que há entre nós homens bem fornidos que gozam de todas as comodidades da vida, enquanto às suas portas mendigam os homens da nossa outra metade, emagrecidos pela fome e pela pobreza.”

As memórias de Montaigne diferem do relato que o conquistador Nicolas Durand de Villegaignon enviava da América: “Essa gente é muito arisca e selvagem, não tem nenhuma cortesia e é muito diferente de nós; não têm religião, não conhecem a honestidade e não sabem distinguir o certo do errado; são animais com figura de homens”.

As duas narrativas revelam faces do comportamento que os europeus teriam frente aos povos do Novo Mundo: o colonizador, de olho nas riquezas naturais, sente-se filho de uma civilização superior, com direito a explorar os “selvagens”. O filósofo sabe não ser tão fácil distinguir o certo do errado e aproveita o contato para conhecer melhor não só a espécie humana, mas a própria civilização.

Claude Lévi-Strauss, que criou, já no século 20, as teses da moderna antropologia, está no segundo caso. Um pajé tupi poderia dizer que o espírito de Montaigne continuou a inspirá-lo. O principal herdeiro dessa linhagem tornou-se o cacique do chamado estruturalismo. Mas trata-se de um descendente rebelde. Em Montaigne, o contato com os tupinambás inspirou o sentimento de que “por certo, o homem é um tema maravilhosamente vão, diverso e ondulante; não é apropriado nele fundar um juízo constante e uniforme”. Lévi-Strauss aceitou a primeira parte, mas desafiou a segunda. Para ele, a antropologia devia buscar, por trás da diversidade da espécie humana, o que ela tem de universal.

O pensamento selvagem de Lèvi Strauss: Estruturas
“Esta é a evolução típica a que assistimos, desde o Egito até a China, no momento em que a escrita faz sua estreia: ela parece favorecer mais a exploração dos homens do que o seu estabelecimento.“ Cadiueu – Mato Grosso (Marcelo Zocchio)

Estruturas

Essa busca, porém, não poderia se basear em preconceitos ocidentais. Era preciso romper com as teorias evolucionistas do século 19, segundo as quais as sociedades ditas “primitivas” representam estágios ultrapassados pelo Ocidente no caminho do progresso. A saída era comparar as mais variadas sociedades em busca das chamadas “invariantes”, aquilo que todas têm em comum. Por exemplo: o tabu do incesto, a capacidade de comunicação, a necessidade de preparar os alimentos e a interação com a natureza.

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Estudando como esses aspectos se manifestam em cada sociedade, Lévi-Strauss pretendeu decifrar as relações entre o ser humano, a natureza e a cultura já em sua primeira obra clássica: As Estruturas Elementares do Parentesco, de 1949. A inspiração para as “estruturas” veio da linguística. Para o antropólogo, as sociedades se organizam como se fossem frases ou modos de falar, que podem ser diferentes entre si, mas obedecem a um mesmo código ou sistema universal.

Essa concepção foi revolucionária, pois rompia para sempre a tradicional dicotomia entre natureza e cultura. O estruturalismo refutou a oposição entre esses termos ao mostrar como a cultura é uma produção – e não uma negação – da natureza.

O pensamento selvagem de Lèvi Strauss: Tristes tópicos
“A música e o mito são linguagens que transcendem, cada uma à sua maneira, o nível da linguagem articulada.“ Bororo – Mato Grosso (Marcelo Zocchio)

Tristes trópicos

Se os brasileiros do século 16 foram até Montaigne, Lévi-Strauss veio até os do século 20. Na década de 30, a recém-criada Universidade de São Paulo (USP) convidou o jovem Lévi-Strauss para a cadeira de sociologia. A aventura transatlântica mudaria sua vida e a história das ciências sociais.

Claude Lévi-Strauss nasceu em Bruxelas, na Bélgica, em 1908, filho de judeus de origem francesa. Seu pai era um pintor e o ambiente em sua casa era marcado pelo culto às artes, à poesia e à música. A Primeira Guerra Mundial marcou sua infância e quando ele chegou à Universidade de Paris, em 1927, pouco restava da confiança européia nos ideais de progresso da civilização ocidental.

