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O que uma cidade construída há 6 mil anos pode ensinar aos novos prefeitos

O sítio arqueológico de Nebelivka, na Ucrânia, era uma urbe de 17 mil habitantes em 1,8 mil casas, com uma diferença crucial das demais metrópoles da época e de hoje: não havia um governante.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
14 out 2024, 10h00

Em 1964, o topógrafo Shyshkin Valentinovich sobrevoava o coração da Ucrânia a bordo de um avião militar soviético quando percebeu desenhos no solo. Por baixo de plantações de trigo e cevada, havia um padrão de morros, calombos e reentrâncias imperceptíveis da perspectiva dos fazendeiros.

Vistos de cima, eles formavam círculos concêntricos em alto-relevo – o tipo de desenho anômalo que certos programas de TV a cabo adoram atribuir a alienígenas empreiteiros pré-históricos. Mas essa obra, para decepção dos ufólogos (rs), era de autoria humana.

Ali, nos arredores do vilarejo de Nebelivka, se escondem as ruínas de uma cidade construída há mais de 6 mil anos. Essa é a mesma época em que Uruk, a primeira cidade do mundo e o berço da escrita, se formou na Mesopotâmia. 

Essa urbe ucraniana pré-histórica abrigava uma população de 15 mil a 17 mil agricultores em cerca de 1.200 casas com dimensões similares – não havia exceções como um Palácio do Planalto ou os infames apês de 20 m² nas áreas nobres de São Paulo.

Em intervalos regulares, despontavam prédios ligeiramente maiores: salões onde se supõe que rolavam festas, reuniões de condomínio e afins. 

No centro do complexo, havia uma ampla área vazia, de uso misterioso. Ela não continha palácios, prédios governamentais, túmulos suntuosos como as pirâmides egípcias nem quaisquer outros indícios de hierarquização social, governo autoritário, forças de segurança ou funcionalismo público. 

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Trata-se de um urbanismo estranhamente democrático para os padrões da época – as ruínas de Uruk, por exemplo, têm indícios de centralização do poder, e é fato que os impérios célebres da Antiguidade seguiam o padrão Game of Thrones de governança sanguinária e autoritarismo (basta lembrar do livro Lamentações do Antigo Testamento, em que Nabucodonosor II, da Babilônia, destrói Jerusalém). 

Para os antropólogos David Wengrow e David Graeber, o sítio arqueológico de Nebelivka desafia a explicação tradicional dos livros didáticos para o momento  mais importante da história humana: a transição das populações nômades caçadoras-coletoras neolíticas para a formação de civilizações com agriculturas vastas e coesas, como o Egito ou a China.  

Aprendemos na escola que os impérios nascem porque é impossível organizar um grupamento humano grande sem exércitos e burocratas.

Os pré-requisitos tradicionais para determinar a transição de vilarejo para cidade – cunhados pelo pesquisador australiano Gordon V. Childe em 1950 – incluem a existência de governantes e coleta de impostos, a delimitação de fronteiras e uma agricultura produtiva o suficiente para  sustentar escribas, artesãos e outros profissionais que comem sem precisar plantar (antes, todo mundo participava da obtenção de alimento). 

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Nada disso é mentira. É fato que a ideia de um estado centralizador floresceu em diversos lugares da Eurásia. Mas as ruínas de Nebelivka mostram que a formação de impérios violentos não é um desfecho inevitável da adoção da agricultura e da formação de cidades.

Agora sabemos que, milênios antes da gênese de ideias como o anarquismo, existiram grupamentos capazes de se manterem com uma política descentralizada, baseada em decisões coletivas tomadas por conselhos. Há evidências de que Nebelivka durou algo como oito séculos – sinal de que a fórmula deu certo. 

Após alguns milênios  de planejamento urbano – que incluíram até devaneios como Brasília –, descobrimos um bocado sobre o que funciona ou não em uma cidade.

Hoje, os urbanistas concordam que o ideal é que toda a população tenha acesso a pé ou de bicicleta a comércio, serviços básicos e, de preferência, a seus locais de trabalho. Esse é o oposto dos subúrbios americanos de desenho animado, com casarões ajardinados afastados do centro e SUVs gigantes que saem da garagem até para comprar pão.

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Sabemos, também, que bons prédios têm fachadas ativas, ou seja: o térreo é ocupado por lojas e outros estabelecimentos que dão vida à calçada e motivam as pessoas a permanecer na rua de noite e de dia.

Esse é um meio comprovadamente eficaz de melhorar a segurança pública – para os transeuntes, o paredão bege de um condomínio é tão amedrontador quanto um muro de cemitério. Olhos na rua são um antídoto contra crimes violentos. 

Essa é a fórmula do sucesso das cidades europeias, mas exceção em boa parte do Brasil. A regra em nossos bairros nobres é circular em SUVs gigantescos, passear em shoppings e preferir a comida pseudogourmet de restaurantes genéricos. A desculpa é que “a Europa é a Europa, o Brasil é o Brasil. É muito perigoso sair na rua aqui”.

É mesmo? Até os anos 1980, Amsterdã era uma cidade acinzentada, poluída e carrocêntrica – só em 1971, houve 3 mil mortos por atropelamento, 400 deles eram crianças. Em poucas décadas, ela se tornou uma meca do ciclismo. E foram os cidadãos que permitiram isso, acima de tudo. 

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Havia um grupo de mães chamado Stop de Kindermoord (“parem o infanticídio”), bem como um coletivo de 30 mil ciclistas ativistas, o Fietsersbond.

Eles organizavam jantares no meio da rua, pintavam ciclovias ilegalmente à noite e, com frequência, acabavam na delegacia: “De início, éramos detidos, mas então a coisa toda ia parar nos jornais e a administração municipal acabava ouvindo”, conta ao The Guardian um ativista da época, Tom Godefrooij.

É óbvio que jamais devemos eximir a prefeitura da responsabilidade de investir em transporte público, em calçadas caminháveis, em apês para pessoas de baixa renda em prédios vazios e abandonados etc.

A administração municipal deveria blindar os planos diretores da influência de incorporadoras – que destroçam o tecido urbano para erguer mais espigões envidraçados e murados que vão piorar o trânsito enfrentado por seus próprios moradores. 

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Acontece que não dá para esperar sentado. Se quisermos Amsterdã, é preciso arrumar briga como os holandeses. As cidades não são um reflexo só de seus prefeitos, mas também de seus moradores – especialmente os mais ricos, que têm mais poder de moldá-la e mudá-la.

Nas palavras de Graeber, o pesquisador de Nebelivka: “A verdade última e oculta é que o mundo é algo que fazemos, e poderíamos facilmente fazê-lo diferente”. Se deu para construir algo melhor que Uruk há 6 mil anos, hoje podemos ir muito além. As eleições municipais são só o começo. Por mais frustrante que tenha sido a apuração das urnas em sua cidade, ela ainda é sua. Não são só os eleitos que têm o poder de mudá-la. 

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