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O que é que a Cabala tem?

Por que pessoas de diferentes credos se renderam à mística judaica e que ensinamentos esses novos alunos estão encontrando

Por Cátia Franco
Atualizado em 14 fev 2017, 12h08 - Publicado em 31 Maio 2005, 22h00

Conta a Torá que, após ter libertado os judeus da escravidão, Moisés gozava de grande prestígio não só entre seu povo, mas também na mais alta esfera divina. Deus lhe fazia diversas aparições e, em uma das visitas, teria lhe apresentado as leis que disciplinariam a vida dos judeus. Seguindo a orientação do Senhor, Moisés compilou-as na Torá, a Bíblia dos judeus. No entanto, o que muitos não desconfiavam é que, mais do que um calhamaço de leis, a Torá guardava informações valiosíssimas. Nas entrelinhas das 613 normas descritas no livro, estavam codificados os mistérios da criação do mundo.

Milhares de anos depois das conversas entre Deus e Moisés, seu conteúdo está conquistando cada vez mais adeptos, incluindo aí gente da nata de Hollywood. A cantora Madonna, por exemplo, já cansou de dizer que a cabala mudou sua vida. “Ela ensina que seu verdadeiro potencial não tem a ver com vender discos ou ser famosa. Tem a ver com o que você faz para tornar o mundo melhor”, disse a cantora ao jornal inglês The Sunday Times, em 2004. Mas o que na cabala fez Madonna perceber que sua sina não era ser uma material girl? Quais são os ensinamentos por trás dessa sabedoria milenar? E por que eles estão se tornando pop?

Origens e influências

A história de que Moisés recebeu do Senhor os ensinamentos da cabala é apenas uma das muitas versões sobre sua origem. Há quem diga que Adão foi o primeiro a ter acesso a essa sabedoria e depois a transmitiu aos homens do patriarcado hebreu (Noé, Abraão, Moisés). Outros acreditam que um anjo a teria revelado ao misterioso sacerdote Melquisedec, que a repassou a Abraão. Todas essas lendas ajudaram a obscurecer os fatos sobre a verdadeira origem desse conhecimento místico.

Alguns estudiosos – entre eles o historiador Gershom Scholem, uma das maiores autoridades no assunto no mundo – concordam que o gnosticismo, movimento esotérico-religioso surgido nos primeiros séculos da nossa era, foi um de seus pontos de partida centrais. Os gnósticos eram pessoas que se dedicavam a refletir sobre questões que sempre intrigaram a humanidade: “quem somos?”, “de onde viemos?”, “para onde vamos?”. Os judeus simpatizantes do pensamento gnóstico se basearam nas escrituras judaicas para criar um sistema de informações e interpretações secretas sobre a origem do Universo, visando justamente responder a essas perguntas. Era o prenúncio da cabala (a palavra deriva da raiz hebraica kibel, que significa “receber”, já que os ensinamentos eram recebidos oralmente).

Ao longo dos séculos, esse sistema teria sofrido influências de elementos místicos de diversas religiões e filosofias. Do hinduísmo, por exemplo, herdou a crença de que as almas reencarnam. Dos povos da Caldéia, assimilou os conhecimentos de astrologia. Dos povos babilônios, a crença em anjos e demônios. Mas, de todas as vertentes do saber ocidental e oriental, foi o neoplatonismo, doutrina filosófica criada pelo egípcio Plotino no século 3, que exerceu a maior influência sobre o sistema que seria conhecido como cabala.

Plotino acreditava que Deus está além da compreensão humana e não possui qualquer representação. Essa idéia casou perfeitamente com a tradição legalista do judaísmo, que enxerga Deus sob uma perspectiva altamente sobre-humana e nem se atreve a nomeá-lo. O rabino Laibl Wolf, em seu livro Cabala Prática, de 2003, compara a luz (entenda-se aqui “energia”) de Deus a uma lâmpada de brilho tão intenso que, se acendê-la, você corre o risco de ficar cego. Para ele, mesmo cobrindo-a com um pano translúcido, ela ainda será forte a ponto de ferir suas vistas. Somente depois de colocar diversos panos é que se torna possível enxergá-la e compreendê-la. Essa metáfora explica bem a constituição do símbolo máximo do conhecimento cabalístico, a Árvore da Vida.

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Ganhando o mundo

A cabala permaneceu restrita ao círculo judaico, tratada como um saber secreto e de elite, durante centenas de anos. Seus ensinamentos só poderiam ser recebidos por aqueles que atingissem o quarto nível de interpretação da Torá. O primeiro estágio (Peshat) era moleza. Todos os judeus tinham de passar por ele e aprender as leis que disciplinam seu comportamento social, ético e religioso. O segundo (Remez) mostrava o que havia por trás do significado literal. No terceiro nível (Derush), o iniciado descobria que as informações sobre a criação do mundo estavam escondidas sob metáforas e analogias. E só então estava habilitado a entender o quarto e último nível (Sod). Todo esse preparo levava muito tempo e, por isso, o seleto grupo de iniciados costumava ser formado por homens com mais de 40 anos.