Formado em direito e filosofia, Lévi-Strauss lecionava num liceu quando lhe ofereceram o cargo na USP. Nos finais de semana, disseram-lhe, poderia visitar aldeias indígenas nos arredores da cidade. Imagine sua decepção quando chegou a São Paulo, que em 1934 já era a mais urbanizada das cidades brasileiras. Ele não se deu por vencido e aproveitou suas férias na Universidade para viajar pelo interior do país. Conheceu os cadiueus, junto à fronteira com o Paraguai e visitou aldeias bororos, no Mato Grosso do Sul. Foram cinco meses de contato direto com grupos indígenas. A temporada no Brasil durou até 1937 e está narrada no livro Tristes Trópicos, de 1955.

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Em 1938, com apoio do governo francês, Lévi-Strauss retornou ao Brasil. Dessa vez, a base foi Cuiabá e ele visitou os nambiquaras do Mato Grosso e os tupi-cavaíbas do Alto-Machado, no Amazonas. Mas os tambores do Ocidente começaram a soar e Segunda Guerra fez com que ele regressasse à França para o serviço militar. Quando os alemães invadiram o país ele partiu para Nova York, onde estava a nata da intelectualidade européia, com quem passou a conviver e debater suas idéias. Foi a conclusão de sua formação teórica. Na juventude, os interesses intelectuais de Lévi-Strauss foram a geologia, a psicanálise e o marxismo. De Sigmund Freud, ele herdou as teses sobre o inconsciente e a certeza de que a combinação de elementos mais insólita (como os sonhos) é sempre passível de uma interpretação. O legado de Karl Marx não foi apenas a crítica da civilização ocidental, mas a idéia de que é necessário organizar os dados da realidade numa teoria original.

Anos depois, ele passaria a criticar vários aspectos da psicanálise e do marxismo e abandonaria os estudos de geologia em troca de uma paixão pela botânica e pela zoologia. Mas todos esses interesses marcaram o estruturalismo. “Os três demonstram que compreender consiste em reduzir um tipo de realidade a outro; que a realidade verdadeira nunca é a mais patente; e que a natureza do verdadeiro já transparece no zelo que este emprega em se ocultar”, escreveu.

O pensamento selvagem de Lèvi Strauss: Signos e mitos
“Enquanto os brancos proclamavam que os índios eram animais, os segundos contentavam-se em suspeitar que os primeiros fossem deuses. Em nível idêntico de ignorância, o último procedimento era, com certeza, mais digno de homens.“ Tupi-cavaíba – Amazônia (Marcelo Zocchio)

Signos e mitos

Em Nova York, enquanto a Europa mergulhava na barbárie, o clima intelectual era de efervescência. Lévi-Strauss passou a frequentar o grupo dos surrealistas – como o poeta André Breton e o artista Max Ernst – e familiarizou-se com as pesquisas de Franz Boas, a quem Lévi-Strauss sempre reconheceu como o verdadeiro precursor do estruturalismo. Primeiro, porque foi o alemão radicado nos Estados Unidos quem afastou de vez da antropologia o etnocentrismo – a presunção de superioridade ocidental –, instituindo a perspectiva relativista, segundo a qual é necessário entender as outras culturas sem impôr-lhes os valores da cultura ocidental. Mas principalmente porque ele era linguista e concebia a gramática como uma “estrutura subjacente” da linguagem, inconsciente para os falantes.

Mas o encontro mais importante desse período foi com o linguista russo Roman Jakobson, seu amigo e interlocutor por toda a vida. Ele e Nicolai Troubetskoy tinham desenvolvido as idéias do suíço Ferdinand de Saussure sobre a linguagem. Eles mostraram que um fonema – a menor unidade linguística – só é significativo quando relacionado a outros fonemas, formando sílabas e palavras. De forma análoga, Lévi-Strauss acreditava que os traços culturais de uma sociedade (mitos, rituais, práticas alimentares etc.) só podem ser compreendidos se analisados em conjunto. Sob o impacto dessa perspectiva estrutural, Lévi-Strauss formulou sua própria maneira de compreender o homem. Para ele, o que distingue o ser humano dos outros animais é o uso de símbolos para se comunicar. Essa sintonia com a linguística serviu-lhe também para o perfil do antropólogo estruturalista.

Ele não se preocupa com as particularidades de cada grupo humano: seu objetivo não é conhecer uma sociedade específica, mas o que há de universal em todas elas. Há em todas as sociedades, por exemplo, sistemas de parentesco e restrições matrimoniais. Trata-se de um fenômeno humano tão universal quanto a linguagem.