No século 13, um grupo de cabalistas espanhóis começou a se preocupar com o risco de a tradição se perder e decidiu registrá-la. A publicação do Zohar – O Livro do Esplendor (ainda hoje a obra mais importante da cabala) sinalizava, pela primeira vez, uma tentativa concreta de popularizar esse saber. Nessa época, o clima na Espanha era favorável ao florescimento da mística judaica. Apesar de boa parte da Europa estar sob o jugo da Igreja, a Península Ibérica estava sob o domínio dos árabes desde o século 8. “Muçulmanos instalados na atual Espanha conviviam bem com outras culturas e religiões”, conta o professor José Alves de Freitas Neto, do Departamento de História da Unicamp. Graças a essa tolerância, a cabala encontrou um campo fértil para se difundir.

Mas ainda se passariam 300 anos para que ela começasse a se popularizar. Em 1492, a paz na Península Ibérica foi quebrada e os reis da Espanha expulsaram do país todos que não estivessem dispostos a colaborar com a consolidação de um Estado cristão (entenda-se aqui tornar-se católicos da noite para o dia). Essa nova diáspora reacendeu o risco de não somente a mística, mas toda a tradição judaica se perder com a dispersão do seu povo pelo mundo. Na tentativa de garantir a continuidade da sabedoria, os cabalistas se estabeleceram em um novo centro, na cidade de Safed, em Israel. Lá surgiu uma das figuras mais importantes da cabala moderna: Isaac Luria.

Inspirado no Zohar, Luria fez uma releitura da sabedoria místico-judaica, criando a cabala luriânica, cujos ensinamentos continuam muito atuais. Seus seguidores acreditam que algumas das descobertas da ciência no século 20 já tinham sido reveladas por Luria 400 anos antes. “Ele já afirmava, no século 16, que o Universo nasceu a partir de um único ponto de luz, que se fragmentou. Apesar da diferença de denominação – os físicos chamam esse ponto de luz de matéria ou energia – é uma explicação bastante semelhante à teoria de criação do Universo conhecida como big-bang”, escreveu o rabino Yehuda Berg, do Kabbalah Centre, de Los Angeles (o centro onde Madonna estuda).

Para ele, a cabala também encontrou, antes da psicanálise, a resposta para uma das maiores indagações da humanidade: a razão do sofrimento. De acordo com a sabedoria mística judaica, a dor e a tristeza impedem que o nosso ego cresça a ponto de nem a gente conseguir se suportar. “Neste momento, você deixa de praticar atitudes que possam ajudar a melhorar o mundo e passa a ter preocupações mesquinhas, como comprar um carro mais legal do que seu vizinho”, diz Berg. Pelo comentário de Madonna no começo desta reportagem, dá para ver que ela estuda bem suas lições.

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Para os cabalistas, esses conhecimentos já existiam na Torá, só que codificados. Tudo o que eles fizeram foi interpretá-los da maneira certa. “Como o olho físico, que manda uma imagem invertida ao cérebro, a Torá mostra suas histórias de cabeça para baixo. Somente a cabala pode reverter a imagem e nos apresentar a verdadeira compreensão e o verdadeiro significado espiritual”, escreveu Rav Berg, irmão de Yehuda, no texto “A Torá Segundo a Cabala”. Uma passagem da escritura judaica, contando que Deus ordenou a morte dos habitantes da nação inimiga Amalek, seria um exemplo de como os ensinamentos precisam de decodificação. “É uma instrução controversa à luz do mandamento ‘não matarás’. A cabala explica essa contradição. O Zohar mostra que a palavra Amalek tem o mesmo valor numérico que a palavra em hebraico para incerteza”, escreveu Rav Berg. Ou seja, para ele, a mensagem de Deus é para que matemos as nossas próprias incertezas.

Cabala moderna

Mesmo depois dos ensinamentos cabalísticos terem sido passados para o papel, seu estudo ainda era restrito. “Formou-se um sistema filosófico e místico tão complexo que já não se tornava necessário cuidar para que poucos o penetrassem, pois só poucos estariam mesmo capacitados para isso”, diz o verbete “cabala” do Dicionário Histórico das Religiões.

Hoje já não é mais assim. Alguns cabalistas têm se esforçado em traduzir para uma linguagem bem simples os ensinamentos místicos judaicos. O irmãos Berg são expoentes dessa turma, que busca mostrar aplicações práticas dessa sabedoria para pessoas comuns enfrentarem os desafios da vida. No livro Os 72 Nomes de Deus, Yehuda Berg ensina a usar determinadas combinações de letras hebraicas, que formam os chamados 72 nomes de Deus, para nos ajudar a solucionar desde o temido mau-olhado até casos complexos como infertilidade.

Essa tradução dos ensinamentos foi um fator decisivo na popularização da cabala nas últimas décadas. Mas, para os cabalistas, ela já estava prevista. “O Zohar já dizia que ‘as portas do conhecimento se abririam’, ou seja, que a sabedoria da cabala se expandiria”, diz o rabino Nathan Silberstein, de São Paulo.

Mas a cabala não foi a única sabedoria mística a se popularizar no século 21. Para Leandro Karnal, chefe do Departamento de História da Unicamp e mestre em Ciências da Religião, diversos movimentos místicos emergiram nos últimos anos como fruto da insatisfação do homem com a religião, que institucionalizou a fé. “O padre, rabino ou qualquer outro chefe de uma instituição religiosa passa a ser o intermediário entre o homem e Deus. Aquela comunicação direta descrita nas escrituras sagradas desaparece”, diz ele. Em meio à debandada de fiéis, a mística tem desempenhado papel fundamental: ela aproxima o homem de Deus, de forma menos dogmática e severa.

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Mas nem todo mundo vê com bons olhos a maneira como alguns pregam essa popularização. “É preciso tomar cuidado. Uma coisa é você querer que as pessoas tenham acesso à informação e ensinar a elas como fazer isso. Outra é você simplificar esse conhecimento a ponto de gerar interpretações deturpadas ou errôneas”, diz o rabino Nathan.

Seja porque estava escrito, seja porque os ensinamentos foram simplificados, seja porque ela exprime “as verdadeiras aspirações psicológicas do povo” (como disse o historiador Gershom Scholem), o fato é que a cabala está crescendo. Num mundo de poucas certezas e muitas promessas de fórmulas mágicas, para algumas pessoas ela tem sido uma espécie de bússola. Confiar ou não na direção apontada é uma escolha individual.

A árvore da vida: guardiã dos mistérios da criação

Cada sephirah (esfera) representa um dos atributos de Deus, que devem ser aprimorados por nós durante a vida. Além de ser uma espécie de mapa para nosso desenvolvimento espiritual, a Árvore da Vida representa o caminho que Ele fez para criar o Universo (indicado pelo relâmpago brilhante). “Qualquer ser vivo, fenômeno ou mesmo manifestação da realidade, como um novo projeto ou negócio, resulta dessa mesma fórmula”, explica o cabalista Nelson Real Júnior.

1. Kether (Coroa)
Gera a energia ou vontade que vai impulsionar o processo de criação. No homem, é o grande potencial que ele possui, mas ainda desconhece. Como somos frutos da criação divina, nosso objetivo deve ser percorrer os caminhos até retornar a Kether.

2. Hockmah (Sabedoria)
É considerada a usina geradora da vida. Aquela inspiração “divina”, idéia genial que surge de vez em quando, é obra de Hockmah.

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3. Binah (Compreensão)
É a forma de bolo: recebe o impulso criador e lhe dá um formato. Binah nos ajuda a expressar nossas idéias.

4. Hesed (Misericórdia)
Já viu algum projeto dar certo sem dedicação? Se essa sephirah não está em forma, dificilmente se concretiza um intento. No homem, é a força vital e amorosa.

5. Geburah (Justiça)
Impede o desperdício e elimina os excessos num projeto. É graças a Geburah que viabilizamos nossas criações.

6. Tiferet (Beleza)
Trata-se do talento. Tiferet nos obriga a nos autoconhecer, para melhor direcionar nosso potencial criativo.

7. Netzach (Vitória)
É a nossa intuição, a voz oculta que nos dá a direção certa. Simboliza também a realização pessoal.

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8. Hod (Glória em Esplendor)
Hod controla os impulsos arrebatadores de Netzach. É o pensamento analítico e estratégico.

9. Yesod (Fundamento)
No processo de criação, é aquele toque pessoal que diferencia um projeto dos demais. No homem, constitui a força que o leva a seguir adiante.

10. Malkhult (Reino)
É onde o projeto se materializa. Aqui presenciamos a obra completa.

Para saber mais

Zohar – Trechos Selecionados, Ariel Bension (org.), Polar, 2005

Cabala – O Caminho da Liberdade Interior, Ann Williams-Heller, Pensamento, 2004

Cabala Prática, Laibl Wolf, Maayanot, 2003

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