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Lévi-Strauss estudou tais regras como se fossem signos articulados num processo de comunicação das alianças entre grupos sociais. O resultado foi uma nova compreensão do incesto, que refutou as explicações biológicas ou morais. O mais importante não é a proibição de manter relações sexuais com certas mulheres (como a mãe ou a irmã) e sim a permissão para tê-las com outras. A interdição de umas permite a circulação de outras e assim constitui alianças fundadoras da vida social. Por isso, o sistema de parentesco é visto como um artifício “por meio do qual se cumpre a transição entre a natureza e a cultura”.

O estudo sobre o parentesco – um dos temas tradicionais da antropologia – foi uma espécie de prova de fogo do estruturalismo e Lévi-Strauss passaria a testar seu método numa área menos explorada: a mitologia. Num artigo de 1955, “O Estudo Estrutural do Mito”, ele afirmou que os mitos não podem ser estudados isoladamente: “Um mito é composto de todas as suas variantes”. Era preciso pesquisar como as narrativas tradicionais passam de uma sociedade para outra e vão se transformando.

Foi isso o que Lévi-Strauss fez na sua obra máxima: a série em quatro volumes das Mitológicas, de 1960. Em mais de 2 mil páginas, ele analisa um total de 813 mitos – e suas centenas de variantes – originários de povos do continente americano, desde os bororos, os jês e os tupi-cavaíbas do Brasil até os hopi, os pueblo, os mohawk e os kwakiutl da América do Norte. O objetivo é desvendar a lógica interna dos mitos e mostrar como eles representam a passagem da natureza para a cultura.

No primeiro volume, chamado O Cru e o Cozido, o antropólogo compara a análise conjunta dos mitos americanos à audição de uma sinfonia. Os membros da orquestra, porém, estão separados no tempo e no espaço, e cada um executa seu fragmento sem saber que não tem a partitura completa. Só é capaz de ouvir a música inteira quem estiver à distância. O concerto, segundo Lévi-Strauss, iniciou-se há milênios e hoje uns poucos músicos remanescentes continuam a tocar.

O antropólogo estudou a recorrência de temas e narrativas e reduziu-as a oposições simples como cru/cozido, molhado/seco, macho/fêmea. Influenciado pela lógica binária da informática, que então se desenvolvia rapidamente, o antropólogo sustentou que esses antagonismos que organizam a cultura têm uma origem natural: correspondem à estrutura do próprio cérebro humano.

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O pensamento selvagem de Lèvi Strauss: Concreto
“Para nós, europeus e apegados à terra, a aventura ao coração do Novo Mundo significa antes de mais nada que ele não foi o nosso, e que carregamos o crime de sua destruição.“ Nammbiquara – Amazônia (Marcelo Zocchio)

Concreto

Os mitos, portanto, são maneiras de pensar. Mas toda a exploração da mitologia ameríndia teria sido impossível sem que o autor tivesse, antes, desenvolvido sua própria teoria sobre o modo de pensar dos povos considerados “primitivos”. Tradicionalmente, os antropólogos distinguiam a “mentalidade lógica” da moderna civilização ocidental da “mentalidade pré-lógica” das sociedades primitivas. Lévi-Strauss abandonou essa divisão.

Em O Pensamento Selvagem, de 1962, ele demonstrou que a maneira de pensar dos primitivos também tem sua lógica própria e que ela não é estranha ao pensamento domesticado ocidental. A distinção maior é entre a lógica construída a partir dos dados sensoriais da experiência – uma ciência do concreto – e a lógica que privilegia categorias abstratas, como sinais matemáticos e classificações biológicas. Do lado “selvagem”, há uma atenção maior ao específico. Do lado “domesticado”, buscam-se as totalidades, os grandes esquemas explicativos.

O segundo modo prevaleceu na civilização ocidental, mas mesmo nela só é empregado por uma minoria de especialistas, cada um em seu campo de atuação. O engenheiro, por exemplo, só pensa como tal no domínio da engenharia, em termos de culinária ou futebol seu modo de pensar pode ser considerado “selvagem”. O pensamento “selvagem”, portanto, não é restrito aos povos primitivos, ainda que entre eles seja dominante. Assim, o que era antes visto como “atraso” ou “vestígio” passou a ser entendido como um dos modos possíveis de o homem organizar sua relação com o mundo. É como se o pensamento primitivo trabalhasse diretamente com as coisas que o ser humano tem ao alcance dos cinco sentidos do seu corpo. Já o pensamento científico trabalha com teorias e conceitos, que servem de mediadores entre o ser humano e o mundo.

O Pensamento Selvagem marcou o apogeu do prestígio do estruturalismo e estabeleceu definitivamente um espaço para a antropologia entre as ciências sociais mais importantes. Mas não sem polêmica. O lugar ao sol significava desafiar o predomínio de outra disciplina: a história. O livro contesta duramente a Crítica da Razão Dialética, do filósofo Jean-Paul Sartre, na época um dos ídolos da esquerda mundial. Lévi-Strauss contesta o privilégio concedido por Sartre à história, em detrimento das outras ciências sociais. E nega sobretudo a idéia de que o desenvolvimento da consciência histórica seria um critério válido para distinguir os “primitivos” dos “civilizados”. A própria noção de “fato histórico”, para o antropólogo, é falsa: a história só é percebida “em situação”, enquanto processo vivido, pois a Revolução Francesa, por exemplo, não teve o mesmo significado para um camponês do Loire e para um cortesão de Versalhes.

O fato histórico, portanto, é uma abstração criada pelo historiador e nunca independente do seu ponto de vista. Por isso, a história não pode pretender alcançar uma verdade objetiva – como queriam os positivistas e os marxistas. No final das contas, ela também pertence ao domínio da mitologia.

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Nos anos 1960, o estruturalismo se tornou – para constrangimento de seu criador – um modismo global, com adeptos em outras áreas do conhecimento, como o psicanalista Jacques Lacan, o sociólogo Louis Althusser e o crítico literário Roland Barthes. Mas o clima de contestação generalizada que marcou aqueles anos, culminando com o movimento estudantil de maio de 1968, na França, atingiu também a onda estruturalista. Jovens pensadores como o filósofo e historiador Michel Foucault abandonaram seus vínculos com essa linha de pensamento, questionando o determinismo das “estruturas” e também a possibilidade de estudá-las com o distanciamento e a objetividade exigida por seus mestres.

Na antropologia, a corrente pós-estruturalista abandona o próprio conceito de estrutura, por se parecer com uma espécie de “teologia” das sociedades: uma instância imaterial e superior que determina os destinos humanos. Também criticam a propensão do estruturalismo para as generalizações, em detrimento do conhecimento das especificidades.

Hoje, poucos antropólogos mantêm-se fiéis aos principais postulados de Lévi-Strauss. Embora, no Brasil, sua obra ainda seja obrigatória nas cadeiras das universidades, ou como inspiração ou como ponto de partida. Porém uma das coisas que mais incomodam aos críticos de Lévi-Strauss é o fato de ele ser também um escritor admirável. Mas, se hoje o trabalho de Lévi-Strauss é mais valorizado como obra literária, o salto não deixa de ser irônico. O estruturalismo passou do campo do pensamento “domesticado” e científico direto para o seu oposto. Porque, como explicou o autor em sua obra de 1962, as artes formam na civilização ocidental uma espécie de reserva ecológica do pensamento selvagem. “Este livro sobre mitos é ele próprio um tipo de mito”, escreveu.

Para saber mais

Obras do autor
As Estruturas Elementares do Parentesco, Vozes, Petrópolis, 2003
Tristes Trópicos, Companhia das Letras, São Paulo, 1996
O Pensamento Selvagem, Papirus, São Paulo, 1989
Antropologia Estrutural, Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1996
Antropologia Estrutural Dois, Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1993
Mito e Significado, Edições 70, Lisboa, 2000
A Oleira Ciumenta, Edições 70, Lisboa, 1987
O Cru e o Cozido, Brasiliense, São Paulo, 1991
O Olhar Distanciado, Edições 70, Lisboa, 1986
De Perto e de Longe, Entrevista a Didier Eribon, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1990

Sobre Lévi-Strauss
As Idéias de Lévi-Strauss, Edmund R. Leach, Cultrix, São Paulo, 1977
Claude Lévi-Strauss O Útimo Festim de Esopo, Octavio Paz, Perspectiva, São Paulo, 1977.
Estruturalismo e Crítica Literária, Luiz Costa Lima, em Teoria da Literatura em Suas Fontes, vol. 2, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2002

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